O Saci (8ª edição)/4
IV
Tio Barnabé
QUEM contou a Pedrinho as primeiras historias do saci foi o tio Barnabé, um negro velho que morava perto da ponte e fôra escravo do pai de dona Benta. Pedrinho tinha ido visita-lo certo dia, expressamente para saber coisas do saci.
— Tio Barnabé, explique-me essa historia de saci. Ouço falar nesse capeta, mas ninguem me diz certo o que é e como é.
— E o negro contou tudo direitinho.
— O saci, disse ele, é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci, fica senhor de um pequeno escravo para toda a vida.
— Mas que reinações ele faz? indagou o menino.
— Quantas pode, respondeu o negro. Azéda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, góra os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta p'ra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que acontece de ruim numa casa é sempre arte do saci. Não contente com isso, tambem atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue dos coitados. O saci não faz maldade grande, mas não ha maldade pequenina que não faça.
— E a gente consegue ver o saci?
— Como não? Eu, por exemplo, já vi muitos. Ainda no mês passado andou por aqui um saci mexendo comigo — por sinal que lhe dei uma lição de mestre...
— Como foi? Conte...
Tio Barnabé contou:
— Tinha anoitecido e eu estava sozinho em casa, rezando as minhas rezas. Rezei, rezei, e depois me deu vontade de comer pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga de milho bem seca. Debulhei o milho numa caçarola, pus a caçarola no fogo e vim para este canto picar fumo p'r'o pito. Nisto ouvi no terreiro um barulhinho que não me engana. “Vai ver que é saci!” pensei comigo. E era mesmo. Dali a pouco um saci preto que nem carvão, de carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na janela. Eu imediatamente me encolhi no meu canto e fingi que estava dormindo. Ele espiou de um lado e de outro e por fim pulou para dentro. Veio vindo, chegou pertinho de mim, escutou os meus roncos e convenceu-se de que eu estava mesmo dormindo. Então começou a reinar na casa. Remexeu tudo, que nem mulher velha, sempre farejando o ar com o seu narizinho muito aceso. Nisto o milho começou a chiar na caçarola e ele dirigiu-se para o fogão. Ficou de cocre no cabo da caçarola, fazendo micagens. Estava “rezando” o milho, como se diz. E adeus, pipoca! Cada grão que o saci reza, não rebenta mais, vira piruá.
Dali saiu p'ra bulir numa ninhada de ovos que a minha carijó calçuda estava chocando num balaio velho, naquele canto. A pobre galinha quasi que morreu de susto. Fez cró, cró, cró... e voou do ninho feito uma louca, mais arrepiada que um ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos e todos goraram.
Em seguida pôs-se a procurar o meu pito de barro. Achou o pito naquela mesa, pôs uma brasinha dentro e pac, pac, pac... tirou justamente sete fumaçadas. O saci gosta muito do numero sete.
Eu disse cá comigo: “Deixe estar, coisaruinzinho, que eu ainda apronto uma boa para você. Você ha-de voltar outro dia e eu te curo”.
E assim aconteceu. Depois de muito virar e mexer, o sacizinho foi-se embora e eu fiquei armando o meu plano para quando ele voltasse.
— E voltou? inquiriu Pedrinho.
— Como não? Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez, ás mesmas horas. Espiou da janela, ouviu os meus roncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo, como da primeira vez, e depois foi atrás do pito que eu tinha guardado no mesmo lugar. Pôs o pito na boca e foi ao fogão buscar uma brasinha, que trouxe dansando nas mãos. — E´ verdade que ele tem as mãos furadas?
— E´, sim. Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma; quando carrega brasa vem brincando com ela, fazendo ela passar de uma para a outra mão pelo furo. Trouxe a brasa, pôs a brasa no pito e sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo o seu sossego.
— Como? exclamou Pedrinho, arregalando os olhos. Como cruzou as pernas, se saci tem uma perna só?
— Ah, menino, mecê não imagina como saci é arteiro!... Tem uma perna só, sim, mas quando quer cruza as pernas como se tivesse duas! São coisas que só ele entende e ninguem pode explicar. Cruzou as pernas e começou tirar baforadas, uma atrás da outra, muito satisfeito da vida. Mas de repente, puff! aquele estouro e aquela fumaceira!... O saci deu tamanho pinote que foi parar lá longe, e saiu ventando pela janela fóra.
Pedrinho fez cara de quem não entende.
— Mas que puff foi esse? perguntou. Não estou entendendo...
— E´ que eu tinha socado polvora no fundo do pito, exclamou tio Barnabé, dando uma risada gostosa. A polvora explodiu justamente quando ele estava tirando a fumaçada numero sete, e o saci, com a cara toda sapecada, raspou-se para nunca mais voltar.
— Que pena! exclamou Pedrinho. Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse saci...
— Mas não ha um só saci no mundo, menino. Esse lá se foi e nunca mais aparece por estas bandas, mas quantos outros não andam por aí? Ainda na semana passada apareceu um no pasto de seu Quincas Teixeira e chupou o sangue daquela egua baia que tem uma estrela na testa.
— Como é que ele chupa o sangue dos animais?
— Muito bem. Faz um estribo na crina, isto é, dá uma laçada na crina do animal de modo que possa enfiar o pé e manter-se em posição de ferrar os dentes numa das veias do pescoço e chupar o sangue como fazem os morcegos. O pobre animal assusta-se e sai pelos campos na disparada, correndo até não poder mais. O unico meio de evitar isso é botar bentinho no pescoço dos animais.
— Bentinho é bom?
— E´ um porrete. Dando com cruz ou bentinho pela frente, o saci féde enxofre e foge com botas de sete leguas.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

