O Parocho da Aldeia/VIII
Estamos á porta da igreja. A saloiada mettemo-la dentro. O padre mestre Prazeres, o padre Chaparro, e o padre prior não sei se d’aqui os vêm na capella-mór. Fr. Narciso gyra, mira, vira, revira tudo, na credencia, no altar, na banqueta. O ceremonial romano é um mundo de idéas, que elle dispoz nos diversos repartimentos cerebraes, com uma comprehensão, um tino, uma logica de por ahi além. Fr. Narciso tem d’olho o padre Chaparro, que foi toda a vida um tonto em liturgia, e assim ha-de morrer. General naquelle conflicto, Fr. Narciso está álerta; nem seiscentos Chaparros seriam capazes de lhe entortarem uma ou mil missas cantadas. Em semelhantes occasiões o veterano mestre de ceremonias contempla impassivel da altura da sciencia as evoluções dos seus subordinados: tudo abrange, tudo prevê, tudo dirige tranquillo. E não solta uma voz unica: não reprehende, não incita, não ameaça. Uns beiços estendidos e inclinados á esquerda fazem parar o missal, que ía a ser extemporaneamente arrebatado da banda da epistola para a do evangelho; uns olhos trasbordando pelas palpebras, acompanhados de um oscillar de cabeça rapido, horisontal e fugitivo, inteiriçam os joelhos que vão a vergar em genuflexão deslocada. Emfim, para que estarmo-nos a matar? Como o nome de Fr. Timotheo na parenetica, o de Fr. Narciso na liturgia será o nome que a historia transportará ás mais remotas eras, emquanto as glorias da familia arrabida durarem na posteridade.
O introibo entoou-se: o negocio está agora em mãos de mestre: podemos ficar descançados com a festividade. Como o calor da igreja é muito, venhamos, eu e o leitor, conversar um pouco á fresca sombra dos plátanos do adro. Tenho explicações indispensaveis que lhe fazer; dê por onde der, embora ouçamos a missa descabeçada.
Sou homem de bofes lavados, como diziam os nossos velhos, e não gósto de que me estejam a morder na pelle por causa de lacunas, mysterios, ou contradicções nas minhas narrativas. Menos isso. A historia é a historia, e não se hão-de deixar por aqui e por alli obscuridades e incertezas, que façam suar o topete ás academias futuras: muito mais que ha ahi uns quidams, cujo officio é esmiuçar, anatomisar e criticar os escriptos alheios, e que lhes fazem os mais crueis e desalmados processos verbaes, que é possivel imaginar, não lhes escapando periodo nem linha, ponto nem virgula. Critica rosnada pelos cantos é a destes, semelhante ao bisbilhotar da cozinheira com a creada da vizinha, á janella do saguão, sobre os talhos que a ama deu ao presunto, ou sobre o mais ou menos acogulado da medida dos feijões fradinhos. É por isso que a taes criticas chamo eu verbaes; verbaes, porque seus auctores d’ahi não podem passar. Coitados! escreveriam vinte heresias se copiassem o padre-nosso. São os alcaiotes dos lapsus linguæ, os mexeriqueiros dos actos de memoria. No vento e com vento compõem: vivem de epigrammas agudos como tranca: morrem sem deixar vestigio. Litteratos a barbas enxutas, eruditos lendo ainda por baixo, passam nas trevas como a coruja; mas bem como a coruja roçando as azas, que salpicou na alampada, pela alva toalha do altar a deixa ennodoada, assim a pagina pura, affagada de tanto amor do artista, estudada com tão sincera consciencia, lá recebe, na tertulia de parvos, a dedada torpe e sebenta de um chapadissimo tolo.
Não sou dos mais queixosos; todavia guardo acatamento profundo a essas caricaturas de adibe, que, á falta de dentes para devorarem carniça, contentam-se de fazer empolas e brotoeja na pelle do proximo. Respeito-os a todos, altissimos e baixissimos; que os ha de todas as riscas da craveira social, no civil, no militar e no ecclesiastico. Estou, por isso, sempre com o credo na bôca quando escrevo uma linha, e antes quero que se queixem da frequencia dos prologos do que me condemnem sem me ouvirem.
Disse já que tinha de fazer uma explicação ao leitor. Tenho; e é indispensavel. Estou ouvindo um melenas arguir assim:—“Como soube a tia Jeronyma que as peças do padre prior se haviam esgueirado, com tanta magua sua, só para dotar Bernardina? Como o souberam os noivos, e Perpetua Rosa? Não se passou tudo particularmente entre o prior e o moleiro, ambos interessados no segredo do negocio, um por virtude, outro por avareza? Foi um duende que veio revelá-lo? Mas isso é fazer como Eugenio Sue, que logo desde o principio das suas novellas arranja um homem humanamente impossivel, e até uma entidade immortal, para nos casos difficultosos se desembrulhar das aperturas da situação. Isso é empalmar; isso não vale. Queremos saber por onde transpirou a generosa acção do velho parocho; mas por meios naturaes. Não admittimos tergiversação, nem milagres.”
Tá, tá! Nem eu, falando de telhas abaixo. E era para explicar este mysterio naturalissimamente, que chamava agora o leitor para a fresca sombra dos plátanos do presbyterio. O caso foi este:
Quando o prior, dominado pela idéa de remediar a todo o custo a rapaziada que fizera o Manuel da Ventosa, deu comsigo ao romper da manhan no moinho de Bartholomeu, lembrados estarão de que o velho, accedendo aos desejos manifestados pelo seu parocho de ficar a sós com elle, pozera fóra da porta os moços com o grito de rua! Se o homem fizesse como Polyphemo, quando tinha Ulysses e os seus camaradas encapoeirados no antro com os carneiros e como carneiros, o qual, á falta do unico olho que possuia e que lhe haviam vasado, ía apalpando e contando os que saíam, segundo mais largamente narra Homero, não succederia o que succedeu, e já as embrulhadas, picuinhas, dicterios e descomposturas ad faciem ecclesiæ, de que antecedentemente dei conta, não teriam sobrevindo, com escandalo das pessoas graves e tementes a Deus. Era, como no logar competente deixei especificado, grande o tráfego no moinho á chegada do prior: duas récuas de machos a enquerir á porta; moços para dentro e moços para fóra; saccos de farinha a rolarem e a empoeirarem a atmosphera; bulha, encontrões, sapateada, arres, xós, pragas, diabos; um pandemonio, emfim, em miniatura. A chegada do prior foi tão inesperada e subita, que Bartholomeu, azoinado, não reparou nos que saíam á sua voz de commando. D’aqui o damno. Uma testemunha ficava ahi, sem que Bartholomeu désse por tal.
Esta testemunha era Gabriel. O pobre rapaz tinha andado, até á meia noite, do moinho para a fonte e da fonte para o moinho, com um macho e dous barris, a carrear agua. Depois, estirou-se a dormir atrás de uma pilha de saccos de trigo, com aquelle valente somno da primeira juventude, a que se não resiste nem n’um campo de batalha. Dormiu, dormiu, dormiu. Rompia a alva e ainda elle era pedra em poço. O grito de Bartholomeu despertou-o, na verdade; mas não teve animo de erguer-se: bocejou, bufou, espriguiçou-se, estendeu os braços para diante com os punhos cerrados, virou-se de barriga para o chão, metteu o nariz debaixo do sovaco, e proseguiu na interrompida tarefa. Felizmente para o pobre do moço, que se fosse presentido pelo moleiro teria de acordar de todo com o despertador infallivel de dous pontapés, Gabriel não resonava, ainda no mais profundo somno. Crendo estarem sós, os dous travaram a larga conversação que no principio desta famosa historia ficou fielmente trasladada.
Não faço eu tão fraca idéa de mim ou do leitor, que supponha assás falta de interesse a minha narrativa, ou o tenha a elle por um tal cabeça de vento, que se esquecesse da estrondosa gargalhada que desandou o padre prior ao manhoso saloio, quando este lhe propoz désse o dote a sua sobrinha Joanna, á falta de outra mais digna. A descommunal risada é que o somno de Gabriel, se não partido inteiramente, ao menos já estalado pelo grito de Bartholomeu, não pôde resistir. O rapaz fez uma viravolta, abriu os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as pernas estendidas, e a cabeça inclinada sobre o peito, meditabundo por alguns momentos, e immovel como um daquelles santões de que resa Fernão Mendes Pinto. Depois, levando as mãos á cabeça, começou a coçar rapido d’alto a baixo por cima das orelhas. Pouco durou, todavia, essa primeira furia. Como o som da harpa d’Ossian, alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras, aquelle coçar d’alma affrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as mãos, confrangidas em fórma de garra, espalmaram-se flexiveis, os braços hirtos e erguidos despenharam-se mortaes ao longo do tronco, e a cabeça somnolenta balouçou á direita, depois á esquerda, depois pendeu de chofre para diante, e resaltou quasi ao bater sobre os joelhos, semelhante ao judeu martyrisado pela sancta inquisição, quando ao descer pendurado da polé, a corda, atada mais curta que o espaço médio entre o chão e a roldana, o desconjunctava, retendo-o subitamente alguns palmos acima do pavimento. Assim se desconjunctou aquella machina de somno, e Gabriel abriu seis vezes a bôca, engradou-a com outras tantas cruzes, esfregou os olhos com a parte anterior do canhão da jaqueta, mirou por entre os saccos os dous velhos, embasbacou de vêr alli o prior, e, sem tugir nem mugir, poz-se a escutar o dialogo, que se travára entre ambos.
Qual este foi e o seu desfecho sabe-o o leitor tão bem como eu. Apenas o prior se despediu, encaminhando-se pela encosta abaixo,
Bartholomeu recolhendo as setenta peças, que elle deixára sobre a arca das maquias, poz logo tudo em movimento; e Gabriel, por cuja falta naquelle primeiro impeto o moleiro não dera, teve arte de se confundir com os outros moços, que entravam e saíam, sem que o amo nem por sombras suspeitasse que havia uma terceira pessoa sabedora do importante negocio que se acabava de compôr, e sobre o qual, no meio do seu mandar, e ralhar, e lidar, já a ambição lhe ia alevantando na phantasia muitos castellos de vento.
Segredo em bôca de rapaz, outros dizem de mulher (eu, por decencia e pelos meus principios, sustento a moção relativa aos rapazes) é manteiga em nariz de cão. Elle, na verdade, contou-o com variantes para mais e para menos, mas contou-o, que é o caso. E a quem o havia de ir metter no bico? Á pessoa que mais interessada suppunha na historia; á senhora Perpetua Rosa, mas pedindo-lhe pela alma das suas obrigações e pela fortuna da sua Bernardina que não dissesse nada, porque o patrão, se tal soubesse, era capaz de esganá-lo. Prometteu-lh’o Perpetua Rosa; jurou-o e tresjurou-o. Pulava a boa da velha de contente, e a primeira vez que levou roupa á cidade fez das fraquezas forças, e trouxe de mimo a Gabriel um pião novo, uma gaiola de grilos cousa d’espavento, e uma abáda de castanhas do Maranhão e de figos passados, com que o bom do rapaz se regalou de pôr a bôca n’uma lastima. E o mais é que teve palavra. Apenas contou o caso a duas ou tres freguezas antigas de Lisboa, e á tia Jeronyma, com quem desde a mestra, podia-se dizer, era unha com carne. Aqui é que foram as ancias. Pelos domingos tiram-se os dias-sanctos. A ama do prior fez-se fula quando tal ouviu. A lanceta que sangrára a meia do forro da escada apparecia finalmente; e a tia Jeronyma, sem lhe importar o ver a mortificação da pobre Perpetua Rosa, desabafou á sua vontade; mas passado o primeiro estouro da dor, levou de seu brio nunca mais tornar a bulir nesta desagradavel materia.
Eis a verdade nua e crua de como se aventou o segredo. A alhada da porta da igreja, nascida daquellas tafularias tolas do Manuel da Ventosa e da sua companheira, acabou de divulgar o negocio, sem que n’isto andasse o fradinho de mão furada, nem os jesuitas, gente de poder mysterioso e terrivel, nem, finalmente, o judeu errante, que tantas maravilhas obra actualmente na terra. Mas se n’isto não entraram os irmãos do quinto voto, nem o caminheiro Ahasvero, com as suas sapatas tauxiadas de pregos em cruz e com os seus alforges de cholera morbus, entrou, a meu vêr, a Providencia, mas uma Providencia natural e simples nos seus meios, como ella o é sempre, sem milagres nem bruxarias. Cuidava o prior que a sua nobre e evangelica generosidade ficasse occulta; cuidava Bartholomeu que trévas perpetuas cobrissem a torpe cubiça e a sórdida avareza com que se houvera neste negocio. Vae, que faz Deus? Serve-se de um pobre rapaz, que ninguem tinha em conta de nada, e põe tudo ao olho do sol. E fique desde aqui dicto que essa é a moralidade da minha historia: a virtude exaltada, e o vicio punido. Nem mais nem menos, como o desfeixo daquellas grandes comedias, que, ha vinte ou trinta annos, eram as delicias de nossos paes, e a gloria dos nossos dramaturgos das tres unidades, que Deus haja... As tres unidades, entenda-se bem; porque os dramaturgos, esses o Senhor no-los conserve, emquanto podér ser, para nosso regalo e consolação.
Quem disse lá que as velhotas, testemunhas dos items do moleiro com as personagens que mais conjunctas lhe eram, entraram para a igreja e se pozeram a ouvir o cantar dos padres, e a musica do coreto, e o esbravejar do prégador? Por um oculo! Á sombra da sua victima, que fôra e que ía seu; á sombra de Bartholomeu, a quem todos abriam caminho para o deixarem approximar-se do banco dos festeiros, ellas atravessaram a mó dos homens, unidos como sardinha em tigela dos estrados para baixo até o guardavento, e chegaram ao meio do mulherio. Haja o apertão que houver, ainda não consta que saloia deixasse de fazer praça para si na igreja. Verdade é que a tia Jeronyma ía em frente com a cara de arremetter que Deus lhe dera, e que mais rebarbativa se tornára com a anterior refrega. Quem deixaria de dar campo á ama do prior, e, sobre tudo, áquella carranca? Seguiam-na os noivos, encolhidos e vergonhosos do escandalo que tinham causado, tornadas em fel e absintho as tão risonhas esperanças que, pouco havia, punham no seu garbo e bizarria; que n’isto vem a acabar muitas vezes as vanglorias do mundo. (Mais moralidade). Após elles vinha Perpetua Rosa, e após a lavadeira vinha a Veronica do Tiago, padeira gorda, vermelha e reverendaça, a Engracia Ripa, mulher do fogueteiro da aldeia, magra, alta, côr de enxofre, a Eufrasia Tasquinha, tia do Gabriel, e varias outras, mais anchas ou mais esguias, mais esgrouviadas ou mais repolhudas, que não sou eu nenhum Homero para estar, nem antes nem depois da batalha, a tecer catalogos de guerreiros.—“Dê licença!...”—“Ai, que me pisou!...”—“Perdoe!...”—“Não vê?...”—Eis o que se ouviu murmurar por alguns instantes. E no meio daquelle mar de cabeças adornadas de lenços de côr, listrados, e brancos, avultava a pinha das recem-vindas, que tentavam ajoelhar; pinha semelhante á embarcação rota a ponto de submergir-se, que balouça vacillante, e se atufa lentamente nas aguas. Manuel da Ventosa, que ficára em pé no topo inferior do estrado, sentia apertar-se-lhe o coração vendo a sua Bernardina no meio daquelle cahos de capotes e roupinhas, como uma avesinha do céu no meio de ninhada de sapos. As sedas, o chapéu, as flores, a romeira rangiam, achatavam-se, engorovinhavam-se entaladas entre aquellas baetas, pannos, camelões e durantes, do mesmo modo que sobre o cadaver da virgem se achatam e quebram as alvas roupas da innocencia e a corôa de rosas, debaixo da terra aspera, pesada, immunda, que o coveiro atira brutalmente sobre os restos do que foi bello, delicado e puro.—“Mas que remedio?—pensou Manuel. As cousas assim hão-de ser sempre, porque assim foram desde o principio do mundo.”—Elle, de feito, cria que desde esse tempo existiam missas cantadas, saloias e apertões. Mas emfim ajoelharam, persignaram-se, e a festa principiou.
Não a descreverei eu. Quem não sabe o que é uma festividade de orago, e o que é a missa solemne celebrada n’um templo catholico? Ha ahi alguem, crente ou não-crente na fé que seus paes lhe ensinaram, que não tenha bem vivos na memoria esses dias festivos da sua meninice; esse culto, que sabe elevar o espirito para o céu com as pompas de espectaculo sensual, que parece deveriam faze-lo descer para a terra? Quem se não lembra daquelles bons dias sanctos dos doze annos, em que o sol era mais formoso que nos dias de trabalho, sem exceptuar a folgada quinta-feira do sueto escholastico? Quem se não lembra da epocha, em que o nosso parocho era para nós um ente quasi divino; porque, pobres creanças, ainda ignoravamos os caminhos por onde esses homens, chamados a uma existencia de sancta e sublime poesia, sabem vir despenhar-se no charco das miserias e torpezas humanas, e revolver-se ahi com aquelles de que deviam ser esperança, salvação e exemplo? Quem não se recorda com saudade do tempo em que o altar só lhe apparecia a certa distancia, com o seu frontal broslado e a sua toalha alvissima, assoberbado pela catadupa de lumes de um throno, perfumado pelas jarras de flores, involto no ambiente turvo pelos rolos de fumo raro e pallido do incenso, symbolo do mysterio? A quem não murmura ainda nos ouvidos o rythmo monotono e severo do psalmear sacerdotal, mais accorde com as doces tristezas do coração, que toda a musica sentida e dolorosa dos espectaculos scenicos, e que estes, na impotencia de o vencer, têm ido humildemente imitar nas creações dos modernos artistas (porque Meyerbeer, para ser o rei das harmonias, foi invadir o templo)? Quem, finalmente, não refugiu uma vez, cansado de scepticismo, para as memorias infantis das commoções geradas pela religião dos primeiros annos, religião toda de affectos, de inspirações, sem sciencia nem raciocinio, os quaes, semelhantes ao sal espalhado sobre a terra, podem fertilisar algum coração, mas esterilisam os mais delles? As impressões indestructiveis das festas religiosas guardam-nas os que crêm, como consolação do passado, e como esperança de regosijo futuro; e os que não crêm tambem as guardam, no longo crepusculo da sua alma, como guardamos no inverno as plantas odoriferas já murchas, que, debaixo de céu pardo e frio, ao pé da veiga nua e da arvore desfolhada, nos recordam o halito suave dos campos ao pôr do sol de um dia sereno do estio.
Eis-ahi porque não descrevo a festa. Era especular descaradamente com os leitores: era como se ao Bartholomeu se lhe mettesse em cabeça ir ensinar o ceremonial romano ao incomparavel Fr. Narciso.
E que terá Fr. Narciso, que já escarrou duas vezes, já se assoou quatro, já bufou seis, já arregalou os olhos para o corpo da igreja oito? É que as attenções estão distrahidas. Fortes brutos! Uma perfeição de ceremonias, que nem na capella sixtina no dia da benção urbi et orbi!—“Olha o que lá vae! o que lá vae!—rosnava elle cheio de indignação.—Aquellas endiabradas... Quem vos decepára as linguas, tarameleiras! Até aqui! Louvado seja Deus! É de mais. Psiuhhhh!”
Tinha razão. Era um zum zum na igreja, que quasi galgava por cima das rebecas; e mais chiavam e desafinavam com alma. O arrastado psiuhhhh de Fr. Narciso restabeleceu, porém, a ordem, que nem n’um motim popular uma carga de cavallaria.
Mas para se restabelecer a ordem é necessario haver desordem. Quero vêr se tambem dizem os parvos que esta proposição é uma das minhas esquisitices, ou excentricidades, para lhes falar na sua algaravia. A cousa tinha saído do logar onde estavam a tia Jeronyma, Perpetua Rosa e a Bernardina. Qual cousa? Isso é o que não diz a historia. O que é certo é que era um bis bis que partia do centro para a circumferencia, como os circulos concentricos que encrespam a superficie do lago ao meio do qual se atirou uma pedra, e era ao mesmo tempo um balouçar de pontas de lenços sobre os cabeções dos capotes, um rir abafado, um sussurro, uma agitação entre o mulherío, tal, que attrahira a attenção e logo a colera de Fr. Narciso. O mais que se pôde perceber foram alguns fragmentos de dialogo entre a tia Jeronyma e a Engracia do Estanislau fogueteiro.
“Padre nosso que estaes nos céus:—dizia Engracia Ripa, deixando correr um dos bugalhos de umas contas da terra sancta que tinha nas mãos.—Ora essa!—Sanctificado seja o vosso nome.—Forte tractante!—Venha a nós o vosso reino.—E uma pessoa com a sua áquella de que era um home como se quer!—Seja feita a vossa vontade.—Safa!—Assim na terra como nos céus.—Com que então setenta?”
“Entregadinhas!—Ave Maria, gracia plena:—respondeu a tia Jeronyma, que latinisava furiosamente á força de viver com o prior.—Como lh’o hei-de dizer?—Domisteco.—Foi o demo que o tentou.—Benedités tu...”
Neste ponto a interessante conversação das duas matronas foi interrompida pelo psiu! raivoso de Fr. Narciso. Não podemos dizer sobre que ella versava, nem aonde iria dar comsigo: e quando n’uma chronica profunda e grave, como esta, faltam fundamentos plausiveis, é dever do chronista ser sobrio, ou antes abster-se de conjecturas. Direi só que ao saír a gente da festa, não havia cão nem gato que não soubesse tim-tim por tim-tim a historia do Manuel da Ventosa e da Bernardina.
Mais moralidade:—é o que elles tiraram das suas tolas tafularias.
Quando o prior saíu da igreja os rapazes desbarretavam-se, ainda com mais signaes de cortezia e respeito do que era costume; as raparigas affagavam-n’o com um sorrir e volver d’olhos affectuoso, que fazia scismar o bom do parocho. Todos olhavam para elle e falavam em voz baixa. O prior estava zangadissimo.
Mas qual foi o seu pasmo ao vêr chegarem-se a elle muitos velhos de cabeça branca (eram varios lavradores seus freguezes, hourados paes de familia) e beijarem-lhe a mão com os olhos arrasados de agua! Estava fumando. Uma onda se lhe ía outra se lhe vinha de destampar com tudo aquillo, e pregar uma descompostura solemne e por atacado nos velhos, nos rapazes, e nas raparigas.
E para isso não lhe faltava metralha. Mas lembrou-se de que era o dia do orago da aldeia, e teve mão em si. Só lá perguntava aos seus botões qual seria a causa deste destempero e doudice.
Como havia elle de atinar, se tinha o costume de esquecer-se do bem que fazia, porque, sendo fraco de memoria, reservava-a toda para o bem que recebia?
A historia do casamento feito pelo velho parocho, segundo depois me contaram (era eu pequeno, e lembra-me como se fosse hoje), chegou aos ouvidos do prelado diocesano, o qual disse ao famulo do famulo do seu secretario, um dia em que se levantou de dormir a sésta com vontade de galhofar, que na primeira visita que fizesse á diocese havia de elogiar publicamente aquelle digno pastor. Nunca, porém, houve occasião para a primeira visita, porque esta costumeira velha tinha passado já de moda. Eram pieguices só boas para os Bartholomeus dos Martyres e para os Caetanos Brandões; pobres homens, a quem Deus fale na alma, se é que valiam a pena d’isso.
Ajuda—novembro de 1844.