O Sacrifício/XV
Sinhazinha viera do Recife com um irmão que voltou logo depois de a deixar na casa-grande. Não podendo assistir ao casamento de Virgínia, sua particular amiga, resolvera, tanto que lhe foi possível, visitá-la, passar com ela oito dias, segundo dissera a menina por ocasião de entrar em casa de Maurícia. Este fim ostensivo da sua vinda era acompanhado de outro fim oculto que particularmente lhe dizia respeito, e que a continuação desta narrativa há de por patente aos olhos do leitor.
Com a ausência de Bezerra, vieram Paulo e Virgínia fazer companhia a Maurícia. Foi esta uma das melhores fases da sua vida e ela não o ocultava. Paulo saía para o serviço, e as três senhoras entremeavam a sua costura com toques e cantos. O piano abriu-se de novo, sacudiu-se o pó das músicas. Às vezes era a leitura de um livro importante, já conhecido de Maurícia e Virgínia, mas não da sua hóspeda que as reunia no gabinete, durante a primeira parte do dia. Ordinariamente era Virgínia a encarregada de proceder à leitura, encargo que ela preenchia com a habilidade de graça que lhe davam lugar tão distinto no seio da família. Depois de jantar, saíam a passeio pelo cercado e não paravam senão na casa-grande, onde Paulo se lhes fazia juntar, e com elas se demorava até tomarem chá.
Fazia já doze dias que Bezerra se ausentara, quando Sinhazinha entendeu que era chegada a ocasião de dizer a Maurícia o que especialmente a tinha levado ao engenho. Para realizar este pensamento, aproveitou-se de uma manhã em que Virgínia fora à casa-grande a chamado de D. Carolina a fim de lhe cortar uns vestidos. Sinhazinha amanhecera nesse dia mais pesarosa do que ordinariamente se mostrava todas as manhãs. Chegou-se para junto de Maurícia, que nesse momento tinha um papel de música na mão e se encaminhava para o piano.
— Faz tanto tempo que estou aqui - disse ela - e ainda a senhora não se lembrou de pedir notícias do Dr. Ângelo, que era tão amigo desta casa.
Ouvindo estas palavras que lhe desceram improvisas no coração, Maurícia sobresteve inopinadamente. O nome do bacharel soava sempre aos seus ouvidos como uma nota de harmonia misteriosa e terrível que primeiro lhe penetrava na alma do que nos sentidos.
— É verdade, Sinhazinha - respondeu. Que novas me dá dele?
E foi sentar-se ao lado da amiga no sofá, atraída pelo assunto que lhe oferecia indizível encanto.
Sinhazinha que, como todos, ignorava as relações que Ângelo e Maurícia tinham por alguns dias sustentado com a maior das lutas para esta e o maior dos prazeres para aquele, não guardou a menor reserva nas suas revelações. Era muito jovem ainda e tinha a maior confiança na mãe de Virgínia à qual se sentia presa por laços de irresistível simpatia e admiração.
Contou que Ângelo estava morando com a mãe e os irmãos em casa da tia; que nos primeiros tempos depois da chegada andara triste e desalentado; que cobrara tédio, à vida, segundo lhe parecia a ela, e emagrecera e se tornara pensativo e reservado; que raras vezes surdia pela casa de Martins.
— Nunca se lhe ofereceu a você ocasião de lhe falar, Sinhazinha? - perguntou Maurícia.
— Isto foi nos primeiros tempos depois que chegou a povoação como já disse. Uma tarde, estava eu no portão sem mamãe, quando vi o Dr. Ângelo apontar na estrada. Quando eu cuidava que ele ia entrar no sítio do Sr. Martins, encaminhou-se para o ponto, onde me vira. Falou-me, perguntou-me por mamãe e seguiu logo depois. Estava melancólico. O luto, que trazia pela morte do pai, contrastava com a sua palidez. Na tarde seguinte, ele passou outra vez à mesma hora e falou comigo. Quis entrar, mas depois desculpou-se dizendo que se equivocara, e tomou para a casa de D. Eugênia. À noite, eu e mamãe nos reunimos aí. O Dr. Ângelo ainda lá estava. Seriam onze horas quando saímos. Não pude dormir. A imagem do Dr. Ângelo ocupava todo o meu entendimento. Eu notara da parte dele certa inclinação para mim que se casava com a que eu sentia por ele desde que comecei a conhecê-lo.
Maurícia não pode suster uma interrogação, metade exprobração, metade surpresa que lhe viera à alma.
— Que está dizendo, Sinházinha?!
E com o olhar inflamado cobriu o rosto da menina, como quem queria de um jato de luz iluminar-lhe, não o rosto, mas sim os recantos de seu coração, e descobrir-lhe os segredos que a inocência e a pudicícia da primeira mocidade não permitiam subir aos lábios dela para se revelarem ainda que fosse a uma amiga.
Sinhazinha prosseguiu:
— Eu não me enganara, D. Maurícia.
— Não se enganara! - exclamou Maurícia.
— Não, não, D. Maurícia. O Dr. Ângelo começava a amar-me, e eu... eu de há muito que o amava.
Maurícia esteve um momento sem saber o que dizer. Faltou-lhe a voz. Seus olhos fixos sobre o rosto da moça tinham a imobilidade dos olhos dos finados; mas, quando era esta a expressão exterior do seu rosto, sentia ela no cérebro o torvelinho e o fogo precursores da loucura.
— Oh! Não imagina como fui feliz durante os dois primeiros meses do meu malfadado amor!
— Malfadado? - inquiriu Maurícia, respirando como quem apartava de seu peito um peso que ameaçava sufocá-la.
— Eu lhe contarei tudo. O Dr. Ângelo não faltou mais de tarde em casa de seu cunhado. Aí conversávamos largas horas. Nos domingos o meu prazer não tinha limites. Eu sentia-me orgulhosa de ser a única dentre as demais senhoras que concorriam ao retiro literário para a qual o Dr. Ângelo tinha todas as atenções. A mãe dele que nos últimos tempos já entrara nas relações íntimas de D. Eugênia, acompanhava o filho, e dava particular encanto à reunião. É uma senhora de alta distinção que cativa pela sua benevolência e brandura de alma. Eu já via nela, não sei por que singular favor da minha fantasia, a minha segunda mãe, quando uma circunstância veio privar-me desta deleitosa união. Uma atriz da companhia dramática, que chegou ultimamente, trouxera para o Dr. Ângelo carta de apresentação de um literato de Lisboa. Essa atriz procurou-o no escritório e entregou-lhe a carta. Ela é bonita, D. Maurícia, como poucas mulheres tenho visto tão bonitas entre nós. Por que motivo não hei de prestar este tributo à verdade?
— Por muito bonita que ela seja - disse Maurícia - não há de exceder a você em boniteza.
— Quando a vi pela primeira vez no teatro, não pude fugir de render certa homenagem ao seu talento e aos seus encantos; mas o que praticou depois, o modo por que ainda procede dão-me o direito de odiá-la.
Depois de um momento de silêncio, Sinhazinha continuou:
— No domingo que se seguiu à apresentação dela ao Dr. Ângelo, e às primeiras representações teatrais, falou-se muito nela no sítio do Sr. Martins. O Dr. Ângelo fez-lhe os maiores elogios; o Martins mostrou-se inteiramente de acordo com ele neste ponto; os outros moços que estiveram presentes só se ocuparam com ela. Oh! A senhora mal sabe quanto eu comecei logo a sofrer por causa dessa mulher.
E os olhos de Sinhazinha arrasaram-se de lágrimas.
Maurícia sentiu mais espanto, mais surpresa do que dor; mas a sua curiosidade e impaciência eram ainda maiores.
— Quantas novidades dentro de pouco mais de três meses! - exclamou com amargura.
— Uma semana depois, comecei a notar grande mudança no Dr. Ângelo. No domingo, faltou ao retiro ; no sábado anterior, já tinha faltado ao chá em casa do Sr. Martins, onde, havia mais de um mês, era um dos hóspedes mais certos. Então, pelas conversações dos moços que estiveram presentes , eu inferi que ele estava apaixonado pela Júlia (tal é o nome da atriz). Oh! D. Maurícia, quando me convenci que ele me deixava por essa mulher que nunca será capaz de lhe ter o amor que eu sinto por ele, oh! não sei como não me estalou a cabeça! Há mais de um mês que dura o meu tormento. Não vê como estou? O sono fugiu dos meus olhos, o prazer abandonou a minha alma. Com a minha tristeza, mamãe anda aflita. Ela sabe de tudo o que se passou entre mim e ele. Tem procurado consolar-me, mas não há consolação para quem sofre como eu. Entrei nesse amor com toda a minha existência. Eu via no Dr. Ângelo, não só a minha felicidade, mas a minha nobreza. Considerava-o já uma parte de mim mesma, quando entre mim e essa parte em que estavam concentrados todos os meus afetos se interpôs fundo abismo, e eu fiquei com todas as angústias que deixa o ladrão no espírito da pessoa a quem roubou o maior tesouro.
Dizendo estas palavras, Sinhazinha deu largas ao seu pranto; e Maurícia, que, no começo da narrativa a ouvia com intenção reservadamente hostil, não pode deixar de comover-se. As lágrimas da ingênua moça eram irmãs das suas; vinham do fundo do coração, porque tinham por origem o amor infeliz.
Maurícia pegou de uma das mãos de Sinhazinha como quem queria animá-la a prosseguir suas queixas, que pareciam poder mais do que ela. Sinhazinha continuou:
— Lembrei-me, então, da senhora para me ajudar a tirá-lo do poder deste monstro encantador que o traz tão escravizado aos seus mágicos feitiços.
— De mim, Sinhazinha, lembrou-se de mim? - inquiriu Maurícia, repentinamente.
— Eu sei que o Dr. Ângelo a tem no maior conceito. Não fui testemunha do modo como ele a tratou no domingo em que estivemos todos reunidos por ocasião do aniversário natalício de D. Eugênia?
— Não tenho a menor importância para ele. Atualmente eu me considero objeto do seu ódio.
— Do seu ódio! Não diga isso. Por que é que ele há de ter-lhe ódio?
Compreendendo que se tinha excedido na revelação do seu juízo íntimo, Maurícia acrescentou, imediatamente:
— Ouviu-o falar alguma vez em mim depois da minha reconciliação com meu marido?
Sinhazinha guardou silêncio por alguns momentos, parecendo procurar na lembrança a resposta que aí não podia achar.
— Ele só tem para mim atualmente ódio, desprezo, ou, pelo menos, indiferença, concluiu Maurícia.
— Por quê?
— Porque vendo-me tornar à companhia do homem, que me infligira as maiores humilhações, inferiu talvez ou que eu me não sinto, ou que tudo quanto me ouvira dizer a respeito desse homem era pura invenção. O Dr. Ângelo, Sinhazinha, não há de formar ainda de mim o juízo que já formou. Aos seus olhos, eu devo ser hoje uma mulher vulgar, senão desprezível. Quantas vezes não terá dito consigo: "Como me enganei com ela!" E, demais não poderia eu fazer para dissuadi-la de prosseguir no caminho escolhido pelos seus sentidos ou pela sua alucinação? O seu apelo a mim, Sinhazinha, é de todo ponto inútil. Em nome de que sentimento deveria eu falar-lhe a seu favor? Que autoridade tenho? Que armas poderia empregar?
Sinhazinha, corando de pudor, pôs um dos braços à roda do pescoço de Maurícia, e em voz branda e tímida respondeu como quem lhe segredava ao ouvido grave revelação.
— A senhora tem a autoridade do seu talento, tem as armas das suas graças a que ninguém resiste.
— Quanto você é ingênua! - exclamou Maurícia.
— Que quer que eu lhe diga? - respondeu a jovem lacrimosa. Toda a minha confiança, toda a minha esperança está posta na senhora. Diz-me o coração que se a senhora tomar a si a minha causa ela triunfará. Condoa-se de mim, minha querida amiga. Este amor é hoje a minha existência; sem ele, que será de mim? Olhe, eu tenho refletido muito no meu estado e nos meios de conjurar os males que sobre ele pesam. Há mais de um mês que o Dr. Ângelo não aparece em casa do Sr. Martins; mas se ele souber que a senhora vai passar alguns dias na estrada, ele há de voltar; e talvez com ele volte para mim a felicidade. Seja o meu bom anjo, D. Maurícia. A ocasião é oportuna. Há mais de três meses que a senhora não vai ao Recife.
Maurícia, sem dizer sim, nem não, levantou-se a modo de distraída por oculto pensamento. Entre as músicas que estavam sobre a mesa, escolheu uma que pôs na estante do piano e entrou a tocar e a cantar. Sua voz tinha particular ternura. Eram graciosas as harmonias, mas tristes, quase dolorosas.