O Sacrifício/IX

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Passados alguns momentos, Maurícia enxugou as lágrimas, ergueu a cabeça e volveu à roda de si um olhar a modo de desvairada; era simplesmente perscrutador. Meiga e triste como sempre, tinha Virgínia agora os olhos postos em sua mãe. Esta compreendeu imediatamente o pensamento daquela. Era uma súplica que ela lhe fazia mudamente, mas do íntimo da alma. A tímida menina não se animava a repetir com os lábios as palavras de há pouco, que tinham suscitada à aflita mãe as acerbas expressões indicativas de sua grande pena.

Mas Maurícia, contra o seu costume, teve bastante ânimo para lhe não deferir a súplica.

— O que quer o Sr. Albuquerque é impossível, Virgínia - disse ela resolutamente. Se a tua felicidade depende de ajuntar-me novamente àquele de quem me separei, sentindo nas faces a impressão de uma ameaça e no coração os espinhos de inumeráveis afrontas, então serás infeliz, pobre filha, porque semelhante sacrifício é superior às minhas forças. Não me separei de teu pai por leviana, caprichosa ou desonesta; separei-me por ter conhecido que maior desgraça seria para mim e talvez para ele, continuarmos unidos do que separados. O muito que então padeci está constantemente a pôr-me diante dos olhos o muito que deverei padecer se tornar à sua companhia, na qual não tive uma impressão de verdadeiro prazer que resgatasse as humilhações, as contrariedades, os vexames, os desgostos que me causou, sem dar mostras do menor pesar, antes revelando que se comprazia em ver-me representar o papel de vítima. Tem paciência, minha filha. Deixaremos em poucos dias esta casa. Outra há de ter aberta para nós as suas portas. Não tenho vivido até hoje do meu trabalho? Ele não me há de faltar fora daqui. Tenhamos confiança em nós.

Virgínia, como se acabasse de ouvir a sua sentença de morte, mostrou no rosto dobrada expressão de mágoa íntima. Levantou-se e pegou uma das mãos de sua mãe, que levou aos lábios por certo requinte de ternura.

— E Paulo, mamãe? - interrogou com voz chorosa e comovida.

Nesse momento, bateram à porta do quarto. Virgínia desdeu a volta da chave, e a luz da vela que ardia sobre a mesa a um dos ângulos do aposento esclareceu a face de um homem. Era Albuquerque.

Maurícia foi ao seu encontro. Ele pegou-lhe da mão e conduziu-a para junto da mesa. Sentaram-se aí, tendo ambos nos rostos os tons sombrios do pesar que traziam no espírito. Foi Albuquerque o primeiro que falou.

— Não quis deixar para amanhã o que eu devia dizer-lhe já.

— Estimo muito saber que o senhor dá a devida importância a um acontecimento que parece destinado a influir diretamente na minha vida.

— Que é isto, D. Maurícia? - interrogou o senhor de engenho com ares de quem estranhava o procedimento dela, que dera causa à sua visita. O que foi que tão inesperadamente a compeliu a praticar um ato contrário a todo o seu passado de há três anos? Todos notamos que a senhora, que sempre deu provas de ajuizada, se recusasse a aparecer a seu marido, cuja volta à minha casa fora assentada por mim no pressuposto de que lhe mereceria, quando não a satisfação do seu dever logo que eu chamasse para ele a sua atenção, a prática ao menos de uma delicadeza.

— Neste ponto, o senhor tem razão, e eu peço-lhe desculpa, disse Maurícia. Fui descortês para o senhor, mas não podia deixar de ter semelhante descortesia quando o meu sossego exigia que destruísse imediatamente no espírito do meu marido qualquer esperança de reconciliação que ele alentasse. Eu devia ser cruel para esse homem, embora hoje se considere honrado com o título de meu marido, outrora puro objeto de desprezo. Eu precisava dar uma demonstração decisiva da minha eterna esquivança a quem só esquivança me merece.

Albuquerque não esperava de sua hóspede palavras tão positivas.

— Quanto me parece extraordinário o que acabo de ouvir! - disse. É então certo que a Sra. D. Maurícia insiste na sua recusa? É então certo que a senhora de educação distinta, de moralidade até hoje inatacada, que recebi em minha casa, quando as casas dos seus parentes se lhe mostravam fechadas, umas por não querem eles recebê-la, outras porque não o podiam, está resolvida a deixar-me ficar mal em um empenho em que entrei com a minha honra? Por mais que o diga, não acredito nas suas palavras. Mas não é isto o essencial nesta ponderosa questão. Não é a descortesia, não é o desamor, não é a ingratidão...

— Senhor, atalhou Maurícia, mereço-lhe mais consideração e mais justiça. Sou sua hóspeda, é verdade; devo-lhe atenções e gratidão, é certo; mas não pratiquei antes do ato que ainda se discute, nenhum outro que lhe dê o direito de magoar-me gratuitamente, quando já não tenho no meu coração espaço para novas mágoas.

Albuquerque sobresteve durante um momento a esta justa e elevada represália.

— Não se ofenda, observou com moderação; não vim aqui para ofendê-la. Voto-lhe particular estima. Quero vê-la superior a qualquer juízo menos digno. Mas ponhamos de parte estas circunstâncias. Quer a senhora saber ao que dou a primeira importância neste assunto? Não é às relações próximas ou remotas que porventura me liguem a ele; não é a parte com que entre nele a sua pessoa; é ao futuro desta inocente e infeliz menina para quem tenho hoje os sentimentos de pai.

Assim falando, o senhor do engenho apontava para Virgínia, que, sem proferir uma só palavra, mas sem perder nenhuma das que se proferiam, tinha os seus lindos e meigos olhos a relancearem inquietos e observadores, ora para Albuquerque, ora para Maurícia; e no que dizia cada um dos dois buscava penetrar o segredo de sua duvidosa sorte.

— Agradeço-lhe o interesse que revela por esta menina que eu considero órfã de pai, tornou Maurícia; mas se o Sr. Albuquerque sente o que diz (e eu não tenho razão para pensar que não sente), por que prolonga uma situação que lhe deve trazer dissabor, e que está em suas mãos extinguir neste momento?

— Em minhas mãos! - exclamou o senhor do engenho com manifesta estranheza. O que está em minhas mãos ou eu já fiz, ou o farei oportunamente. Põe em dúvida o empenho que tenho empregado em trazer a harmonia onde ainda reina contra a minha vontade a desinteligência mantida por uma das duas partes? Queira a senhora renunciar ao seu capricho, que verá amanhã mudada toda esta situação desagradável. Queira-o, que terá em poucos dias casa para morar com seu marido, e ele terá meio de vida pouco rendoso, mas decente. Queira-o, que sua filha dentro em pouco estará amparada e verá o seu futuro inteiramente livre das incertezas que atualmente o escravizam.

— Permita-me fraqueza?

— Pode dizer o que quiser.

— Não vejo razão, Sr. Albuquerque, em fazer depender de um passo que me repugna, porque nele adivinho o meu acabamento, a sorte de minha filha a quem vota sentimentos paternais de que tem dado manifestos testemunhos.

— Não vê razão!

— Que é que tem, senhor, que eu continue separada do meu marido, para que Virgínia não seja digna de Paulo?

Ouvindo tais palavras, Albuquerque franziu os sobrolhos com evidente mostras de desagrado. Neste franzir subira-lhe à face o preconceito de muitos anos. O passado orgulho da família estava ali expresso.

— A senhora teve coragem de me dizer isto? - perguntou ele, inteiramente mudado. Repugna à senhora renunciar a uma opinião pouco justificável e muito prejudicial à sua reputação de discreta e ajuizada; a mim, porém, não deve repugnar, no seu entender, a ligação de meu filho com uma família que, se a alguns pode parecer simplesmente infeliz, pode parecer a outros, por esta mesma infelicidade, inferior a uma aliança sem nota! Vejo que não nos entendemos. Proceda como quiser, minha senhora. Tenha, porém, uma certeza, que Deus queira não lhe seja fatal: se sua filha vier a ser infeliz, não serei eu vítima do remorso que esta eventualidade deve ocasionar.

Albuquerque saiu sem dizer mais uma palavra. Maurícia e Virgínia, também, nada disseram, mas, enquanto a primeira parecia absorta em ocultos e imperscrutáveis pensamentos, a última desafogava em lágrimas e soluços a sua desventura.

Seriam oito horas da noite quando um novo personagem foi introduzido no aposento de Maurícia. De todos era o que mais temia. Era Paulo.

Trazia no gesto a expressão de indescritível tormento interior.

Tanto que ele entrou, Virgínia correu a encontrá-lo; abraçou-se com ele; e confundiu com as lágrimas dele as suas lágrimas.

— É seu pai que quer esta desgraça, Paulo - disse-lhe Maurícia.

— Como tudo se mudou num instante! - respondeu o rapaz. Éramos tão felizes, e de repente a desgraça veio sentar-se entre nós. Meu Deus, eu não hei de ter ânimo para ver esta separação.

— Não havemos de separar-nos, não havemos de separar-nos! - exclamou Virgínia. Paulo, Paulo, eu não posso viver um momento sem você.

— Nem eu sem você, Virgínia.

— Mas se o Sr. Albuquerque assim o quer... - acrescentou Maurícia.

— A senhora não há de sair daqui, D. Maurícia. Não haverá forças humanas que possam tirá-la da casa de meu pai. Seria preciso que eu morresse primeiro. Antes disso, não. Virgínia não sairá daqui!

Estes e outros juramentos, estas e outras exclamações, repetiram-se várias vezes, por entre lágrimas, que confundiam os três personagens de tão comovedora cena.

Às nove horas, vieram chamar Paulo da parte de Albuquerque. Ele começava a condenar aquelas demonstrações.

Querendo D. Carolina repetir com Alice pela quarta ou quinta vez a sua visita ao aposento de Maurícia, a fim de tentar novamente resolvê-la a realizar o que ela recusava por considerar tal realização a prática do seu suicídio, Albuquerque proibiu positivamente que levasse a efeito esta nova tentativa.

— Já não é digno de nós, nem decente qualquer esforço neste sentido.

No outro dia, ainda muito cedo, Paulo subiu ao quarto de Maurícia.

Ele tinha passado a noite em claro. Trazia as feições demudadas da longa insônia e das lágrimas choradas.

De fora, disse a Maurícia que lhe queria revelar uma coisa antes de ir para o serviço. Tinha natural explicação esta visita matinal. Ao descer na véspera para o seu dormitório, Faustino, moleque de serviço da casa, muito pegado com Paulo, da sua mesma idade, lhe revelara em segredo uma suspeita que tinha. Parecia-lhe que Maurícia deixaria o engenho naquele dia, depois que Paulo partisse para as lavouras e Albuquerque para a cidade. A suspeita de Faustino tinha racional fundamento. No dia anterior, Maurícia mandara uma carta por ele a certa senhora, que morava na cidade, a qual, ao entregar a resposta, lhe dissera: - "Diga a D. Maurícia que pode vir amanhã sem susto. Há de achar-me com as portas e os braços abertos para recebê-la." Essa senhora - D. Joaquina Vilares - era mãe de uma condiscípula de Maurícia, com a qual tivera boas relações no colégio. A amiga de Maurícia falecera, quando ainda ela estava no Pará; mas, ultimamente, por ocasião de uma reunião familiar em casa de uma amiga comum, Maurícia e D. Joaquina se tinham dado a conhecer. D. Joaquina era viúva, não tinha filhos, e vivia pobremente de fazer doces de carregação. No engenho, ninguém conhecia essas relações.

Paulo, achando jeito no que Faustino lhe dissera, quis voltar imediatamente ao pavimento superior, mas a vontade de seu pai era para ele a mais sagrada das leis. Pôs-se, então, a pensar no que havia de sobrevir-lhe depois da ausência de Virgínia. O pensamento que lhe ocorreu foi o de que não teria forças para sobreviver a semelhante desgraça. Dócil, brando, terno como era, em vão procurou em si espíritos em que se elevar até à altura das circunstâncias. -"Hei de morrer, hei de morrer de desgostos, de saudades" - dissera ele. Para acrescentar o vulto do fantasma que encheu a sua imaginação, antes povoada de risonhas formas em que se refletiam todas as luzes do primeiro amor e se desenhavam todos os sorrisos dos vinte anos inocentes que ainda passaram sobre uma cândida existência, acudiu-lhe à lembrança um fato que muito o impressionara alguns anos antes. O seu professor, talvez para lisonjear o amor-próprio de Albuquerque, se não foi por natural prazer de proporcionar ao discípulo uma lição sã e edificante, escolhera a história de "Paulo e Virgínia" para um livro de leitura. Paulo nunca mais se esqueceu de tão sublime história, e o que nela mais o impressionara fora a morte do seu homônimo - e a morte pelas saudades, pela perda daquela a quem dedicava o seu insigne afeto. Agora todo o poema de Saint-Pierre surgiu-lhe na imaginação como uma ameaça, como um estranho agouro. Mais de uma coincidência aumentou não sem razão os seus supersticiosos pavores. Seu nome, o da menina, a ausência desta eram reais; por que razão não havia de realizar-se e também o de seu acabamento, como o do Paulo da história, que ele julgava tão verdadeira como a sua própria história?

Entrando no quarto de Maurícia, as palavras que proferiu foram estas:

— Virgínia, Virgínia, eu sei que não nos havemos de ver mais.

— Quem lhe disse isto, Paulo? - atalhou Maurícia.

— Quem me disse? Ninguém, mas eu sei que há de ser assim. Eu sei que a senhora deixará hoje o engenho e me levará Virgínia. Não tenho forças para impedir esta separação; quem tem não a quer impedir; o que me resta pois?

— O que lhe resta? Crer no futuro. trabalhar e esperar.

— Então a senhora cuida que sem Virgínia eu poderia trabalhar e esperar? Eu não quero a vida sem Virgínia, não quero viver um momento sem ela.

— Que está dizendo, Paulo? - interrogou Maurícia com sobressalto, que não pode disfarçar.

— E porque não hei de viver muito tempo sem Virgínia, aqui lhe trago o que eu estava ajuntando para lhe dar no dia do meu casamento.

Paulo tendo dito tais palavras, apresentou a Maurícia, para que a recebesse, uma caixinha preta sem entalhes e sem relevos.

— Mas o que vem a ser isto?

— Há de achar aqui o dinheiro que há três anos eu guardo. Ele pertence à Virgínia. Para que o quero, se ela me é arrebatada, e eu fico só e triste? Receba este penhor da minha infeliz afeição. Eu não quero nada para mim desde que perco Virgínia para sempre.

— Para sempre! - exclamou banhada de lágrimas a inocente menina. Paulo, Paulo, não diga isto. Não repita estas palavras que não terei forças para as ouvir sem morrer.

Paulo e Virgínia estavam abraçados, e as suas lágrimas pareciam-se com dias fontes que deviam não secar nunca mais.

A luz risonha do sol que nesse momento penetrou no quarto, através dos vidros da janela, veio tirar o rapaz do longo e desalentado amplexo. Em baixo, já se ouviu a voz de Albuquerque. Os negros tinham partido para o serviço.

Era tempo de deixar o aposento.

Paulo pode separar-se de Virgínia, mas não pode ainda suster o pranto. Deu o andar para a porta, procurando encobrir o rosto aos olhos de Maurícia. esta chorava como ele, e tinha como ele, na alma a maior das angústias.

Quando Paulo ia já a desaparecer, Maurícia percorreu com um olhar o âmbito do aposento. Virgínia estava caída com a cabeça entre as mãos sobre a cama, onde curtira durante a noite a sua imensa dor. Seus soluços abafados repercutiram no coração de Maurícia como os ecos de fúnebre surdina. Em presença desta cena angustiosa, ela - a comovida mãe - não pode senhorear o seu sentimento.

Chamou Paulo.

— Paulo, venha cá. Não se entristeça. A tristeza não quadra bem a vocês, meigas crianças. Sua felicidade triunfou. A vencida sou eu. O meu sossego, a minha liberdade, estes imensos bens da vida, este, sim, acabo de perdê-los neste momento. Sobre as suas ruínas levantam vocês o edifício de sua ventura, que Deus há de abençoar. Sustenham as lágrimas. Seja eu a única pessoa que nunca as tenha estanques senão na sepultura. Leve consigo as suas economias, e diga a seu pai que estou resolvida a reconciliar-me com o pai de Virgínia. Não posso mais resistir.

Paulo e Virgínia, por impulso simultâneo, difícil de explicar-se, mas fácil de compreender-se, correram a abraçar aquela que tinha o poder de os fazer chorar e de os fazer sorrir como se fora uma divindade misteriosa e fatal.