O Sacrifício/II
Um domingo em que a estrada como se adivinhasse a importância especial do dia amanhecera arreada com suas mais belas e frescas louçanias, recebeu Ângelo, ainda na cama, um bilhete de Martins:
Eis o que escrevera este:
"Não há hoje retiro, mas peço-te que não faltes por cosa nenhuma. Temos mangabas excelentes, mangas insignes, e para o jantar feijoada sem rival.
Melhor será que venhas passar o dia conosco, principiando pelo almoço.
Não quero ocultar-te uma circunstância que talvez ignores. Eugênia faz anos."
A casa de Martins nunca oferecera aos que costumavam freqüentá-la tão grata hospitalidade.
Nesse dia, a casa oferecia ainda melhores aconchegos e comodidades do que nos outros, sem contudo ostentar custosas galas. Havia profusão de flores e frutos pelas mesas. O piano surgia dentre moitas de alecrim, habilmente formadas e entrelaçadas com ramos de pitangueira e resedá. Grinaldas de madressilva, em que se entremeavam rosas, pendiam das janelas e das portas. Um salgueiro que ficava na entrada da casa, e junto do qual era costume reunir-se ao anoitecer, nos dias de reunião, a alegre companhia, este mostrava-se enastrado, em todo o diâmetro da copa, de saudades, malmequeres e malva-rosa. Tudo isto era obra das mãos de Martins, para ser agradável à sua mulher, providência daquele remediado e feliz lar.
Mas não era nos arranjos quase gratuitos da mesa que primava, no feliz aniversário de D. Eugênia, a encantadora vivenda da estrada; a sua primazia estava na sociedade que, sem ser numerosa, brilhava aí, mais do que nunca, pelo talento, pelas graças e pela suave elegância, compatível com o campo.
Entre as gentis senhoras que eram presentes, quando Ângelo entrou na sala, apontavam-se D. Maurícia e sua filha D. Virgínia, as quais tinham chegado de Caxangá. D. Maurícia era irmã mais moça de D. Eugênia, e tão querida desta que, divertimento em que a caçula não entrasse, não tinha sabor para a primogênita, por mais alto que estivesse ele na ordem de tais manjares. Procedendo deste modo, D. Eugênia não era senão justa, porque na irmã se encontraram reunidos superiores dotes cuja descrição, pelo menor, demandaria largas páginas.
De há muito desejava Ângelo conhecer de perto este portento, que ele de longe admirava. Todavia nunca o seu desejo pudera ser satisfeito, pelas circunstâncias da vida de D. Maurícia, das quais informaremos o leitor, pelo maior, oportunamente.
Martins apressou-se a apresentar o amigo à cunhada.
— Ninguém me disse quem era V. Exa., mas eu quase dispensava que mo dissessem; porque, por uma como intuição, V. Exa. se me revelou ao espírito logo que entrei.
Esta amabilidade de Ângelo foi recebida com rápido sorriso por Maurícia, e não despertou nas outras senhoras ressentimento, porque fora dito a meia voz.
Maurícia retorquiu:
— Não há que admirar. Posto seja esta a primeira vez que nos vemos, há muito que o senhor é meu conhecido. Martins e Eugênia concorreram para que, antes de lhe falar, já eu lhe rendesse a estima que se deve ao mérito distinto. Deram-me a ler trabalhos seus, que eu não conhecia ainda, e falaram-me sobre suas qualidades com tamanho alvoroço, que chegou para que eu compartisse dele sem os dois sentirem diminuição na sua parte. Eu não tenho competência para ajuizar de produções tão elevadas como o poema marítimo, que o senhor compôs, tendo diante dos olhos o Atlântico revolto e o céu em fogo; mas, a julgar pela impressão que a leitura me deixou, há no senhor um engenho poético de primeira grandeza.
Esta linguagem não se podia estranhar em Maurícia, cujo espírito fora enriquecido pelas jóias do estudo e da melhor educação literária. Seus pais, de costumes severos e de irrepreensível moralidade. Tais costumes e moralidade não haviam desaparecido com eles da família, antes se viam reproduzido nas duas irmãs; e se a Eugênia parecia ter cabido, em partilha, o maior quinhão desta honrada e preciosa herança. era porque, casando-se muito moça, sua vida tomara direção diferente da de Maurícia, segundo havemos de ver. Esta era mais hábil, incomparavelmente mais ilustrada, sem ser menos digna do que a irmã. O centro social, porém, onde se haviam polido os dotes do seu espírito, comunicara-lhe parte de suas propriedades como o vaso novo transmite o perfume de que é formado à água límpida que contém por algumas horas. Maurícia era, por isso, sonhadora, às vezes, arrebatada e irrefletida. Aceitava mais do coração do que do espírito a direção para as suas ações. Uma vezes, perdia; outras, ganhava por sua franqueza. Mas a honestidade, que deve ser a base do caráter da mulher, que não é a cortesã sedutora, ou a barregã desprezível, Maurícia guardava-a intacta, inatacável no fundo de sua alma, como o primeiro dos seus afetos.
As palavras de Maurícia, por inesperadas e quase violentas, deixaram o bacharel um momento silencioso e, para assim dizer, estático. Mas esta impressão cedeu logo o lugar ao espírito, que resgataria a perdida energia.
Ângelo acudiu, então, em resposta:
— Minha senhora, este juízo, sobremodo benévolo, fornece-me antes a medida do seu coração do que a do meu engenho poético.
Nessa ocasião, Virgínia aproximou-se dos dois.
— Apresento-lhe minha filha - disse Maurícia ao bacharel. Não é feia e já é uma moça casaidora. Não cores, Virgínia! O Sr. Dr. Ângelo não te quer para noiva. Demais já estás comprometida com Paulo.
— Como! - disse Ângelo. Repete-se agora aqui o inocente idílio da ilha da França?
Maurícia voltou-se para Ângelo:
— É singular o que lhe vou referir - disse.
— Mamãe! - advertiu Virgínia, mostrando as cores do pejo nas faces.
— Não sabia que o noivo de Virgínia se chamava Paulo? O acaso tem caprichos como se pertencesse ao sexo feminino. Mas a verdade é que estes novos namorados não desdizem os outros. O senhor não imagina quanto eles se amam, nem em que consistem as demonstrações dos seus afetos.
— Mamãe, se a senhora continuar a falar, eu vou-me embora.
E Virgínia voltou ao seu lugar.
— Dão para um poema - prosseguiu Maurícia - os inocentes amores destas crianças. São duas crianças como nunca vi outras tão ingênuas e tolinhas. Havemos de conversar sobre este assunto, porque preciso aconselhar-me com um advogado. O senhor está definitivamente morando em Recife?
— Sim, minha senhora; trato até de ir buscar minha família.
— Desejo que me dê parte de sua chegada.
— Meu pai tem muito bom coração e minha mãe é uma excelente amiga. Terei o maior prazer em aproximá-los de V. Exa.
— Havemos de estreitar as nossas relações, Dr. Ângelo. Os nossos sentimentos parecem irmãos.
— Há simpatias irresistíveis, quase fatais.
— É certo; há. Eu posso dar testemunho disto.
— Quando Martins e D. Eugênia, prosseguiu o advogado, desafogando em meu peito a sua mágoa, me contaram pela rama os padecimentos de V. Exa., senti, não piedade, minha senhora, porque está muito acima deste sentimento, mas uma como ternura, uma como suavidade afetiva, que me deixou no coração menos a comoção do pesar, que a da partilha na mesma dor.
— Agradecida. E todavia eles não lhe contaram um quarto dos meus padecimentos - redargüiu Maurícia.
E ficou por um instante pensativa.
O contentamento, porém, reinava em todos tão largamente em casa de Martins que, se a garra adunca de uma recordação penosa imprudentemente arranhara o coração de Maurícia, depressa a aura saudável que enchia aquele risonho mundo reparou o estrago com o bálsamo que trazia do ar ambiente.
Chegara a hora do almoço.
Ângelo deu o braço a Maurícia e encaminhou-se com ela para a sala interior. Aí já estavam D. Sofia com sua filha Sinházinha, e D. Rosa com sua sobrinha Iaiá, que moravam nos primeiros sítios, à direita do de Martins.
Chegaram depois Artur e Meireles, estudantes da Faculdade e tomaram assento entre Salustiano, empregado público, e Azevedo, rapaz rico, que chegara de Lisboa seis meses atrás, e devia seguir para a Bahia, a fim de matricular-se na Faculdade de Medicina.
Ângelo sentou-se defronte de Maurícia.
Seus olhares trocavam-se magneticamente, e sem inteligência, se entendiam.
Mas por que se entendiam eles? Ângelo e Maurícia não eram amigos.
Viam-se pela primeira vez. Maurícia não tinha o direito de amar a nenhum homem, porque era escrava de um dobrado dever de esposa e mãe.
Entremos no exame do dever.