O Saci (8ª edição)/26

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XXVI

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PARECE que a mula sem cabeça tem a propriedade de afugentar os outros duendes da floresta, porque depois da sua passagem tudo por ali ficou deserto de seres. Só uma hora mais tarde é que os sacizinhos foram reaparecendo, um por um e ainda ressabiados. Mas reapareceram todos, afinal, e recomeçaram as travessuras, apenas interrompidas pela passagem da Porca dos Sete Leitões e do Capora.

A Porca dos Sete Leitões, é uma misteriosa porca alva como paina, que passeia acompanhada dos seus sete leitõezinhos, fossando o chão em procura de um anel enterrado. Só quando achar esse anel poderá quebrar o encanto e virar na baronesa que já foi. Por suas maldades no tempo em que havia escravos, um feiticeiro negro transformou-a em porca e virou seus sete filhos em leitões.

O Capora é um duende peludo, meio homem, meio mono, que costuma cavalgar os porcos do mato e deter os viajantes para exigir fumo.

Aquele que por ali passou vinha montado num soberbo queixada de enormes presas salientes, tão corpulento e forte que para passar nem se desviava das pequenas arvores — ia derrubando-as.

Nisto um pio de coruja fez-se ouvir perto. O saci apurou os ouvidos, com cara de quem não estava gostando nada daquilo.

— Aquela coruja está me chamando. Está dando sinal de que aconteceu qualquer coisa lá no sitio de dona Benta. Tenho de ir ver o que é.

— E vai deixar-me sozinho aqui? murmurou o menino de dentro do seu esconderijo, procurando dominar o medo que ia chegando. Com o saci ao lado, sentia-se seguro; mas ficar, por minutos que fosse, entregue a si proprio, naquela mata cheia de misterios e inda mais naquela hora sinistra da meia-noite, era duro de roer. Pedrinho, entretanto, dominou-se e disse, fazendo das tripas o coração:

— Pois vá, mas não se demore muito porque... porque gosto muito da sua prosa, ouviu?

Dando uma risadinha de quem compreendia perfeitamente o que se passava dentro do seu companheiro, o saci foi falar com a coruja.

Minutos depois regressou, visivelmente inquieto. Percebendo a mudança, Pedrinho indagou ansioso:

— Que ha?

— Coisa muito grave. Quando saí do sitio de dona Benta, deixei lá uma coruja, que é minha escrava, com ordem de avisar-me de qualquer coisa fora do comum que acontecesse. Pois bem: a coruja acaba de chegar com uma noticia nada agradavel.

— Que é? Diga logo...

— A Cuca apareceu no sitio e furtou Narizinho...

— Não diga! exclamou o menino, com os cabelos arrepiados. Temos que salva-la, saci! Darei tudo quanto você quiser, se me ensinar o meio de arrancar Narizinho das unhas desse horrendo monstro...

A Cuca! Pedrinho ainda tinha bem fresca na memoria a lembrança dessa bruxa das historias que a ama lhe contara nos primeiros anos de sua vidinha. Lembrava-se até duns versos que ela cantava para adormece-lo:

Durma, nenê, que a Cuca já lá vem,
Papai está na roça; mamãezinha,
No Belém.

Lembrava-se que ouvindo essa cantiga sentia uma ponta de medo e fechava os olhos e logo dormia. Depois que cresceu, nunca mais ouviu falar na Cuca, a não ser minutos antes, quando o saci lhe contou que a Cuca era a Rainha das Coisas Feias. Seria verdade? Verdade ou não, tinha de voltar ao sitio incontinenti e de qualquer maneira.

— Vamos embora, saci! Precisamos chegar ao sitio quanto antes para saber com certeza o que ha. Pode ser que a coruja esteja mentindo, mas tambem pode ser verdade.

— Mentira não é, disse o saci. Minha coruja não mente. Mas pode ser que a menina tenha sido raptada por outro duende, que não a Cuca. E’ o ponto que temos de verificar.

— E se for a Cuca mesmo? Que havemos de fazer?

— Não sei. Tenho de pensar nisso. A Cuca é bastante poderosa, e má como ela só. Mas havemos de dar um jeito. Tenho cá uma ideia. Venha comigo.

Sairam do oco da peroba e tomaram o caminho do sitio de dona Benta. A escuridão da noite não embaraçava em nada ao saci, que, como filho das trevas, enxergava no escuro ainda melhor do que no claro. Mas o pobre Pedrinho padeceu um bocado. Só podia guiar-se pela brasa do cachimbo do saci, de modo que tropeçou em muito cipó e toco de pau podre, afundando os pés em formigueiros e buracos de tatú, espinhando-se na cara e nos braços. Mas era tal a sua ansia de chegar, que nem sequer a dor das arranhaduras sentiu.

— Neste andar chegaremos tarde, disse de repente o saci.. Se você é bom cavaleiro, poderemos ir montados num porco do mato.

— Sou. Já montei até num garrote bem taludo, que deu os maiores corcovos do mundo sem conseguir derrubar-me.

— Pois nesse caso, tudo está resolvido. Lá vem em nossa direção uma vara de porcos. Suba a esta arvore; assim que eu der sinal, atire-se de perna aberta para cima do lombo do que vem na frente. Eu irei na garupa.

Assim fizeram. Subiram os dois a uma arvore baixa; logo que o porco chefe passou por debaixo da arvore, Pedrinho e o saci atiraram-se sobre ele, agarrando-se aos compridos pelos do congote. Assustado com aquela manobra, o pobre porco disparou numa galopada louca pela mata afora, na direção desejada pelo saci. Este habilissimo duendezinho tinha jeitos para tudo, inclusive dirigir porcos do mato como se os trouxesse seguros por um bom par de redeas. Pedrinho não percebeu de que modo o saci conseguia isso, nem teve tempo de o perguntar. Todas as suas energias eram poucas para manter-se firme no lombo da cavalgadura de nova especie. Aquela corrida com o saci, dentro da noite, iria constituir a mais arrojada aventura da sua vida. Por mais anos que se passassem, ele jamais poderia esquecer-se dela.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.