O Sacrifício/XVI
O que Sinhazinha contou a Maurícia não era senão a verdade. Apenas Ângelo soube, por boca de Martins, que a cunhada ia unir-se outra vez ao marido, considerou despedaçados os estreitos elos que o tinham tão intimamente ligados aos seus encantos. Ao princípio, só teve para ela indignação e desprezo; mas posteriormente, refletindo melhor sobre as circunstâncias fatais que seguem de perto o casamento, tratou de esquecer-se dela, julgando-a antes digna de sua compaixão do que do seu rancor. Então, seu coração readquiriu a perdida independência. Muitas vezes, meditando em silêncio, concluía a ordem das suas idéias por este conceito: "Ando por entre duas sepulturas - a do meu pai e a do meu amor." Parecia-lhe que nunca mais havia de ressuscitar este em seu coração como aquele não havia de ressuscitar mais na vida. Considerava essas duas perdas irreparáveis e equiparava a importância de uma à da outra. No meio das suas tristezas, uma única consolação servia-lhe de amparo e impedia que caísse de todo desalentado e vencido - era a de ser útil à mãe e aos irmãos menores. "Esta herança que me deixou meu pai - dizia, referindo-se aos entes queridos que tinha a seu cargo - hei de defendê-la e zelá-la, não só porque desde o momento em que não a tiver comigo, me considerarei desligado inteiramente deste mundo, e só me restará desaparecer do banquete da vida."
Tal era o estado da sua alma , quando uma tarde, passeando pela estrada, se lhe deparou Sinhazinha de pé no portão, suavemente beijada pelos últimos raios do sol poente. A menina trajava vestido de azul desmaiado como o do céu por noites de luar. Tinha uma saudade entre os cabelos. Os olhos lânguidos e ternos, ela os volvia brandamente para o lado donde ele se encaminhava. Vendo-o, corara ligeiramente. Este excesso de pudor produziu no coração de Ângelo, que ele julgava profundamente adormecido, senão morto, indizível impressão semelhante à que experimenta aquele que acorda de diuturno sono. Por essa ocasião, afirmando a vista no rosto da menina, descobriu-lhe modestos encantos em que nunca fizera reparo. Não tinha o intento de lhe falar, mas misteriosa fascinação o reteve junto dela por alguns momentos. Ouvindo-lhe a voz, achou-a engraçada. "Onde andava eu - disse consigo, que nunca adverti nesta suave e tímida harmonia?" Dois meses depois deste encontro e destas observações, os dois jovens, entendendo-se, eram como dois espelhos postos um defronte do outro - refletiam-se e iluminavam-se mutuamente.
Foi por esse tempo que Ângelo conheceu Júlia, cujos encantos tinha a vivez dos painéis pintados a fresco. Sinhazinha tinha a beleza correta, mas silenciosa e modesta das gravuras; Júlia trazia no rosto o colorido ardente, nos gestos a majestade que a arte ensina e que senhoreia os espíritos mais altivos.
Júlia, entretanto, não era de todo estranha e indiferente aos seus sentimentos elevados; seu coração guardava ainda restos de simpatia para as afeições ardentes e irresistíveis; ela era ainda capaz de amar, e chegou até a amar Ângelo. Educada no centro literário, iluminado ainda pelos graciosos talentos de Lopes de Mendonça, Rabelo Silva e tantos outros escritores de que hoje só restam ilustres e saudosas lembranças, ela não podia eximir-se de se sentir arrastada para o bacharel que nas horas vagas escrevia para as primeiras folhas do Recife, compunha dramas e romances, e sustentara um periódico literário, que deixou ligado ao seu nome honrada e vantajosa memória. Quando Ângelo finalizou a leitura do seu primeiro drama em presença da companhia, o qual um mês depois passou pelas provas públicas, Júlia foi a primeira que teve para eles palavras de admiração e demonstrações de simpatia. Ângelo começou então a viver exclusivamente para o teatro.
Estava na maior intensidade essa paixão, quando Ângelo foi sabedor da fugida de Bezerra. Lembrou-se de Maurícia, e do que se passara meses antes entre ela e ele; mas a lembrança depressa se desvaneceria se logo depois ele não tivesse recebido uma carta de Maurícia, acompanhada de uma tradução da Lélia , de George Sand, que ele lhe pedira no dia da festa natalícia de Eugênia para publicá-la no periódico que tinha a seu cargo.
Grande foi a surpresa de Ângelo ao receber a carta de Maurícia. Ao princípio, pareceu-lhe que era vítima de alguma conspiração teatral, visto que, na companhia as suas relações com Júlia já tinham suscitado despeito e hostilidades surdas; mas, atentando na letra, reconheceu que a carta era de Maurícia; esta nunca lhe havia escrito nenhuma regra; mas ele conhecia sua letra de a ver em carta e em músicas dirigidas a Eugênia. Demais, ali estava a tradução que ele pedira, há tempos, e o acompanhamento da sua poesia, que Maurícia lhe prometera.
Ângelo, dando a tal episódio a importância que lhe merecia, pôs-se a refletir maduramente; e logo uma multiplicidade de interrogações encheu o seu entendimento. Por que lhe escrevera? Que era lícito inferir de lhe escrever ela depois da fugida do marido? Como se explicava o não se ter esquecido ainda dele e do pedido que lhe fizera? Ângelo sentiu-se volver ao passado, que já tivera tanta esperança e tanta grandeza para ele. Maurícia foi pouco a pouco reaparecendo em sua imaginação por entre mil hesitações, temores, promessas vãs, riscos iminentes, ausências repentinas, sorrisos e lágrimas.
Agora, as condições não eram as mesmas. As circunstâncias que cercavam a evasão de Bezerra foram tão singulares que tornavam impossível nova reconciliação.
Maurícia estava, portanto, livre, inteiramente senhora das suas ações. O antigo amor que mostrar por ele tinha ressurgido, e era disto prova evidente aquela carta. No espírito do bacharel a imagem de Maurícia desenhou-se diante da de Júlia. estabeleceu-se logo muito naturalmente o confronto entre estas duas tentações; Ângelo não hesitou senão por alguns segundos; aquela venceu esta.
Ângelo, porém, enganava-se ainda desta vez. Não era o amor de Maurícia que voltava; era uma nova luta que se ia travar para arrancá-lo do poder da atriz. Uma grande generosidade estava oculta nas demonstrações do ressurgido amor.
A situação de Maurícia nunca se afigurara tão cruel para ela. Apenas livre de um tormento, já caía a infeliz senhora em outro porventura maior. O amor de Sinhazinha assombrou-a como se fora um espectro. Quando ela, de noite, refletiu sobre o que a amiga da sua filha lhe revelara pela manhã, mal pode resignar-se a não lhe disputar a presa. Mas esta presa já estava nas mãos de outra mulher, e ela não tinha armas apropriadas para combater esta nova inimiga a que o teatro devera ter ensinado a arte de prender as suas vítimas em cadeias de flores envenenadas, pareceu-lhe arriscada empresa. Mas devia cruzar os braços, vendo escravizado aos pés dela o objeto dos seus afetos? O seu amor, e especialmente a sua vaidade, pela primeira vez estimulada, não lhe aconselharam a abstenção, antes a incitaram para a luta, ainda que de duvidoso resultado. Este poderia ser favorável aos seus intuitos, se ao plano procedesse rigoroso exame e se antes do emprego das armas ficassem assentados os melhores meios.
— Escrever-lhe-ei, Sinhazinha. Não acha melhor que eu escreva antes de irmos?
— É melhor! É melhor! - disse a menina.
Não obstante a promessa feita à Sinhazinha com grandes veras, Maurícia julgou prudente espaçar a sua ida ao Recife. A menina, cansada já de contar as semanas, os dias, as horas, começava a descrer da amizade e benevolência de Maurícia, quando, por uma tarde de novembro, a carruagem de Albuquerque parou no portão do sítio de Martins, e dela saltou a mãe de Virgínia, desacompanhada desta. Sinhazinha criou alma nova; correu à casa de Eugênia, abraçou-se com Maurícia e umedeceu-lhe o colo com lágrimas de alegria. Eram passados dois meses depois da sua estada no engenho.
No dia seguinte Martins procurou Ângelo no escritório. Achou aí um sujeito de quarenta e cinco anos, a quem Ângelo dava um tanto para abrir todos os dias a casa, varrer a sala, espanar os móveis e os livros, receber e entregar os autos. Chamava-se Jacinto.
Notando Martins que, sendo onze horas da manhã, Ângelo não estivesse ainda no escritório, o Jacinto respondeu:
— Nem virá tão cedo.
— Demora-se muito?
— Só estará aqui por volta das duas horas.
— Mas isto não acontece todos os dias - advertiu Martins.
— Todos os dias - tornou Jacinto.
— Até agora, quero dizer, há três meses atrás não era assim. Nunca deixei e encontrá-lo no escritório depois das nove e meia.
— Já lá se foi esse tempo. Agora, o doutor vive mais para as atrizes e os espetáculos que para as partes e os autos,
Martins, bom amigo, não quis alentar o diálogo sobre assunto tão escabroso. Demais, ele nada ignorava do que lhe dizia o ajudante, ou antes o servente de Ângelo. O Jacinto, porém, que tinha o vezo de dar com a língua nos dentes, prosseguiu sem se importar com a reserva de Martins.
— Isto não vai bem. O doutor não despacha os autos, e não ouve as poucas partes que ainda o procuram. Se o senhor se demorar algum tempo, há de ver protocolistas virem buscar os papéis retardados, e voltarem ainda desta vez sem eles. O doutor está precisando de conselhos. Se o senhor é seu amigo, não deixe de dá-los.
— Voltarei às duas horas - tornou Martins. Se, na minha ausência, Ângelo aparecer, diga-lhe que espere por mim.
— Não tenha susto. O senhor há de vir e de esperar ainda por ele.
Martins desceu, sentindo longes de tristeza na alma. Era um homem que devia ao menos gratidão a Ângelo que fazia dele tão boas ausências.
No pé da escada um oficial de justiça estava conversando com um procurador de causas. O primeiro dizia que Ângelo lhe devia ainda uma dezena de intimações atrasadas; o segundo viera cobrar o restante de um débito, proveniente de trabalhos que o jovem bacharel o encarregara fora da cidade. O procurador dizia ao oficial:
— O dinheiro que o homem apanha é pouco para comédias, presentes, passeio a carro e outras loucuras.
O oficial respondeu ao procurador:
— Um dia destes tive em minhas mãos um requerimento chamando-o a conciliação por trezentos mil-réis que ele deve ao Pereira, que tem loja de fazendas na Rua do Queimado. Não quis encarregar-me da citação para o doutor não dizer que, se ele não me devesse, eu não me animaria a citá-lo.
Ainda quando Martins não formasse do estado de Ângelo o juízo mais aproximado, estes esboços feitos a carvão, como os desenhos obscenos dos moleques nas paredes, foram mais que bastantes para que de tal estado não lhe restasse a menor dúvida.
E, dando o devido desconto ao que ouvira, encaminhou-se para o ponto onde exercia a sua indústria, e aí se deixou ficar até às duas horas; trinta minutos depois, entrou novamente no escritório.
— Estás mal comigo, Ângelo? - perguntou ao entrar.
— É a mim que me cabe fazer-te esta pergunta.
— Estive ontem à noite em tua casa. Tinhas ido ao teatro. Tomei chá com tua mãe e tuas tias. Vi teus irmãos. Um deles pareceu-me estar já perdendo ao ano.
— Conheces algum mestre brando, benévolo e paciente? Não quero expor meus irmãos ao desamor de certos professores que tornam odioso aos meninos o mister de aprender.
— Tenho um primo que é um professor exemplar. Falar-lhe-ei amanhã. sobre a entrada de teu irmão na sua escola; e, na semana vindoura, pode o menino começar o trabalho. Mas - mudando de assunto - qual a razão do teu afastamento de minha casa. Lá ninguém tem ofendeu.
— Não tenho aparecido por estar muito sobrecarregado com trabalhos;
— Forenses?
— Na maior parte.
— Queria-me parecer, ao entrar aqui, o contrário do que estás dizendo. Há três para quatro meses que não venho ao teu escritório, e em tão curto espaço de tempo noto agora grande diferença. Então, via-se o escritório ordinariamente cheio de clientes; hoje, vejo-o deserto. Somos três os que estão aqui - eu, tu, e ali o Sr. Jacinto, matando moscas. Como vais com o teu jornal.
— Agoniza. Muitos dos assinantes não renovaram as assinaturas e ver-me-ei na contingência, se não entrarem novos que compensem os que não tornaram, de suspender a publicação.
— Deves à tipografia?
— Estou num pequeno atraso.
— Entretanto, há quatro meses era próspero o estado do jornal. Não se deverá atribuir o resfriamento dos assinantes à publicação quase exaustiva de traduções e transcrições, em vez de artigos originais, em que até certo tempo te mostraste tão fecundo?
— Talvez. De fato, não tenho tido tempo de escrever como já escrevi. Ando a modo de preocupado.
— Andas; e é sobre isto que venho tomar-te alguns minutos.
— Senta-te aqui.
Ângelo e Martins encaminharam-se para um gabinete curto e estreito, que corria paralelo à sala, onde aquele tinha a sua mesa e estantes. Ângelo recostou-se sobre um sofazinho de vime, que com duas cadeiras de braços adornavam o pequeno aposento. Martins sentou-se em uma das cadeiras, e começou assim:
— Ângelo, venho falar-te sem outra autoridade senão a de amigo sincero que te deseja mil prosperidades e muitas glórias que redundem em proveito dos teus.
— Podes falar com toda a liberdade. Sou o primeiro a reconhecer que uma das minhas mais urgentes necessidades é a de ter um amigo que me dê saudáveis conselhos.
— Vim resoluto a dá-los. Tua mãe, tão discreta, tão conformada com a sua sorte, teve ontem para mim maternais franquezas e comovedores ressentimentos. Considera-te, não sem razão, afastado do caminho que sempre soubeste trilhar, ainda quando estavas nos teus verdes anos. Este triste resultado ela o atribuiu ao teatro, que deve ser, e, quando bem compreendido, certamente escola de bons costumes, edificativa de sã moralidade por exemplos de altas virtudes sociais e domésticas. Sem o afirmar positivamente, deu-me a entender que tudo o que ganhas pela tua profissão das mãos te sai para despesas vãs e inúteis.
Martins ficou aqui. Pousara as vistas no amigo, e pela expressão do semblante parecia ter toda a alma empenhada em conhecer o efeito das suas reflexões. Este não tardou muito a revelar-se; Ângelo, deixando o encosto do sofazinho, sentou-se e respondeu:
— Não obstante chegarem fora de tempo os teus conselhos, ganhaste com eles novo direito à minha gratidão pela boa intenção que os inspirou.
— Chegaram fora de tempo? - inquiriu Martins quase inquieto.
— Estão inteiramente extintas as relações que me prendiam à Júlia.
— Obrigado, obrigado, Ângelo! - disse Martins com efusão de sentimento que não pudera reter em seu coração. Está então tudo acabado?
— Tudo, tudo.
Martins procurava no pensamento uma forma, uma frase mais viva para manifestar o seu contentamento ao amigo de infância, quando viu nos olhos deste duas lágrimas a bailarem.
Levantou-se comovido e triste. Deu alguns passos em silêncio pelo gabinete. Ângelo, compreendendo o que a sua fraqueza devera ter feito gerar-se no espírito do amigo, passou o lenço pelos olhos e foi ao encontro de Martins.
— Não duvides das minhas palavras. Senti, sinto ainda o golpe, mas definitivamente está tudo acabado entre mim e essa mulher. Onde havia paixão violenta há agora uma barreira ingente, que nem eu transporei, nem ela transporá. Tive por Júlia grande amor, que ela me retribuiu com isenção de ânimo até pouco tempo. Há duas semanas comecei a notar de sua parte não só resfriamento mas esquivança. Faltou ao prometido, deixando-se ficar na caixa do teatro. Anteontem de tarde, cometi um ato de loucura. Meti-me num carro e mandei tocar para o Monteiro. Ela mora numa casa de terraço com gradil, sobranceira à estrada.
— Sei onde é.
— Júlia estava no terraço, quando apontei na estrada e tanto que me avistou fugiu para dentro. Fiquei indignado. Assaltou-me o pensamento de lhe fazer qualquer manifestação insultuosa; por exemplo, a de lhe atirar uma luva, se ela aparecesse no momento de passar o carro defronte da casa. Ela não apareceu, mas eu estava trêmulo de raiva, e quase não podia governar-me. Mandei parar o carro, meti num dos dedos da luva um anel, que ela me havia dado de presente, e, pondo-me de pé, atirei a luva e o anel por cima do gradil. Não pude dormir. Mau espírito perdeu-se em vãs conjunturas sobre a origem do desdém de Júlia para comigo. Hoje, seriam dez horas da manhã, entrei no teatro. Ela não fora ao ensaio. Quando eu saía, o porteiro veio ao meu encontro e entregou-me uma carta que podes ler.
Martins tomou a carta e leu:
"Não pense que sou uma mulher vulgar. Sinto ainda pelo senhor grande paixão, não obstante ter assentado cortar todas as relações que existiam ente nós. A explicação do meu procedimento é a que passo a dar. Vieram dizer-me que sua mãe estava sofrendo por meu respeito. Ora, eu venero a mãe de quem quer que seja. Para atalhar os padecimentos de minha mãe, casei-me contra a minha vontade. Ela acompanha-me por toda a parte; por ela tenho feito e farei os maiores sacrifícios. Condoí-me, por isso, de sua mãe sem a conhecer. Por que havia eu de prolongar os eu sofrimento? Se eu pudesse aspirar a possuir o senhor até a morte, talvez o egoísmo, sentimento cruel, me desse ânimo para sustentar a luta com o sentimento maternal, e disputar-lhe a vitória; mas poderei acaso, sem dar triste idéia da minha razão, nutrir semelhante esperança? Presa pelo destino, falaz e fatal. ao teatro, mundo sombrio sobre o qual, se algumas vezes assoma o sol da glória, é mais para mostrar as suas manchas do que para projetar a sua luz, o que me cumpre fazer senão resignar-me ao meu papel e à minha condição? Aceitei por isso a proposta que me fizeram do Maranhão e seguirei para ali no primeiro vapor. Peço-lhe que se esqueça de mim, e que me perdoe esta resolução, como eu perdoei o seu insulto que me lançou fel no mais íntimo da alma.
J.
— Tens medo dessa mulher, Ângelo - disse Martins, concluída a leitura da carta. E como é possível que ela algum dia volte a repetir a luta com o amor maternal para lhe disputar o seu penhor predileto, não será por demais quebrar esta arma que ela deixa em tuas mãos contra ti mesmo.
Dizendo estas palavras, Martins fez o gesto de rasgar a carta de Júlia. Ângelo correu a tolher que ele levasse a efeito a intenção apenas denunciada.
— Não rasgues a carta.
— Peço-te perdão, Ângelo. O crime está cometido.
Os pedaços, em que Martins pusera o papel, rolaram aos pés dos dois amigos.
— Não me queiras mal por isso. Quebrei uma arma que estava dirigida contra o teu coração.
— Receias que façamos as pazes? É impossível. Depois, Júlia embarcou ontem. Não viste a data da carta? Foi escrita há três dias. Não é uma mulher vulgar. Pode mais que o seu amor.
— É ainda este juízo que formas dela? Queres saber porque foi que deixou o Recife? É fácil de compreender esta abnegação. Do Maranhão ofereceram-lhe maiores vencimentos. Mas ou a verdade esteja contigo, ou comigo, dou-te os parabéns, e vou pedir alvíssaras a tua mãe.
Martins ia sair, quando volveu imediatamente sobre os seus passos.
— Tinha-me esquecido de dizer-te que Maurícia chegou ontem à noite a Caxangá, disse.
— Ah!
— Não te admires. Se não andasses tão longe do mundo onde vives, se não tivesse até estas presentes horas o espírito tão perto da luz, já terias acertado com a origem da vinda dela; Vê lá se podes adivinhar.
Ângelo em vão procurou o alvo indicado pelo amigo. Foi para ele um ponto inacessível, invisível, um mistério impenetrável. O que em seu entendimento desenhou-se imediatamente com as mais vivas tintas foi a imagem de Maurícia tal qual a vira ele na tarde rica de encantos e ilusões em que fora com ela do Caxangá até a porta do engenho. Lembrou-se das cenas vivas, das frases apaixonadas, dos castelos brilhantes que depressa se haviam desvanecido como neblinas. Teve saudades daquela criatura esplêndida, que ele durante os quatro últimos meses odiava e desprezava.
Martins tirou-o do seu enleio com estas palavras:
— Estamos em vésperas de dezembro.
— Quererás dizer que ela vem passar todo o mês, que vai entrar, na estrada de João de Barros?
— Não, Ângelo. Ela vem ensaiar os versos que deve cantar por ocasião das novenas da Conceiçõazinha, as quais prometem este ano ser esplêndidas. Não hás de faltar.
— Quais são as cantoras?
— As que costumam cantar todos os anos, as nossas vizinhas mais próximas- Iaiá, Sinhazinha e outras. Aposto que não sabes mais quem é Sinhazinha - acrescentou com ares brejeiros.
— Hei de reconhecê-la, hei de reconhecê-la - tornou Ângelo, não sem rápida perturbação.
Então, Martins, trocando os ares de há pouco pelos que assumem as pessoas picadas que repelem a palavra ou gesto ofensivo, redargüiu:
— Pois não hás de reconhecê-la, Ângelo. Tu a puseste a um passo da sepultura.
— Eu?
Martins saiu, deixando o amigo absorto em mil conjeturas, que revoavam entre a forma de Maurícia e a da filha de D. Sofia como bandos de irrequietas aves, mensageiras de próximas tormentas, tão naturais nos corações humanos.