O Sacrifício/XVII
Compreendendo Maurícia quanto devera custar a Ângelo aproximar-se dela depois dos fatos passados nos últimos meses, tomou a resolução de ser a primeira que fosse ao seu encontro; e, na mesma tarde da entrevista dos dois amigos no escritório, dirigiu-se à casa de D. Rosalina com o fundamento de visitar D. Matilde, mãe do bacharel.
D. Matilde era um tesouro de afetos e qualidades raras, entre as quais primava a naturalidade nas palavras e ações, que muitas vezes vale mais que a urbanidade, prenda dos espíritos cultos, mas nem sempre indício de bom coração.
Se na visita houve pretexto, houve também o desejo que Maurícia alimentava, desde que vira Ângelo, de conhecer D. Matilde.
A visita foi motivo de prazer para as duas senhoras. Como se de há muito as ligara forte laço de afetuosa e provada amizade, a maior franqueza e mais larga confiança animaram a conversação. Falaram de si e dos entes que mais estimavam na terra; falaram dos seus infortúnios, da sua descrença e das suas esperanças; nem foram esquecidos na prática amiga os seus hábitos, os seus desejos, as suas inclinações. Para tão larga expansão não contribuiu pouco estarem sós, visto que D. Rosalina tinha saído com sua irmã e as crias a passeio pela arrabalde.
Quando Ângelo penetrando na sala, deparou ao lado de D. Matilde a mulher que te novo começava a ter em seu pensamento o primeiro lugar depois de sua mãe, empalideceu e emudeceu um momento com o inesperado abalo. Vendo-o perplexo, Maurícia levantou-se, encaminhou-se para ele e estendeu-lhe a mão, que ele tomou com solicitude.
— Não se admire de me ver aqui, disse ela. Não se lembra de que, conversando comigo em casa de meu cunhado - vai para seis meses - declarou que teria prazer em aproximar-nos? Apressei-me em proporcionar-lhe esse prazer.
A esta amabilidade, que parecia vir do intrínseco da alma de Maurícia, correspondeu Ângelo com amabilidade senão tão íntima, certo de não inferior cortesia.
— Assim praticando a senhora acaba de escravizar ainda mais o meu coração, já tão escravo dos seus dotes; e o prazer que havia de experimentar aproximando minha mãe da senhora, duplicou-o não só a fineza, mas também a honra de sua visita.
À tardinha, Ângelo e D. Matilde acompanharam Maurícia para a casa de Martins e aí ficaram para o chá. Era um dos primeiros dias de dezembro; no dia seguinte deviam começar as novenas da Conceiçãozinha. Maurícia tinha sido convidada pelos juizes da festa a cantar uns versos compostos pelo benemérito poeta pernambucano Torres Bandeira.
Por motivo de moléstia, Virgínia não tinha acompanhado a mãe ao Recife; mas depressa deveria vir, logo que melhorasse, a fim de tomar parte na solenidade.
Na casa de Martins, iam repetir-se os suaves regozijos de que era todos os anos, por aquele época, natural estância, visto ficar perto da capelinha e ser durante o ano o centro onde se ajuntavam as primeiras famílias das vizinhanças. Havia na sala umas dez ou doze senhoras, entre as quais as nossas conhecidas D. Rosa, D. Sofia, Iaiá, Sinhazinha, D. Teodora e sua filha Teresinha. Não eram muitos os homens. Se levarmos em conta Ângelo e Martins, mostrava-se o irmão de Sinhazinha, por nome Alfredo, que tinha especial motivo de estar ali - andava arrastando asa para a Iaiá; um moço empregado em uma das repartições públicas, Honório Lins, que pela segunda vez viera à casa de Martins; e por último o mestre de piano, o Silvério, muito estimado da melhor sociedade do Recife. O Salustiano, de quem os leitores talvez se lembrem ainda, prometera comparecer, mas faltara, receando acaso as judiarias de alguns estudantes dos quilates do Azevedo, que seis meses antes tantos risos despertara à custa dele.
Tinham se reunido as senhoras para proceder ao ensaio geral dos versos que deviam ser cantados na noite seguinte. Chegando o momento de dar-se começo ao piedoso exercício, as moças encaminharam-se para o piano. Já ali estava Silvério que com mágicos prelúdios abafou o farfalhar das saias ruidosas das cantoras.
Então, Maurícia começou a cantar. Dir-se-ia que na longa ausência sua voz fizera aquisição de novas harmonias até àquele momento desconhecidas dos ecos da estrada. Essas harmonias tinham sentimento e grandeza. O motivo era religioso, mas os tons de certas profanidades afetiva, a frescura e a vivacidade que não parecem muito compatíveis com os graves acentos e a morna languidez das músicas sacras, estavam traindo de parte dela certo desejo, certo empenho em ser mais agradável ao amor profano do que ao amor divino. Maurícia cantava exclusivamente para Ângelo ouvir; a vaidade tomara lugar da devoção.
Terminados os versos, ela veio sentar-se ao lado de Ângelo, junto de uma janela, enquanto as outras moças, que se haviam mostrado mal ensaiadas, ficaram ainda ao pé do piano para repetir o estribilho.
— Por que falou tão friamente com Sinhazinha? - perguntou Maurícia ao bacharel a meia voz. Há três meses não lhe falava assim.
— Quem lhe disse que eu falava de outro modo?
— De tudo, ando informada. A paixão tem linguagem mais viva ao seu serviço.
— Nunca senti paixão por Sinhazinha.
— Para que diz isto? Não desça do lugar que já ocupou no altar do seu coração aquele delicado ídolo.
— Quem lhe disse o contrário, faltou à verdade, D. Maurícia. Eu só senti uma paixão na vida; essa existe ainda tão veemente, tão profunda como nos primeiros tempos.
Maurícia sorriu tristemente.
— Cuida o senhor que, por estar morando distante duas léguas do Recife, não sei dos seus passos? Sinhazinha tem-lhe uma grande inclinação, que o senhor ainda retribuiria como nas primeiras semanas, se os seus trabalhos dramáticos não lhe tivessem voltado inteiramente a cabeça para o teatro, a ponto de o tornarem esquecido das suas mais íntimas afeições.
— Sei ao que pretende aludir - respondeu Ângelo, algum tanto contrariado. Foi tudo isso um sonho de poucos meses. Está tudo acabado.
— Não diga isso. Não é possível o que está dizendo. As paixões não se desvanecem como os sonhos. Aquelas que assim se desvanecem não são paixões, são pretensões materiais e falazes, são desejos desprezíveis que só podem ter morada em ânimos frívolos, em almas vulgares. Eu não compreendo as paixões deste modo. Eu as comparo com incêndios que ordinariamente terminam depois das grandes destruições, não deixando lama, senão cinzas.
Ângelo respondeu: - Nunca senti paixão por essa mulher, nem por Sinhazinha. A maior, a única que ainda me tomou na vida foi a que a senhora me inspirou. Esta existe ainda; existirá sempre.
— O senhor está enganado - disse Maurícia, sorrindo ironicamente.
— Enganado! Pensa que, se não fora a senhora, eu estaria aqui?
— Mas para que há de ser ingrato e injusto? Veja Sinhazinha como o procura com a vista. Ela tem direito a retribuição diferente desta. Demais, por que há de insistir em avultar um castelo que, se existe na sua imaginação, não tem alicerces no seu coração? Declaro-lhe positivamente, Sr. Dr. Ângelo, que não creio em sua paixão por mim; mas, ainda quando esse impossível sentimento não fosse a trivial ilusão, que suponho, crê o senhor que eu poderia alimentá-lo? Sou escrava do meu dever.
— Pois sim, sim - respondeu Ângelo com maus modos. Não falemos mais nisso, minha senhora.
E levantou-se para por o charuto fora.
Com pouco, concluído o ensaio do coro, Maurícia e as outras senhoras passaram à sala de jantar, onde se serviu o chá. Ângelo não falou mais com Maurícia esta noite. Às dez horas, despediu-se, tomou com sua mãe o caminho da casa.
Nessa mesma note, Maurícia soube que tinham cessado as relações de Ângelo e Júlia. Martins referiu com demonstrações de satisfação a parte essencial da entrevista no escritório. Já era meio caminho andado. Esta revelação veio mudar os seus planos de luta para tirar o bacharel do poder da atriz. Tinha vindo mais para entrar nessa luta do que para praticar devoção, visto que tomara à sua conta o futuro de Sinhazinha. Mas sendo outras as circunstâncias, julgou conveniente aproveitar-se das facilidades que elas ofereciam. A luta agora deveria travar-se exclusivamente com o bacharel. Maurícia esperou pela primeira ocasião.
Esta ofereceu-se na noite seguinte, depois da conversa. Havia luar. A temperatura estava fresca e saudável. Maurícia propôs um passeio pela estrada, e a sua proposta foi aceita. Dividiu-se o juntamento deste modo: Alfredo e Iaiá rompiam a marcha; duas senhoras do Recife, que tinham ficado por instâncias de Martins e Eugênia, seguiram com estes após aqueles; Sinhazinha e D. Matilde seguiram, após o segundo grupo; Maurícia e Ângelo iam atrás de todos.
— Está zangado comigo? - perguntou Maurícia ao advogado.
— Queria que eu não ficasse magoado com os seus cruéis desenganos?
— Mas o que lhe posso dizer, Sr. Dr. Ângelo? Que quer o senhor que eu lhe diga?
— Quero que me diga que corresponde e corresponderá ao meu afeto com a veemência que é o primeiro sinal, ou antes, a essência do meu. Não lhe mereço este sentimento? Não tenho mais nada com mulher nenhuma. Deixe que eu seja franco. Durante alguns dias, senti certa simpatia, inclinação por Sinhazinha; ela não é feia; é até elegante e tem muito boas qualidades espirituais. Percebi essa inclinação e cheguei a alimentar, por palavras e obras, no espírito da Sinhazinha a esperança de vir a ser, no futuro, seu marido. Eu estava por esse tempo inteiramente desenganado do seu amor, D. Maurícia. A senhora tinha voltado à vida conjugal; sua filha tinha casado; tive por certo que nunca mais se mudassem estas circunstâncias, que excluíam qualquer possibilidade de reatarmos as nossas relações violentamente despedaçadas pela sua ilusória reconciliação. Descrente, descontente, sentindo dentro em minha alma dobrado vácuo deixado pela morte do seu amor e pela morte de meu pai, era fácil ser atraído por essa gentil menina e ficar algum tempo enleado. Eu achara graça na sua modéstia, na sua timidez e, sobretudo, nas suas idealidades, porque eu estava sem ideal. Depois, conheci outra mulher, que, por seus sentimentos arrebatados, seus talentos artísticos me teve preso por poucos meses junto dela, numa ilusão confusa e atordoada, humaníssima, no estado em que eu vivia. Quando esse astro desapareceu dos meus olhos, tinha já fugido antes dele do meu pensamento a imagem da jovem singela, que fora o meu santelmo nos mares cruzados da vida e - coisa singular! na imensidade do meu espírito, assim desocupado, ressurgiu a sua forma, a sua pessoa, que eu julgava de todo morta. Eis a verdade. Pois bem: quando eu esperava que as suas primeiras palavras para mim fossem poemas de consolação e idílios de esperança; quando eu supunha que, estando a senhora livre como está - e para sempre, porque seu marido não há de tornar mais nunca - não teria para mim a expansão franca e expontânea do amor imenso que é compatível com o seu imenso coração, o que cai dos seus lábios, no entanto, são sentenças cruéis, que vêm aumentar a aridez de minha alma, já queimada pelo fogo de tantos desenganos.
— A sua ilusão, Sr. Dr. Ângelo, tem um falso fundamento. Pensa o senhor que eu estou livre, quando eu sinto ainda pungir-me o pulso a cadeia de ferro, que me prende a meu marido, e não se partirá senão com a morte de um de nós dois. Eu não estou livre, continuo a ser a escrava infeliz, que, embora na ausência de seu senhor, sente, ao pensar na sua mísera condição, a ponta do azorrague machucar-lhe as carnes. Hoje, é muito mais melindrosa a minha situação do que antes do casamento de Virgínia; o senhor compreende sem dificuldade que a uma filha casada tem sua mãe muito mais rigoroso dever de dar exemplos de honestidade, do que a uma solteira, do que a uma donzela, que traz em sua condição parte de sua defesa. Não é certo que a corrupção chega muito mais facilmente, porque chega sem deixar vestígios, ao seio da consorte do que ao seio da virgem? Não tenha mais nenhuma ilusão a meu respeito. Estou morta para o amor, a não ser para o amor maternal.
Estas palavras levaram o gelo à alma do bacharel, que estava em fogo um momento antes. Ele parou. O luar cobria-os de suave claridade, que ajudou Maurícia a distinguir no semblante de Ângelo indícios de íntimo desespero.
— Mas, então, disse ele como quem não achava palavras para exprimir com precisão as suas idéias, por que de lá mesmo onde estava, não cortou com decisivo e rude golpe esse amor parasita que me corrói o coração? Por que me escreveu a senhora? Por que teve para mim nessa carta expressões que se parecem com saudáveis confortos e promessas de prazer eterno? Tenho aqui comigo a sua carta. Muitos e ardentes beijos têm meus lábios imprimido nela.
Ângelo tirou do bolso a carta que Maurícia lhe enviara com a tradução do romance de George Sand, e o acompanhamento da poesia dele; e sem poder suster o seu destino, beijou várias vezes o papel.
— Meu Deus! - exclamou Maurícia a modo de assustada. Peço-lhe perdão, mil perdões. Não cuidei que alentaria assim o fogo do seu coração. Deus é testemunha de que, escrevendo-lhe essas letras, a minha intenção foi outra. Julgava todo o seu afeto por mim extinto, inteiramente aniquilado; e tinha razão para pensar assim. Mas, se as minhas palavras foram sementes fatais que vieram viver entre as chamas como as salamandras, não me recuse o seu perdão, porque cometi esse crime sem intenção, antes pensando em praticar ação lícita e boa.
E tomando novamente o braço do bacharel, compeliu-o a andar. Pouco adiante, estavam parados os outros.
— Tenho uma coisa que lhe dizer, D. Maurícia, acudiu Sinhazinha, tanto que pode ser ouvida pela mãe de Virgínia.
E correu para ela, gentilmente. Ângelo, deixando então as duas amigas juntas, foi dar o braço a D. Matilde. Daí, voltaram.
O que Sinhazinha queria dizer à Maurícia é fácil adivinhar. Ela soubera naquele momento da ausência da rival. D. Matilde, que votava grandes simpatias à filha de D. Sofia, revelara-lhe a sua satisfação por ver o filho livre do perigo. É fácil compreender o efeito de tal revelação no espírito, para assim dizermos, no coração da menina. Ela andava triste. Aquelas aventuras tinham-lhe dado muito fel a beber. Durante os dois meses que se seguiram à sua chegada do engenho o seu desgosto, o seu amargor íntimo tinha ido em aumento. Quando Maurícia chegou, mas pode conhecê-la, porque as carnes pareciam ter fugido do corpo dela e a palidez cobria-lhe o rosto. Era inda este o seu estado. A notícia dada por D. Matilde mudou subitamente as condições do seu espírito. Ordinariamente, tímida e modesta, Sinhazinha não guardou desta vez coerência com sua índole e seus hábitos. Tomando o braço de Maurícia, não a deixou mais senão em casa de Martins. Tornara-se outra. Estava alegre. Mais de uma vez aproximou-se de Ângelo e dirigiu-lhe a palavra; o bacharel notou esta diferença, porque nos encontros que tivera com a moça durante as duas noites últimas, vira-a apenas corresponder aos seus cumprimentos e, em vez de aproximar-se, não perder ocasião de se distanciar dele. O prazer de Sinhazinha, porém, durou pouco, porque dentro em breve ela teve a certeza de que Ângelo estava a todo momento a manifestar-lhe esquivança. As impressões de Sinhazinha foram a modo de comunicativas: Maurícia, à proporção que os dias se adiantavam, caía também em funda melancolia.
Uma vez, perguntou-lhe Eugênia:
— Que tem você, Maurícia? Todos notam que você anda descontente e preocupada. Parece-me que não há razão para semelhante tédio à vida.
Virgínia, que já tinha chegado, aproximou-se de Maurícia e disse-lhe.
— Ora, mamãe, deixe-se de tristeza. Vamos tocar, ou antes, venha cantar. Venha, mamãe.
Por satisfazer à filha, Maurícia pôs-se ao piano. Quando terminou a harmonia de Schubert, que era a sua predileta, estava banhada de lágrimas.
Interrogada sobre a causa do seu pranto, dissera que não podia ser outra senão a sua pouca sorte. Todos foram levados a achar a razão desse pranto no procedimento de Bezerra. Maurícia não disse sim, nem não, a semelhante respeito. Mas os eu coração e a sua consciência protestaram em silêncio contra o juízo geral.