O Sacrifício/XI

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Separaram-se alguns passos antes da porteira. Ângelo para volver à povoação imersa no seu habitual silêncio, Maurícia para ocultar no fundo do aposento, tão cuidadosamente que ninguém o suspeitasse, a deleitosa revolução que lhe deixava na alma o beijo do bacharel.

— Meu Deus, que será de mim? - disse ela como quem sentia à roda de si, ameaçando perdê-la, todos os perigos que cercam os amores ilícitos. Como é violenta a sua paixão por mim! E como eu ao amo! Oh! que desgraça, que desgraça, meu Deus!

Maurícia mal podia dominar o esto das suas paixões, acesas de repente, quando elas as julgava cinzas.

— Meu coração ainda vice, por infelicidade minha! E devo eu matá-lo?

Devo, sim, a felicidade de Virgínia exige-o. Devo asfixiá-lo com as duas mãos para que depressa expire. Mas qual será o meu estado depois da morte deste sentimento, que veio revelar-me tesouros de delícia íntima que me eram inteiramente desconhecidos? Que infortúnio não foi para mim ver esse homem!

Deste solilóquio, meio racional, meio desvairado, despertou-a o estrondo produzido pelo bater da porteira.

Havia já um minuto que ela andava dentro do cercado. Neste momento, confrontava com uma palhoça abandonada que pertencera a certo negro velho do engenho, e que ficava entre dois cajueiros ramalhudos à beira do caminho.

Maurícia, voltando-se, reconheceu Bezerra num homem que transpusera a porteira e se encaminhava para a casa-grande. Ainda assustada, ainda comovida, ela não hesitou um momento. Entrou na palhoça com medo de ser alcançada por ele.

No mesmo instante, uma mulher que saíra de sob uma meia água coberta de palha cerca de cem passos antes da casa-grande, encaminhou-se para a porteira. Essa meia água estava algum tanto afastada do caminho e quase oculta por uma renque de laranjeiras idosas, que iam terminar na casa de purgar. Cobria a cacimba, onde se lavava a roupa do engenho e dos moradores circunvizinhos. Ordinariamente, havia gente ali; quando não eram escravas, eram mulheres livres dos arredores, que, com permissão de Albuquerque, iam exercer ali, por ser mais fácil, a sua indústria. Às vezes, entre elas, apareciam rapariguinhas novas, algumas bem parecidas e gentis, a cujo número pertencia uma cachopa cor de canela, de cabelos cacheados ao longe, olhos rasgados, boca grande, mas engraçada, formas grosseiras e fornidas. O rapazio do povoado andava caído por ela. Falava-se entre o povo na filha da cabocla Januária - a formosa Janoca - como nos salões de Recife se falava da filha do comendador M..., na sobrinha do Barão de L..., ou na irmão do D. F..., a saber, com admiração e elogios. Januária morava perto do engenho, mas do lado de fora do cercado. Passava a vida desregrada, dando maus exemplos para a filha, para a qual não tinha cuidados de que ela precisava pelos seus verdes anos. Muitas vezes, ia ao Recife, deixando a rapariga a lavar roupa na palhoça, entregue a Deus e à aventura. Nesse dia, com ser domingo, Janoca voltava ao lusco-fusco da meia água para casa; Sobraçava uma trouxa der roupa lavada. Vinha distraída, ou pensando em oculto objeto. Nem ela, nem Bezerra viram Maurícia, porque encontrando-se bem defronte a choupana arruinada, alimentaram curiosos diálogo, que Bezerra certamente não quisera fosse ouvido por sua mulher.

A rapariga, com certo disfarce cínico, foi a primeira que o tirou a terreiro.

— Vosmecê bem me podia dar um vestido para o Espírito Santo.

— Não é a primeira vez que me dizes isto, diabrete! Por que achas de te meter comigo, quando há por aí tanto rapaz que pode corresponder às tuas poucas vergonhas?

— Aqui só há dois rapazes que me caíram em graça; mas um, que podia, não quer e até parece não entender disto; vive somente para a sua noiva; é o Sr. Paulo. O outro quer, mas não pode. É o caixeiro da venda do canto da rua.

— Pois procura outros, que hás de achar. Não vês que sou velho, que já tenho cabelos brancos?

Assim falando, Bezerra volveu os olhos à roda de si como quem queria certificar-se de que ninguém o via a conversar com a cachopa.

— Não se assuste. As moças do engenho saíram a passear com seu Paulo; os negros andam vadiando na povoação. Até mamãe foi ao Recife e me deixou só.

— E eu também te deixo aí.

Bezerra deu o andar para o engenho. Janoca, que ficara de pé, defronte da palhoça abandonada, disse com voz lamuriosa: - Por que não me dá o vestido que peço? É uma coisa tão pequena para o senhor!

A estas vozes, Bezerra voltou-se. Janoca tinha um pé firma no chão e o outro posto sobre o cotovelo de um dos cajueiros, o qual ficava na altura dos joelhos de uma pessoa. A saia, já de si curta, lhe descobria, pela atitude em que estava a rapariga, o princípio de uma perna alentada sobre a qual ela se derreava sobraçando a trouxa. A cabeça guarnecida de cachos, os seios salientes, o corpo, que parecia não caber no cabeção e na saia escassa, levemente encurvado sobre o dorso, davam-lhe certos jeitos e certa nudez de ninfa, que o lugar ermo e a hora crepuscular armavam com mil perigos.

— Que diabo irritante! - disse Bezerra.

E não pode vencer a provocação. Voltou.

— O senhor sabe onde moro? É ali embaixo. Se não quiser ir mesmo, pode mandar para lá o vestido que mamãe recebe. Olhe, a casa é ali à mão direita depois e passar a porteira.

Janoca deu o andar.

— Se quer ver a casa, venha comigo. Não tenha medo, que ninguém há de nos ver.

— Sempre quero saber onde é que tens o teu inferno, demônio! - disse Bezerra, seguindo atrás da rapariga.

Bezerra tinha a infelicidade de sentir particular predileção por esta espécie de gente. Uma mestiça, quase da mesma idade de Janoca, levara-o a praticar loucuras no Pará alguns meses antes; uma fora causadora de grandes desastres em sua vida.

Testemunhando essas trivialidades indignas, Maurícia passou da suprema satisfação à suprema pena. A transição foi rápida e cruel. A exaltação em que estava favoreceu este resultado. Ódio e asco sentia ela pelo marido, que nunca se mostrara digno de sua companhia; mas, nesse momento, pungiu-lhe o coração, além de tais sentimentos, outro que nunca lhe parecera pudesse inspirar-lhe o objeto deles - um ciúme inexplicável, incompreensível, paixão nova que pela primeira vez penetrou nas carnes do seu coração as aceradas garras.

Através da palha da casa e por entre as sombras do crepúsculo, Maurícia viu o marido usar adiante um gesto que cada vez aguçou mais a ponta do espinho que já a lacerava. Bezerra, olhando, como quem espreitava, a um e a outro lado, passou o braço direito à roda da cintura da mestiça, e cosido com ela lhe segredou ao ouvido palavras que a mulher não pode ouvir, mas supôs adivinhar.

— É o mesmo homem! - disse Maurícia com entranhável dor no coração. mas se é o mesmo que dantes, deverei acaso voltar à sua companhia para ser espectadora de mais uma cena destas?

Desejara ouvir tudo; desejara ir atrás dele, pé ante pé, ainda que isto lhe parecesse pouco digno de si, para não perder uma só palavra dessa conversação indecente; mas semelhante intento era irrealizável; demais urgia deixar o esconderijo. Saiu cautelosamente. Estava quase fora de si.

Tanto que se viu do lado de fora, correu tão velozmente como pode, até alcançar o laranjal. Protegida por este e estugando sempre os passos, chegou a dentro em pouco tempo à casa do engenho.

Estava pálida, fria e trêmula. O seu coração tinha servido aquela tarde de campo de muitas batalhas que ela saíra já vencedora, já vencida.

Pesar e prazer, amor e ódio, ciúme e desconhecido desejo de vingança, grandes surpresas, grandes esperanças e grandes desesperos - eis as encontradas forças que a traziam suspensa entre mil incertezas e mil desvarios.

Entrando no aposento, Maurícia tinha inteiramente resolvida a sua vingança. A suave imagem de Ângelo, que enchia o seu entendimento, incitava-a a pô-la por obra. Era terrível o que concebera o seu espírito. Eis pouco mais ou menos no que consistia. Ela desceria à sala de visitas e, quando Bezerra entrasse, declararia, em presença de todos, que, posto tivesse resolvido voltar para sua companhia, adotara opinião contrária. Albuquerque havia de inquirir-lhe a razão desta súbita mudança; então ela referiria o que acabava de ver o marido praticar; fulminaria este com a vergonhosa revelação; impossível seria que não tomasse todos os seu partido. Ficaria vingada e salva.

A imagem de Ângelo, que trazia no seu pensamento como luz benfazeja e consoladora, tinha ficado superior a este plano; não fora o amor que lho inspirara. fora o ódio, o desprezo, a raiva, o despeito, que nas mulheres assume não raras vezes proporções brutais.

Estava para descer, quando Virgínia entrou no quarto. A menina subira as escadas, correndo satisfeita e feliz. Passara toda a tarde em companhia de Paulo, e ao entrar no engenho, alcançara Bezerra.

— Meu pai está aí, mamãe. Venho pedir-lhe que não deixe de aparecer hoje.

— Aparecer-lhe hoje? - inquiriu Maurícia. Sim, hei de aparecer-lhe para lhe dizer que é impossível a minha volta.

— Meu Deus! - exclamou a menina. Para que quer fazer isso? Ou não lhe meta mais raiva. Ele já vem tão triste, tão pálido, que me parece estar sofrendo alguma dor.

— Enganas-te, Virgínia. É a hipocrisia em pessoa. A vileza inspira-lhe o disfarce para ocultar-se. Vi-o há pouco risonho e ... prazenteiro.

— Mas, então, alguma coisa lhe aconteceu depois. Verdade é que ele tinha na mão uma carta, que acabara de ler. E quer saber, mamãe? Ele perguntou se a senhora estava no engenho, se tinha saído, se alguém a procurara.

— Que carta era essa? - disse Maurícia, empalidecendo.

E instintivamente levou a mão ao seio mais morta do que viva. Não achou aí a carta que lhe dera Ângelo, debaixo da árvore. Pulara-lhe do seio na carreira da palhoça abandonada para o laranjal.

Pode-se compreender, mas não dizer, o tropel de pensamentos que passaram pela cabeça de Maurícia naquele momento. Que lhe teria escrito Ângelo? Ela não leu a carta; trazia-a fechada ainda; mas calculava que devia ser largo documento contra eles dois. Devia tratar da fugida, dos meios de realizá-la. Bezerra não podia dever ao acaso mais forte arma para atravessar-lhe o coração do que esse malfadado. Se o mostrasse a Albuquerque, talvez fosse o bastante para que este retirasse a sua promessa de consentir no casamento de Paulo com Virgínia; se o mostrasse à Martins, este e a mulher talvez a considerassem indigna de entrar dali por diante em sua casa.

— Oh! que infelicidade! - exclamou Maurícia.

O seu desejo de vingança, há pouco tão cru e exaltado, esfriou inopinadamente; foi substituído pelo terror. Os papéis trocaram-se. Era ela que estava agora nas mãos do marido. Ainda quando Maurícia referisse o que vira, ninguém acreditaria em suas palavras; Bezerra já não estava no mesmo caso; tinha consigo uma prova material da sua culpa; podia esmagá-la, atirando simplesmente o papel sobre a mesma, como se esmaga uma cobra, atirando-se-lhe uma pedra sobre a cabeça.

Passados alguns instantes, disse consigo:

— Mas, quem sabe se não está nisto a minha salvação? Quero crer que esteja; não é possível que Bezerra, lendo semelhantes revelações de um coração altamente apaixonado, queira ainda que eu vá viver com ele. Virá, talvez, à terra, o formoso castelo que acabo de erigir para Virgínia; mas o meu infortúnio terá encontrado o seu termo. Entre mim e o meu indigno marido, ter-se-á levantado uma barreira eterna, que ele não transporá nunca mais. Estarei livre, embora com uma nota, que o tempo há de apagar.

Como se tais idéias lhe ocorressem por intuição sobrenatural, Maurícia sentia-se reanimada. Onde um momentos antes estivera a sombra da morte, estava agora suavíssimo bálsamo de consolação tão grande que apagou toda a sua mágoa.

Chegou ao espelho, alisou o cabelo e encaminhou-se com Virgínia para a porta.

Já a vinham chamar por parte de Albuquerque.

Não foi sem pronunciada palidez que entrou na sala. Estavam aí, sentados ao lado de D. Carolina, perto do sofá, Albuquerque e Bezerra, e ao pé de Alice, junto da porta que dava para o terraço, Paulo e Martins. Este havia chegado um minuto antes de Maurícia entrar.

Quando ela apontou na porta, Bezerra levantou-se e foi pressuroso ao seu encontro. Fazia três anos que a não via. Abraçou-a respeitosamente diante de todos. Maurícia sentiu-se, então, enfraquecer novamente. Conheceu que estava ameaçada de dobrada desgraça; A sua prevenção fora enganosa. O seu tirano não se deu por achado. Isto queria significar que aos seus olhos ela havia de ser inevitavelmente vítima de dúplice vingança.

Bezerra estava pálido, mas mostrava-se satisfeito. Tinha risos que à sua mulher se afiguraram infernais. Raras vezes a hipocrisia representou melhor o seu papel.

Maurícia, entretanto, no meio do turbilhão de idéias contrárias que lhe enchiam a imaginação, não podia esquecer-se de Ângelo. Quando seu marido a abraçou, entre expansivo e reservado, ela teve desejos de lhe fugir. Pareceu-lhe que o direito de aconchegá-la ao seio já não lhe pertencia, e tinha passado ao homem que se mostrava louco de amor por ela. Aquele era indigno de seu corpo; estava ao nível da Janoca da Januária, perdia-se abaixo dos seus pés.

Compreendendo que Bezerra premeditaria contra o seu rival desapiedada vingança, começou a sentir por este tormentos imaginários. Jurou morrer ao lado de Ângelo, caro objeto de seu exclusivo amor. A presença do marido, longe de a prender na sala, apartou-a em espírito para fora desse estreito âmbito onde mal cabia as paixões despertas. Ela ia em busca do bacharel, nas asas de uma saudade imensa. Parando no ponto onde uma hora antes se tinham separado, perguntou a si mesma, no deserto, que testemunhara o seu colóquio: "Onde estará ele? Que pensamentos terá agora?"

Ângelo, entretanto, volvera ao Recife, levando em sua alma a vaga impressão da felicidade, que o embriagara com alguns momentos, e que era o resultado das palavras que ouvira de Maurícia, do amplexo que parecia tê-la ainda aconchegado ao corpo, do beijo que ele sentia perfumar-lhe os lábios.

Chegara cedo à estrada, e não saíra mais.

Estava entregue à sua embriaguez, pensando na felicidade que devia trazer-lhe a vida com essa mulher adorável. Este pensamento não era constante. Em seu espírito, davam-se mutações rápidas; Tão depressa passavam aí cenas felizes, como dramas desgraçados. Bezerra não lhe saía da cabeça. Mais de uma vez, afigurou-se-lhe seu sonho despedaçado entre os dedos dele, como as nuvens cor de rosa se despedaçam não raro entre as pontas dos altos picos.

Num desses momentos, um carro parou à porta do sítio, e logo depois Martins entrou no aposento do advogado.

— Sabes donde venho?

— Julgava-te em casa.

— Fui ao Caxangá. Tinha ajustado com Bezerra encontramo-nos no engenho.

Ângelo empalideceu.

— Parece que não gostas do Bezerra. Pois olha, deves mudar de opinião, como eu mudei. Andava prevenido, mas convenci-me da minha sem-razão.

— Estiveste com ele lá?

— Estive; Virgínia casa-se no sábado, e Maurícia manda convidar-te para o casamento.

Ângelo mal pode acreditar nestas palavras.

— Pois não é o melhor. Queres saber o melhor? Maurícia vai viver outra vez com o marido. A separação era uma coisa que me trazia descontente. Eugênia vivia desgostosa e envergonhada. Mas que tens?

Ângelo sentira uma comoção mortal.

— Estás lívido - continuou Martins. Nunca te vi assim.

— É a tua vista que se engana; ou antes tu não contas a história verdadeira. Queres fazer a experiência in anima amici . Perdes o tempo;

— Afirmo-te que te estou dizendo a verdade.

— Não é possível.

— Palavra de honra. Ângelo. Mas nisso não há nada de singular. Há quase uma semana, segundo te disse, não usado esforço senão para chegar a este resultado. Maurícia voltou à razão.

— Mas quando foi que se deu isso?

— Quando? Agora mesmo.

Martins entrou numa longa série de particularidades para trazer a convicção ao espirito do amigo. Quando a verdade se tornou evidente, e não foi mais possível recusá-la, Ângelo deixou-se ficar em silêncio. Mais de uma vez, Martins dirigiu-lhe a palavra, mas não conseguiu arrancar-lhe a resposta. A sua concentração era incrível.

— Condenas uma ação tão bonita?

— Nada tenho com isso. Mas pode-se deixar de ficar espantado diante de tão rápida mudança?

— Ora, meu amigo; tem sempre curso tortuoso as coisas desta vida. E adeus! Tenho pressa. Quero levar a Eugênia esta agradável nova.

Passemos por cima do sofrimento de Ângelo durante os primeiros dias que se seguiram a esta revelação. Em vão, tentaríamos pintá-los; . A linguagem humana não tem tintas para por em tela as crises em que a insônia roça pela razão, e a morte, espectro medonho nos dias felizes, aparece no curto horizonte do pensamento como a mensageira da única consolação possível.

No dia em que Virgínia devia casar-se, Martins procurou Ângelo depois do almoço.

— Virgínia casa-se hoje. Vais?

— É impossível. Morreu meu pai. Às duas horas, embarco para ir buscar minha mãe e meus irmãos.

Ângelo dizia a verdade. Aquela semana fora fecunda em dores para ele.

Martins ficou estatelado. Ignorava esse acontecimento. Exprobrou ao amigo o seu egoísmo na dor.

À hora indicada, o bacharel deixou a estrada.

Seu coração parecia só pulsar pelos entes queridos que a trinta léguas tinham nele a única esperança.