O Sacrifício/III

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Maurícia fora educada em Paris, onde os talentos com que a natureza a brindara se revelaram logo nos primeiros exercícios escolares com tanto brilho e pujança que dentro de pouco tempo ela foi objeto de espanto para os mestres, e de inveja para as condiscípulas. A diretora do colégio, por dar talvez às pessoas que a visitavam idéia aproximada do merecimento da menina, designava-a com este apelido - Petit Brésil .

— "Voulex - vous voir mon petit Brésil? - perguntava ela aos visitantes. Elle est lê premier talent de mon college. Elle fait mon orgueil. C'est un prodige. Elle est en soi méme toute la fulguration et toute le vie de la nature intertropicale"

Não estava ainda moça, quando já lhe saíam casamentos vantajosos; um chegara a ser brilhante. Maurícia recusou todos a pé juntos. Quando a consultavam em assuntos de casamento costumava dizer em resposta:

— Quero levar para o Brasil o meu coração inteiro ainda. Meus pais têm o direito de o possuir exclusivamente por algum tempo, depois da minha volta a seus braços.

Se insistiam em resolve-la a aceitar o partido que se lhe apresentava, dizia Maurícia graciosamente:

— Esta é boa. Dizem que os brasileiros são selvagens, e querem ter uma brasileira não para mandarem para o Jardim das Flores, mas para ficarem com ela no seio de uma família. Pois estão livres disso. A selvagem há de tornar às suas florestas, a fim de viver como dantes, com as cobras e as maracajás...

Maurícia dizia isto por pirraça, não por ódio ou rancor aos franceses, aos quais votava grande afeto. Em seu conceito, o povo francês era o primeiro da Europa, e seria o primeiro do mundo, se não houvera o americano, para o qual ela possuía a mais estranhável admiração. Seu espírito era livre, quase republicano. Quando alguma vez a conversação caía sobre política, objeto que parecia merecer-lhe a mais viva simpatia, não deixava sem algumas rajadas Napoleão III, então no zênite do seu poder. Maurícia concluía sempre com estas palavras:

— Este tirano, este inimigo das liberdades francesas, não há de acabar no trono da França.

Palavras proféticas, que eram então as de quase todo mundo e tiveram a mais estrondosa confirmação.

Quando chegou ao Brasil, poder-se-ia comparar com o diamante por nome de Regente, que brilha na coroa da França ou a Estrela do Sul, de que é dono o joalheiro Halphen; não tinha preço; seus dotes constituíram um tesouro inestimável.

Suas formas eram corretas e esplêndidas. Os cabelos pretos faziam realçar a alvura da pele fresca e radiante. O olhar e o sorriso, que traziam todos os feitiços da graça, tinham suavidade e paixão, meiguice e fogo.

Mas o encanto mágico dessa fúlgida criatura estava na voz branda, harmoniosa, incomparável. Tinha havido capricho na educação desta prenda natural da menina. Quem a ouvia uma vez, desejava passar o restante da vida junto dela para a ouvir sempre.

Um dia, a sorte virou, e tornou-se madrasta daquela para quem tivera todos os afetos e liberalidades matinais.

Os pais de Maurícia empobreceram da noite para o dia, e faleceram dentro de breve tempo. Com esses dois desastres irreparáveis, um dos quais sucedeu pouco depois do outro, chegaram para Maurícia os dias nefastos. Leis fatais decidiram do seu destino cruamente. O jardim da sua existência mudou-se em região desolada. Enfim - encurtemos esta história - o brilhante inapreciável foi parar no poder de um senhor grosseiro e mau; e porque o espírito que teve a sua liberdade raras vezes se deixa tiranizar, a não ser por um processo lento e artificioso que estava acima da capacidade do marido de Maurícia, fugiu esta do Pará, onde morava, para o Recife, trazendo consigo a pequena Virgínia. Depois de muitos incidentes inteiramente estranhos ao nosso caso, aceitou ela o partido, que lhe fizera um senhor de engenho de Caxangá, para que ensinasse francês e música às suas filhas.

Tornemos a casa de Martins.

O almoço passou sem coisa de maior. Recitativos, então muito em uso, um pouco de canto, um pouco de piano, alguns trocadilhos de Azevedo, insigne neste gênero, e até charadas em que ninguém levava a melhor a Martins, encheram as horas que medearam entre a primeira e a segunda refeição.

As quatro da tarde, Martins convidou os hóspedes a uma digressão pelo sítio.

Pouco adiante da casa, começava um galeria de mangueiras seculares, cujas folhagens, por densas de si mesmas, e por emaranhadas de cipós, não deixavam passar um raio de sol. Era debaixo da abóbada formada por essa vasta coberta de verdura, que estava a mesa. Na extremidade anterior da galeria, ajeitando os galhos, as folhas, os cipós, tinha feito Martins uma como gruta natural de aprazível aspecto. Estavam ali o cozido, os assados e as demais comidas. Na extremidade posterior, via-se outra gruta mais perfeita e de maior âmbito. Aí a Natureza procedera a fantasia. A última mangueira, porventura a primeira em idade e proporções gigantescas, tinha no tronco uma abertura, que vinha do chão até a altura de um homem. Três pessoas emparelhadas caberiam no bojo, que do lado da mesa era inteiramente aberto. Ali dentro, sobre pedras que imitavam as saliências de uma rocha subterrânea, viam-se vinhos, frutas e doces graciosamente dispostos.

— À proverbial hospedagem e ao fino gosto de Martins devemos este jantar bucólico, digno de ser decantado pela musa de Mantuano - disse Artur, tanto que seus olhos deram com aquela risonha maravilha.

— Isto está soberbo - esplêndido! - acrescentou Salustiano.

— Esplêndido, não - observou Azevedo. Nem um raiozinho de sol penetra aqui.

— Digo esplêndido no sentido moral - retorquiu Salustiano.

— No sentido moral! - exclamou Azevedo. Tudo isto é muito belo, mas pertence à matéria.

— Não te aborreça, senhor. O que eu quero dizer - e todos os homens de talento por certo me entenderão - é que o Martins confirmou com esta obra...

— Que obra? - inquiriu Artur.

— Cobra! Pois aqui há cobra? - perguntou Azevedo.

— Deixem que eu acabe - tornou Salustiano. Quero dizer que Martins é o primeiro poeta desta estrada.

— Ainda as senhoras não viram a melhor - ajuntou Eugênia, a quem muito aprazia o caminho que levava a festa dos seus anos.

— Mostre-nos o melhor, o melhor, D. Eugênia - disse o futuro estudante de Medicina.

— O melhor está nas duas grutas - disse ingenuamente D. Rosa.

— Nas duas grutas! - repetiu Azevedo. Sim, nas grutas é que costuma haver o melhor.

— Aproximem-se - prosseguiu D. Rosa - venha ver, D. Maurícia chegue para cá, Sr. Dr. Ângelo. Que linda coisa, não é?

E a anciã indicava o trabalho de Martins.

— É verdade. Tem mãos este Martins - disse Salustiano.

— E pés, também - acrescentou Azevedo.

— Uma destas grutas - disse Martins - é mitológica, a outra, pode-se dizer, cristã ou antes católica.

— A gruta de Calipso está insigne - observou Ângelo.

— E a dos vinhos, não? - perguntou Sinhazinha.

— Pudera, não! - respondeu Azevedo.

— A gruta de Calipso! - exclamou Artur, aproximando-se. Grande Martins! Eu logo vi que, andando pela Ilha de Chipre, não havias de perder o modelo das morada da deusa. Em que tempo andaste por lá?

— Mas, qual é a outra? - indagou Maurícia com ares de curiosa.

— É a do padre Aubry - respondeu Martins. É a gruta que vem apontada em Átala.

— Muito bem, muito bem - tornou Maurícia. Dou-te os parabéns, Eugênia, pela festa original que o teu natalício inspirou a teu marido.

— E dizem que os poetas não servem para maridos - observou Artur.

— Qual será dentre as senhoras presentes que deverá ocupar esta cabeceira de mesa? - perguntou Azevedo.

— É a Maurícia - disse Eugênia.

— Eu?

— Ótima escolha.

— Muito bem. Não podia ser melhor.

— Mas quem há de ser o Telêmaco? - observou Salustiano.

— Olham como se inculca o freguês - disse Azevedo a meai voz, que todos ouviram.

— O Telêmaco há de ser...

— Pois isto ainda é objeto de dúvida? O Telêmaco é Ângelo - disse Artur, revelando curto despeito.

— E quem será Átala?

Eugênia acudiu logo:

— É Sinhazinha.

— Eu, não - disse esta. Átala deve ser Virgínia.

— Eu já sou Virgínia - retorquiu esta com toda a graça.

— Bravo! - clamou Salustiano.

— Pois a Senhora não quer ser Átala? - perguntou Azevedo a Sinhazinha. Teve tão boa vida!...

— E até uma boa morte.

— E você mesma há de ser, Sinhazinha - disse Eugênia.

— Não quero.

— Perdão, minha senhoras. Átala não era feia, nem velha para que alguma de V.Exas. se julgue desdouro em representá-la.

— Mas morreu sem casar - observou Azevedo.

— E acabemos logo com isto que a sopa está esfriando.

— Se me concedem autoridade para cortar a contenda, isto acaba já.

— Tem toda a autoridade para isso D. Maurícia - disseram os homens.

— Vá sentar-se defronte de mim, Sinhazinha.

— Muito bem,

Quando Sinhazinha se encaminhou para a outra cabeceira da mesa, ouviu-se a voz de Salustiano:

— Mas o Chactas, o Chactas é que quero saber quem será.

— O Chactas não aparece. Está no mato - disse Azevedo. Sentemo-nos, e vamos à sopa antes que ela chegue, que era capaz de engolir mangueiras e tudo.

— E nós o que ficamos sendo? - perguntou ingenuamente D. Rosa, que a todo transe queria o seu papel na representação.

— As senhoras ficam sendo as ninfas da gruta - disse Azevedo rindo-se.

E nesse riso foi acompanhado por quase todos os que estavam presentes. D. Rosa suspeitando de segunda intenção no que dissera Azevedo, contrariou o gracejo como se tratasse de ir para o inferno.

— Credo! Antes uma boa morte.

— E nós, nós homens? - perguntou Salustiano.

— Vocês são os selvagens, os Moscogulgas - acudiu incontinente Azevedo.

A hilaridade foi geral.