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O Saci (8ª edição)/27

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XXVII

Chegam ao sitio



DEPOIS de comprida caminhada, o menino percebeu que já estava em terras do sitio. Viu a casa do tio Barnabé perto da ponte; em seguida, os pastos; e, finalmente, a casa da sua querida vóvó.

No terreiro saltaram ambos do porco, que, aliviado da carga, prosseguiu na correria com maior velocidade ainda.

Entraram. A casa estava silenciosa, de luzes acesas — coisa muito exquisita áquela hora da madrugada.

— Temos novidade, murmurou o menino. Luz acesa a estas horas é mau sinal...

Na sala de jantar encontrou dona Benta sentada na sua cadeirinha, com a cabeça apoiada nas mãos. Ao lado dela, tia Nastacia, escarrapachada no chão. De tal modo absorvidas estavam as duas velhas, que nenhuma percebeu a chegada dos valentes salvadores.

— Que ha, vóvó? foi gritando Pedrinho.

Dona Benta ergueu a cabeça e arregalou os olhos, como se a aparição de Pedrinho fosse um sonho. Tia Nastacia fez o mesmo, mais assustada do que admirada de ver o menino outra vez.

— Pedrinho! exclamou a pobre avó com expressão de esperança nos olhos vermelhos de tanto chorar. Até que enfim você apareceu! Estavamos aqui desesperadas, porque perder um neto já era demais, mas perder dois seria coisa superior ás nossas forças..

— Perder dois? Quer dizer que Narizinho desapareceu?

— Sim, meu filho! Logo que você se sumiu desta casa da maneira mais misteriosa, nada dizendo a ninguem, Narizinho saiu a dar uma volta pelos pastos para ver se encontrava você. Andou por lá gritando: “Pedrinho! Pedrinho!” uma porção de tempo, até que de repente se calou. Julgamos que tivesse achado você e ficamos muito contentes. Mas o tempo foi passando e nada de Narizinho voltar. Tia Nastacia e eu démos uma volta pelo pasto, chegamos até á casa do tio Barnabé e nada. Isso ás tres horas da tarde. Já são duas da madrugada e não tivemos ainda menor indicio de onde possa estar a coitadinha da minha querida neta...

Dizendo isto dona Benta rompeu de novo em choro, acompanhada de tia Nastacia.

Pedrinho contou onde estivera e, depois de consultar em segredo o saci, consolou dona Benta e a preta, dizendo que sabiam onde Narizinho estar e que iriam busca-la.

— E’ verdade isso ou você está me bobeando para me consolar?

Pedrinho, que nunca mentia, sentiu tanto dó das pobres velhas que pela primeira vez na vida resolveu engana-las com uma mentira de bom tamanho. Deu uma risada e disse:

— Não se assuste, vóvó! Narizinho e eu resolvemos pregar uma grande peça na senhora, mas essa peça é um segredo que não posso contar. Só amanhã, ao clarear do dia — e deu uma grande risada.

Dona Benta sossegou um pouco e ralhou severamente com o menino, fazendo ver o transtorno que aquela estranha “surpresa” Ihe causara. Disse que sofria do coração e que, se coisas assim se repetissem, o certo era ir para a cova antes do tempo.

Pedrinho sossegou-a como pode e afinal saiu para o terreiro, gritando que se acalmassem porque dentro de uma ou duas horas estaria de volta com a menina.

Lá no terreiro, só com saci outra vez, voltou-se para ele e disse:

— E agora, amigo saci, que iremos fazer?

— Estou armando o meu plano, respondeu o diabrete. Já fiz uma inspeção pela casa toda e pelo terreiro. Estou na pista do raptor.

— Raptor? repetiu o menino sem nada compreender.

— Sim. Narizinho foi raptada pela Cuca. Descobri o rasto da horrenda bruxa perto da porteira. Temos agora de ir á caverna onde mora a Cuca e ver o que ha.

— Mas se a Cuca é poderosa como você diz, que poderemos fazer?

— Não sei. Lá veremos. O que é preciso é não desanimar. Se ela é poderosa, eu sou astucioso. A astucia inumeras vezes vence a força. Faça das tripas coração e acompanhe-me. O mau foi termos deixado escapar o porco que nos trouxe. Precisamos descobrir nová montaria.

— Isso é facil. O meu cavalinho pangaré está no pasto de dentro. Manso como é, podemos pega-lo e cavalga-lo em pelo.

— Pois vamos pegar o pangaré, concordou o saci.

Não foi dificil. Logo que o cavalinho reconheceu o dono, veio na direção dele no trote. Pedrinho montou, com o saci na garupa, e lá partiu na galopada.

Pedrinho logo percebeu que qualquer animal que o saci montava mudava de modos, ficando não só mais ligeiro do que nunca e fogoso, como ainda com um senso de direção que parecia sobrenatural. Inumeras vezes tinha cavalgado pangaré e galopado nele; nunca, porem, o vira assim tão ardente e veloz. Era como se o saci lhe comunicasse alguma força magica, que não é propria dos cavalos. Tal foi a velocidade desenvolvida pelo pangaré que Pedrinho não pode deixar de dizer:

— Mais parece o famoso Pégaso do que o meu velho e lerdo pangaré! Estou estranhando isto...

— Não estranhe coisa nenhuma, aconselhou o saci. Tudo são misterios que só eu sei e que não vale a pena explicar agora. Não fale comigo, não me atrapalhe. Estou fazendo um grande esforço de cabeça para aperfeiçoar o meu plano de não só lograr a Cuca malvada, como ainda castiga-la como merece.

— Conte ao menos um pedacinho dessa grande ideia, para me consolar.

— E’ uma ideia que aprendi com dona Benta, respondeu o saci.

— Com vóvó? inquiriu o menino admirado. Como isso, se vóvó jamais teve a coragem de falar com você?

— Sim, nunca falou comigo, mas muita coisa do que ela disse eu ouvi de dentro da garrafa. Meus ouvidos são apuradissimos. Lembro-me da historia dum pingo d’agua que ela contou certa noite...

— Historia dum pingo d'agua! repetiu o menino, cada vez entendendo menos. Não posso perceber onde você quer chegar.


— Quero chegar á caverna da Cuca! respondeu o saci brincalhonamente.

Vendo que ele se recusava a contar o plano que tinha na cabeça, o menino calou-se. Esporeado pelo saci, o pangaré aumentou ainda mais a velocidade do galope, de modo que antes da meia hora já se achavam numa região inteiramente nova para o menino.

— Onde estarei eu? ia ele pensando, sem coragem de interrogar o saci, de tal modo o via concentrado nas combinações do seu celebre plano.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.