O Saci (8ª edição)/21
XXI
O negrinho
HAVIA um fazendeiro, ou estancieiro, como se diz lá no Sul, que era muito mau para os escravos — isso foi no tempo em que havia escravidão neste país. Uma vez comprou uma ponta de novilhos para engordar em seus pastos. Era inverno, um dos peores invernos que por lá houve, de tanto frio que fazia.
— “Negrinho, disse o estancieiro para um molecote da fazenda, que andava ali pelo terreiro. Estes novilhos precisam acostumar-se nos meus pastos, porisso você vai tomar conta deles. Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para o curral, onde dormirão fechados, depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na contagem um só que seja, você me paga.
O pobre molecote só tinha quatorze anos de idade; mesmo assim não teve remedio senão ir para o campo tomar conta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciado naquela fazenda, de modo que, para começar, logo no primeiro dia um dos novilhos faltou na contagem.
O estancieiro não quis saber de explicações. Vendo que o numero não estava certo, botou o cavalo em que estava montado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremenda sova de chicote. Depois disse:
— “E agora é ir procurar o novilho que falta. Se não me der conta dele, eu dou conta de você, seu grandississimo patife!”
— E lept! outra lambada por despedida.
O moleque, com as costas toda lanhada e em sangue, montou no seu cavalinho e saiu pelos campos atrás do novilho. Depois de muito procurar encontrou por fim o fujão, escondido numa moita.
— "E agora?" pensou consigo. "Tenho de laçar este novilho, mas meu laço está que não vale nada, de tão velho, e eu estou tão escangalhado pela sova que ainda valho menos que o laço. Mas não ha remedio. Tenho que ir até o fim..."
E, aproximando-se com muito jeito, laçou o novilho.
Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de trazer o boizinho por diante, até o curral. Teria ele forças para isso? O laço aguentaria?
Não aguentou. Com meia duzia de sacões o novilho desembaraçou-se do laço, arrebentando-o, e lá se foi pelos campos afora, na volada.
E agora? Voltar para casa, sem novilho e sem laço? O furor do estancieiro iria explodir como bomba.
Voltou.
— "Que é do novilho?" indagou o patrão assim que o negrinho apareceu no terreiro.
— "Escapou, patrão. Lacei ele, mas o laço estava podre e não aguentou, como sinhô pode ver por este pedaço".
Se o estancieiro não fosse um monstro de maldade, convencer-se-ia logo, vendo a ponta do laço, de que o negrinho andara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa escapar não é do laçador, sim do laço. Não pode haver nada mais claro no mundo. Mas o estancieiro, que tinha comido cobra naquele dia, em vez de dar-se por convencido mais colerico ainda ficou.
— "Cachorro! exclamou espumando de raiva. Você vai ter o castigo que merece".
O dito, o feito. Agarrou o negrinho, amarrou-o pelos pés com a ponta do laço e depois de bater nele com o cabo do relho até cansar, teve uma ideia diabolica: bota-lo num formigueiro para ser devorado vivo pelas formigas.
Assim fez. Arrastou-o para um sitio onde existia um enorme formigueiro de formigas carnivoras, arrancou as roupas do coitadinho e deixou-o amarrado lá.
No dia seguinte foi ver a vitima, com a ideia de continuar o castigo, caso o grande criminoso não estivesse morto e bem morto. Chegando ao formigueiro, levou um grande susto. Em vez do negrinho viu uma nuvem que se erguia da terra e logo se sumiu nos ares.
A noticia desse acontecimento correu mundo. Os homens daquelas bandas começaram a considerar o negrinho como um martir que tinha ido direito para o ceu.
Com o tempo virou um verdadeiro santo. Quem quer qualquer coisa, na campanha do Rio Grande, antes de pedi-la a Santo Antonio ou a outro santo qualquer, pede logo ao Negrinho do Pastorejo.
— E ele faz?
— Está claro que faz — sempre que pode. Como sofreu muito, sabe avaliar os apertos dos outros e ajuda-os no mais possivel.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.