O Sacrifício/IV

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As grutas, as ninfas, os selvagens, a deusa fabulosa, a jovem cristã, foram temas durante todo o jantar a mil gracejos, que não concorreram pouco para aumentar a animação da festa natalícia, belíssima pintura a que a Natureza, ajudada de um pouco de fantasia, servia de quadro encantador.

Quando finalizou o jantar, Martins propôs o passeios de costume pelo sítio, mas pediu que o dispensassem dele, por ter de ir à Encruzilhada a falar com dois músicos. A festa não podia acabar senão em dança.

— É quase sol posto, mas antes de anoitecer, estarei de volta.

A companhia dividiu-se, sendo Ângelo, Maurícia, Eugênia, D. Rosa e D. Sofia os que menos apressados se mostravam em deixar a entrada da galeria, onde haviam ficado, enquanto as outras senhoras e rapazes se dirigiam para a estrada.

— Onde é que fica a cajazeira - perguntou Ângelo - em que o ano passado Martins entalhou a canivete, em honra de seu aniversário, um verso de Virgílio, D. Eugênia?

— Daquele lado, já ao chegar ao Beco das Almas. É a última árvore do sítio, e está encostada à cerca, Virgínia sabe onde é.

Maurícia chamou, então, pela filha, que ia com Sinhazinha nas pisadas dos outros em direitura para a estrada.

— Ora, mamãe - disse Virgínia - Sinhazinha está ali esperando por mim para irmos à Conceiçãozinha, onde há, aqui a pouco, um casamento.

— Pois vá, minha filha. Iremos com Eugênia.

— Vá nesta direção e tome depois para a direita, que há de dar com a cajazeira - disse a menina. - Olhe: de lá se vê a capelinha. Nós podemos ver-nos dos nossos lugares; e se mamãe não me vir é que fomos à casa de D. Teodora saber se Terezinha já chegou de Boa Viagem.

A menina foi juntar-se à amiga, enquanto Maurícia voltava-se para convidar Eugênia a servir-lhe de companhia. Mas já não a encontrou; tinha desaparecido pelo outro lado da galeria com as duas senhoras a quem fora mostrar uma leira onde o coentro pululava cheio de viço, não obstante ser seca a estação.

— Deixaram-nos a sós - disse Maurícia - mas não importa. Podemos ir, que havemos de acertar com a árvore.

— Não deve ser muito distante - disse Ângelo.

— Mas o sítio é tão largo que daqui não vemos a cerca.

— Pelas pontas das árvores, podemos orientar-nos.

Ângelo assim falando e andando, pôs-se a procurar com a vista os ramos superiores da cajazeira, mas foi-lhe impossível o que um momento antes lhe parecera fácil. Cajueiros ramalhudos, mangueiras copadas interpunham-se entre eles e a árvore desejada.

Seguiram, entretanto, na direção que a menina indicara.

— Como eu invejo a felicidade de Martins, D. Maurícia - disse Ângelo.

— E eu a de Eugênia - acrescentou Maurícia.

— É verdade. Vivem exclusivamente um para o outro. Parece que nos laços que os estreitam nunca se deu o menor estremecimento.

— Para ser agradável à mulher, Martins anda sempre inventando festas em que sua fantasia tem grande e feliz intervenção, como acaba de ver.

— Quando o casamento traz este resultado, não há dúvida de que é uma delícia. Se eu encontrasse uma mulher, que por suas grandes qualidades tão valiosa prova oferecesse em favor do casamento, decididamente casava-me por que já me vai parecendo triste demais a solidão que reina em minha alma desde os primeiros anos da juventude.

— Na sua idade, é realmente para admitir que o coração ainda esteja sem o ídolo de que precisa para ser o verdadeiro templo da vida.

— Pois é verdade. Tenho ainda inteiro e virgem o meu amor; e conjeturo que será fácil àquela que se tornar digna dele exercer sobre mim a maior das tiranias; porque o meu amor tem em si todos os meus afetos, toda a minha alma.

Compreendendo os perigos desta conversação, Maurícia, que ia sentindo pelo bacharel afeição que a assustava, disse-lhe como para dissuadi-lo de prosseguir o caminho que haviam encetado.

— Parece que já não chegaremos com luz do dia à cajazeira. Está escurecendo rapidamente.

— Pois então voltemos, D. Maurícia - respondeu Ângelo.

— A estrada está perto, não?

— Está aqui, a nossa direita, obra de cem passos. Parece-nos estar mais longe, pelas sombras das árvores, que não nos deixam ver com exatidão a distância.

— Vamos à Conceiçãozinha. Talvez já encontremos os noivos.

— Podemos atalhar o caminho por estes cajueiros. A cerca ali adiante está quebrada, e oferece fácil saída.

Ângelo não se enganara. Em poucos minutos, chegaram ao boqueirão. Na largura de uma braça, a cerca estava de fato aberta; mas a vara inferior, na altura dos joelhos de um homem, mostrava-se ainda suspensa pelos cipós que a traziam presa às estacas. Ângelo, apoiando-se sobre a vara, atravessou da outra banda, e daí ofereceu a mão à Maurícia para a ajudar a transpor a cerca. Mal tinha ela posto o pé na travessa, quando deu um grito, que não parecia arrancado somente pelo susto, mas também pelo terror; e, em vez de passar para o outro lado, recuou amedrontada e meteu-se por trás do tronco de um cajueiro próximo, como quem queria ocultar-se.

Ângelo, assustado, acudiu logo:

— Meu Deus? Que é que tem, D. Maurícia?

Esta respondeu, como quem cobrava os espíritos que um momento a tinham desamparado:

— Desculpe-me, Sr. Dr. Ângelo, Não tenho nada, não foi nada.

— Mas por que deu este grito?

Ângelo já estava ao pé de Maurícia, e ambos quase ocultos pela folhagem do cajueiro.

— Eu poderia dizer-lhe que tinha sentido uma cobra passar por cima dos meus pés, e tudo estaria explicado; mas não seria esta a verdade.

— Diga então o que foi.

Ângelo estava profundamente impressionado. Tinha ainda na sua a mão de Maurícia, e lhe sentia o frio e o tremor, conseqüências da violenta impressão.

— Estou deveras assustada, Sr. Dr. Ângelo. Veja como me bate o coração. Não vi uma cobra, vi um demônio.

Assim falando, ela levou a mão do bacharel ao seu peito e a apertou contra ele. Ângelo, através da onda de cambraia e rendas, sentiu as pulsações violentas desse coração que ele desejara pulasse, não de susto, mas de amor por ele.

— Mas o que foi que lhe ocasionou tamanho susto?

— Quando o senhor me estendia a mão para me ajudar a sair, não sentiu passar pela estrada um homem?

— Sim, sim; ele ainda ali vai.

— Nunca em vi em homem algum tamanha semelhança com meu marido.

— Com seu marido! exclamou o bacharel sentindo fel nos lábios. Meu Deus! Tal não diga, por quem é. Seria a maior das desgraças.

— Para mim não há dúvida que seria isso o maior dos infortúnios.

— E para mim também - acrescentou o bacharel; por que... Oh, eu não devia dize-lo, mas não está em mim prender no coração, como se prende uma cobra dentro de um frasco, o sentimento que a senhora veio despertar nesta morada de solidão e trevas.

— Saiamos já, Sr. Dr. Ângelo, disse Maurícia, como quem não tinha ouvido aquela perigosa revelação. E voltemos antes para casa; já não quero ir com as meninas da capela.

Do lado de fora, a estrada estava deserta como dentro do sítio.

— Havia de ser ilusão sua, minha senhora, disse Ângelo, oferecendo o braço a Maurícia. O homem que passou parece-me ser um que mora aqui adiante.

— Talvez; mas, então, é a cópia fiel do Bezerra. Depois de três anos de liberdade e tranqüilidade, ser-me-ia por extremo penoso pensar, ainda que fosse por um momento, em voltar à antiga vida de humilhação e martírio, porque eu detesto esse homem, que não era para mim, que foi meu algoz por uma dúzia de anos, que hoje só me merece compaixão ou esquecimento. Como não há quem nos ouça, quero contar-lhe um episódio de minha escravidão conjugal; por ele, poderá o senhor ajuizar do baixo drama em que a mim me coube o papel de vítima, e a ele o de tirano sanguinário. Depois de proibir que eu conversasse em francês com as minhas amigas, impôs-me que não tocasse mais piano. Perguntei-lhe o porque; respondeu-me que ouvira na tarde anterior, por ocasião de eu estar tocando umas melodias de Schubert, um vizinho dizer que eu não devia ter casado com ele. Sabedora do quanto Bezerra era capaz, fechei imediatamente o meu piano, que assim tomava parte no meu infortúnio e martírio.

— Vejo que o seu sofrimento foi na verdade original.

— Oh! o senhor que tem espírito elevado, e no coração dotes surpreendentes, não imagina até onde pode descer um homem de curto entendimento, sem educação, sem alma. Ouça. Não podendo resignar-me inteiramente à privação daquelas vozes sublimes que eram o meu único conforto, que desde criança não se separavam de mim, que era as irmãs da minha voz, espiei qualquer momento em que o meu tirano se dirigisse

a algum arrabalde, deixando-me livre algumas horas. Esse momento ofereceu-se uma tarde em que Bezerra teve que entender-se com certo sujeito sobre negócios que lhes eram comuns. Logo que o vi montar a cavalo, corri como louca ao meu piano. Havia quase três meses que estava muda como túmulo aquela arca dos meus particulares afetos. Sobre as teclas caíram e correram meus dedos desvairados e febricitantes. O prazer que senti, ouvindo os primeiros acordes, desceu tão intensamente ao fundo do meu sistema nervoso que de meus olhos saltaram lágrimas, como contas de cristal, sobre a face de marfim insensível e fria, mas amiga. Irresistivelmente, a voz saiu-me da garganta, com a ternura apaixonada que nesse momento me transbordava do coração, ninho de sentimentos muito diferentes dos de Bezerra. Nunca a musa da harmonia, ao que me parece, havia socorrido tanto o meu canto com a sua paixão.

— Muito bem - disse Ângelo comovido.

— De repente, uma voz ressoou no âmbito da sala: "-Bravo! Bravo!" - dizia a voz.

— Era a de seu marido?

— Não, era a do tal meu vizinho, a quem meu marido ouvira dizer que não devia ter casado com ele. Este vizinho era um solteirão inofensivo e algum tanto parvo. Tinha chegado à varanda e daí alongava o pescoço para dentro da minha casa. - Estou de longe mesmo apreciando os seus dotes. - continuou ele, e mal tinha acabado de proferir estas palavras, senti sobre as mãos, que ainda percorriam o teclado, uma pancada violenta: o piano fora rudemente fechado, contra os meus dedos. Bezerra estava de pé junto de mim, fingira que ia para longe para pegar-me em culpa.

— Adivinho o resto - disse Ângelo.

— No mesmo instante - prosseguiu Maurícia - Bezerra corre à varanda com o intento talvez de pegar o solteirão pelas goelas e sufocá-lo; mas já não o encontrou; tinha fugido. Todo o seu furor se voltou, então, contra mim. Ergueu o chicote, que mal tocava a anca do seu cavalo. Eu estava de pé, e olhava para ele, horrorizada; nem me ocorrera fugir para um quarto e trancar-me por dentro. Mas quando, para que eu representasse todo o papel de escrava, só me faltava receber o golpe infamante, o braço de Bezerra descaiu, e ele empalideceu. Acovardara-se, vendo algumas gotas de sangue que tinham caído dos meus dedos sobre o meu vestido e aí deixavam escrita em caracteres vermelhos a história do seu crime. Foi esta brutal afronta que trouxe a nossa separação, pela minha fugida com minha filha para o Recife.

— A senhora tinha razão, hoje, quando me dizia que eu não sabia uma quarta parte dos seus padecimentos - disse Ângelo.

— Tenho ou não motivos de temer qualquer encontro com semelhante homem? Ah! Sr. Dr. Ângelo, se os maldizentes soubessem toda as particularidades da vida daqueles em quem aferram o dente envenenado, talvez recusassem praticar o seu torpe ofício.

Essas palavras foram proferidas alguns passos antes da entrada da casa de Martins.

Fizeram aí uma pequena parada. Pelas portas abertas, via-se de fora a sala ao clarão das luzes.

— Meu Deus! exclamou Maurícia. Veja quem está ali.

E apontou para a sala.

A um lado da mesa, três pessoas estavam sentadas, Martins, Eugênia e Bezerra.

Maurícia sentiu-se enfraquecer, e inclinou-se, para não cair, sobre o braço de Ângelo.