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O Saci (8ª edição)/20

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XX

O Boitatá


POIS vai ver esses dois tambem, não tenha pressa, disse o saci.

— Mas antes disso, explique-me o que é o tal Boitatá.

— Coisa dificil! respondeu o saci. Ha muitas explicações, de modo que você deve escolher uma ou outra.

— Diga uma.

— Vou contar o que corre no Rio Grande do Sul a respeito do Boitatá. Dizem, lá na campanha desse estado, que o Boitatá é um duende de enormes olhos de fogo. Nem tem corpo, quasi; só olhos. De noite vê tudo; de dia não enxerga nada. Certa vez em que houve um diluvio e as aguas cobriram os campos, o Boitatá subiu ao ponto mais alto que encontrou. Ali se meteu a fazer um buraco muito fundo, no qual se introduziu e se escondeu, muito bem escondido, durante todo o tempo do diluvio, isso por anos e anos. Por causa dessa vida de anos e anos no buraco escuro, os olhos do Boitatá foram crescendo até ficarem do tamanho que são hoje. E não somente cresceram em tamanho como aumentaram de brilho. O Boitatá, por assim dizer, ficou só olhos. Esses olhos, depois que o diluvio cessou, deixaram o buraco e vieram para o mundo, onde costumam passear pelos campos onde ha carniça de animais mortos. E’ o que dizem os gauchos lá do sul.

Outros contam a coisa um pouco diferente. Dizem que o Boitatá é um fogo volante que ás vezes toma a fórma de cobra e outras vezes a forma de passaro. Sob estas formas voa na frente dos cavaleiros que fazem caminhadas durante a noite, atrasando-lhes a viagem. Dizem que esse fogo volante se deixa atrair pelo ferro. E então o meio de livrarem-se dele consiste em desatar o laço que os gauchos costumam trazer consigo e deixar que ele se estenda pelo chão. Como a argola do laço é de ferro, o Boitatá sente-se atraido e vai seguindo o cavaleiro. — Oh! exclamou Pedrinho, já sei donde vem esse Boitatá. Vóvó me explicou tudo. Chama-se fogo-fatuo e é emanação do fosforo que ha nos cadaveres em decomposição. Porisso a gente do campo só vê o Boitatá perto das carniças.

— Seja lá o que for, disse o saci, o fato é que não ha gaucho lá no Sul que não conte mil coisas do Boitatá.

— Por falar em Sul, sabe você a historia do Negrinho do Pastorejo? Com certeza ha de ser uma especie de saci lá do Rio Grande.

— Não. E’ muito diferente. Esse negrinho foi um martir apenas. Sofreu os maiores horrores de um senhor cruel e depois que morreu virou santinho. Hoje não ha por lá casa de gaucho onde o moleque martirizado não represente um papel muito importante — exatamente como nós, os sacis, representamos por cá.

— Mas conte lá a historia desse negrinho.

E o saci contou:

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.