O Sacrifício/XIV
Maurícia despertou, seriam cinco horas da tarde, ao estrondo produzido por fortes pancadas na porta do gabinete. Olhando por aí, viu Bezerra, que arrancava a fechadura, tendo em uma das mãos um escopro e na outra um martelo. Lançando as vistas à alcova fronteira, viu mais que à porta se substituíra um reposteiro de pano verde, em cujo centro se mostrava a palavra - Toilette - feita de letras amarelas.
— Que quer dizer isso? - inquiriu espantada, apontando de pé para a alcova.
— Quer dizer, Maurícia, que eu resolvi dar à minha casa o tom de uma casa de baile. Isto não lhe pode ser desagradável, visto que ninguém ainda teve mais do que a senhora o gosto delicado, que se aprende em Paris.
Passada a primeira impressão que lhe deixava o remoque do marido, Maurícia sentou-se e disse-lhe:
— O senhor fez isso para se vingar do que eu pratiquei ontem?
Bezerra aproximou-se da mulher, e tornou-lhe em resposta:
— E julga a senhora ter praticado uma bonita ação para o seu marido?
— Ao homem que fosse verdadeiramente meu marido eu certo não faria o que fiz; mas o senhor, não obstante dizer-se tal, pode acaso julgar-se com direito a procedimento diverso?
— Maurícia, você anda iludida. Supõe que os homens se devem equiparar às mulheres. Entende que os deveres e os direitos da mulher são idênticos aos do marido. Ignora que o pecado mortal para a mulher não é senão culpa venial para o homem. Estranha que os maridos tenham liberdade ampla em suas ações, e as mulheres só a tenham muito reduzida. Ora, tudo isto são erros, Maurícia! Aceite a sociedade, Maurícia, como é. Se não lhe agrada esta constituição social, tenha paciência, resigne-se. Nenhuma outra será possível, senão passados muitos tempos, e revolvida a atual sociedade desde as suas raízes. Que prejuízo lhe causo com os meus pequeninos passatempos?
— A mim não me causa nenhum prejuízo, senhor, o que me causa é vergonha. Este sentimento é inseparável de toda mulher que, posto educada em Paris, de pequena se afez a ver a maior moralidade no lar dos seus pais, e receber dos seus mestres lições inspiradas em tal sentimento, base da família nos tempos felizes, e o seu esteio, que a impede de vir à terra, quando sopra o furacão dos contratempos. A vergonha é inseparável dos meus olhos, porque eu nunca vi na casa paterna, nunca vi na casa do meu protetor as lastimosas e indignas cenas que o senhor representou em minha casa nos primeiros anos do meu casamento, e agora reproduz depois de empregar os maiores esforços a fim de que eu voltasse para a sua companhia. Priva-me da porta do meu quarto, único meio, que me restava, de cobrir-me contra os seus insultos grosseiros, de resguardar os meus melindres ofendidos por seus ignominiosos amores de palhoça e de cozinha!
Espantado, senão atemorizado desta rápida síntese de suas vilezas, que Maurícia fizera com a mesma mobilidade meridional, onde a sua linguagem afetiva deparava raros atavios e encantos, Bezerra, que, ao princípio julgara esmagá-la com sua hostilidade cínica, sobresteve entre o receio de perder a vasa e a dificuldade de a não fazer brava. Quis interromper Maurícia com algumas palavras de dureza, mas ela, ou porque estava cheia de razão, ou porque a sua exaltação lhe não dava lugar a atender senão à sua grande dor, prosseguiu com a mesma veemência que tivera até aí:
— Cumpre absolutamente que de uma vez nos entendamos sobre o melhor modo de carregar a pesada cruz de um casamento desigual. Estou por tudo, menos pelo aviltamento. Por que procede tão vilmente comigo?
Bezerra sorriu cinicamente, e respondeu em termos ignóbeis.
Então, Maurícia ergueu-se arrebatadamente, mostrando no gesto indício de entranhada indignação.
— Se o senhor tem este direito, igual devo ter eu. Mas não! - acudiu imediatamente. Ainda que mo assegurassem...
Maurícia não pode concluir a frase. Bezerra, de pé ao lado dela, ameaçava despedaçar-lhe a cabeça com o martelo que tinha na mão.
— A senhora não sabe o que disse. Quer fazer de mim um assassino?
Maurícia retorquiu sem se acovardar:
— Assassino já é o senhor, assassino do meu modesto e inofensivo sossego; pode bem assassinar-me agora.
As lágrimas saltaram com veemência dos olhos de Maurícia que se sentara novamente.
Bezerra ainda estava de pé em posição hostil, quando se ouviu na sala ruído de passos na banda de fora. Não passou um minuto que a voz de Virgínia ecoou na porta:
— Dá licença, mamãe? Aqui está Sinhazinha, que vem passar com a senhora esta semana.
Maurícia enxugou as lágrimas rapidamente, enquanto Bezerra, sentindo-se enfraquecer, não deu um passo, não disse uma palavra sequer.
Após Virgínia, entraram Sinhazinha, D. Carolina e Paulo. Sinhazinha correu para Maurícia, abraçou-a e cobriu-lhe as faces de beijos. Havia alguns meses que não a via, e estava muito saudosa.
Dando com os olhos no reposteiro, Virgínia não pode suster um gracejo?
— Bravo, mamãe! Em honra de quem é a partida?
— Em honra de Sinhazinha, Virgínia - respondeu Maurícia, tentando sorrir-se, mas em vão. Tinha a noite no espírito.
Entretanto, Paulo chegara-se a Bezerra, que se encaminhara para o quarto.
— Há que tempo não nos vemos, D. Maurícia! - disse Sinhazinha. E como está mudada a senhora!
— Acha-me muito mudada? Há de ser assim mesmo. Por que não veio ao casamento de Virgínia? - perguntou-lhe.
— Não pude, mas aqui estou para lhe dar os parabéns e mil beijos.
E as duas moças abraçaram-se e beijaram-se graciosa e ternamente.
— Passará comigo não uma semana, Sinhazinha, mas um mês, disse Maurícia.
E, como quem tivera um pensamento repentino, chamou Paulo.
— Eu estava mesmo precisando de você, Paulo. Olhe: pergunte a meu marido onde pôs a porta que ele tirou de meu quarto, e coloque-a outra vez no seu lugar. Fica o reposteiro assim como está. Quero que você trate disso sem demora, que Sinhazinha dormirá nessa alcova comigo.
Estava neste ponto a conversação, quando se apresentou um moleque que viera chamar Bezerra da parte de Albuquerque. Eis a causa do chamado.
Ouvindo grande vozerio na meia-água, Albuquerque pusera o chapéu de palha do Chile na cabeça, pegara do varapau de quiri, que nunca o desacompanhava em suas digressões pelas lavouras, e encaminhara-se para o lugar, onde se estava dando o barulho.
Fora este travado entre Brígida e Januária. Havia outras lavadeiras presentes, assim como escravas, como moradores do engenho; mas umas e outras continuaram a bater sua roupa sem volver vistas às briosas.
— Quero saber o motivo desta briga - inquiriu o senhor de engenho em tom senhoril e arrogante.
E porque o silêncio foi a única resposta que ainda teve desta vez, Albuquerque ameaçou Brígida de a mandar açoitar no carro, e Januária de expulsá-la das suas terras depois de lhe por a casa abaixo.
A esta voz, a cabocla aproximou-se de Albuquerque e contou-lhe tudo em poucas palavras, que a decência ordena que não sejam reproduzidas.
Albuquerque voltou possuído de estranha comoção. Os olhos se lhe encovaram dentro de poucos momentos, as cores fugiram-lhe da face que ordinariamente pareciam verter sangue.
No mesmo instante, mandou chamar Bezerra.
— Acabo de ter uma prova - disse Albuquerque logo que Bezerra penetrou na sala - de que o senhor é indigno, já não digo do interesse que tomei em melhorar as suas condições, mas de transpor aquela porta, a não ser para sair e não voltar mais. Arranquei-o do leito da morte, ou antes da enxerga da miséria. Restitui-lhe a família, que nunca mais o senhor havia de ter. Dei-lhe um emprego em minha casa. Enfim, fiz do senhor gente. Vejo agora que empreguei mal o meu tempo, os meus esforços e a minha proteção. D. Maurícia - acredito-o agora - foi uma vítima de suas baixezas. Está justificada aos meus olhos. Eu, porém, considero-me agora na obrigação de lhe dar plena satisfação, e de lhe provar que fazia do senhor juízo muito superior as suas qualidades. Por isso, exijo que se retire do meu engenho dentro de vinte e quatro horas. Tem aqui um dinheiro à sua disposição. Saia inesperadamente. como inesperadamente entrou por aqui adentro. Com este procedimento me dará plena quitação do que me deve.
Albuquerque tirou de uma gaveta algumas cédulas que pôs sobre a mesa do lado de Bezerra. Este não acusou ninguém. Longe de negar o que lhe fora imputado, pediu perdão a Albuquerque, que não lhe respondeu senão com desprezo. Então, Bezerra, passados alguns momentos, fez a Albuquerque um cumprimento e saiu. Grande preocupação o tomava. À noite, não apareceu para o chá. Virgínia, que tudo ignorava, estranhando a ausência do pai, mostrou-se muito sobressaltada. Pela manhã bem cedo, mandou saber se lhe acontecera algum desastre. Maurícia estava, de certo modo, aflita. Bezerra não foi encontrado em parte nenhuma. Seus baús tinham desaparecido. Dias depois, soube-se de tudo pelo menor. Ele fugira, levando em sua companhia a mestiça.