O Sacrifício/XVIII

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O sino da capela deu sinal que ia entrar a festa. As novenas tinham terminado na véspera com grandes elogios às cantoras; mas o concurso de gente que elas haviam atraído não cessara, antes, na última noite, mostrava-se ainda maior. Muito de indústria, o juiz fizera correr fama que os versos seriam cantados pelas primeiras vozes do Recife e que entre estas se faria ouvir pela primeira vez a mais gentil das de que ali se poderiam jactar até então nas festas das igrejas. Alguns jornais publicaram esta notícia, e não foi preciso mais para que da rede de arrabaldes, que cerca a estrada, chegassem milhares de pessoas dentre as quais, se muitas eram arrastadas pela devoção, a maioria não tinha outro fim que o de divertir-se como é de costume.

A popularíssima festa de Nossa Senhora da Saúde que se celebra no Poço da Panela; a de Nossa Senhora dos Prazeres de Guararapes, que se celebra na freguesia do Cabo; a de Nossa Senhora do Monte, em Olinda, tiveram aquele ano digna êmula na da Conceiçãozinha da estrada João de Barros. Nunca festa de arraial foi mais brilhantemente concorrida.

E o espetáculo sob muitos aspectos importantes, pagava a curiosidade das visitas.

Sendo o boqueirão, por onde meses antes Ângelo passeara com Maurícia, o ponto do sítio que ficava mais perto da capela, mandou Martins decotar as árvores próximas e conduzir para ali cadeiras, a fim de que as senhoras pudessem, sem risco, ver desse recanto ameno o espetáculo festivo. As sete horas, via-se ali reunida a luzida sociedade, que privava com Martins; e ao lado das jovens elegantes, mostravam-se moços de talento e nomeada que ele tinha a fortuna de saber chamar à sua amizade por seus modos francos e obsequiosos. Dos freqüentadores do sítio, só um faltava: era Ângelo. A ausência deste era sentida por todos, mas especialmente por Maurícia, posto que sua discrição não lhe permitisse revelá-lo. Durante toda a semana, Maurícia queixara-se de calafrios e rápidas pontas de febre. Dizia sentir dores pelo corpo e peito, mas a sua enfermidade era moral. Ângelo ausentara-se da casa de Martins desde a primeira noite de novena, aquela em que tivera de Maurícia o mais formal desengano e nisso estava a origem do mal dela. Que fizera durante este tempo? Não podendo vencer a contrariedade e o desgosto, achou um meio de sair desse penoso estado, e de vingar-se ao mesmo tempo da mãe de Virgínia fazendo que ela viesse a ter também o seu quinhão de sofrimento. Demais, ele estava triste e descontente da cidade que meses antes tomara por uma mansão celestial. Não podia ir ao teatro na ausência de Júlia; não podia freqüentar Martins, depois do que se passara com a cunhada deste. Acudiu-lhe, então, o pensamento de deixar o Recife. Em conseqüência, procurou um amigo político de grande importância para o Presidente da Província, que prometeu nomeá-lo para um dos lugares de promotor que estavam vagos. Inteiramente absorto na promessa, Ângelo, enquanto ela se realizava, fugia da sociedade que costumava freqüentar antes. No dia da festa, meteu-se em um dos carros da linha de ferro do Recife a Apicucos, e, chegando a este povoado, começou a matar o tempo andando de um lugar para outro, visitando antigos conhecidos, passando horas no hotel entregue à mais cruel monotonia.

Antes de começar a festa, havia ainda em alguns dos hóspedes de Martins a esperança de que Ângelo repararia a longa ausência durante toda a semana, comparecendo agora. Maurícia, posto que, mais competentemente do que ninguém, ajuizasse do despeito e contrariedade de Ângelo, não podia capacitar-se de que ele tivesse ânimo para fugir de assistir a sua despedida. Dentro em breve, porém, teve a prova do quanto se enganava; e, quando terminado o Te-Deum , sem que o jovem advogado houvesse ainda aparecido, a sua tristeza aumentou de intensidade e crueldade. Muitas lágrimas silenciosas recebeu em segredo o seu lenço perfumado, muitos suspiros ela os abafou cuidadosamente, a fim de que não fossem suscitar desconfianças que lhe seriam desairosas.

Concluída a cerimônia, não houve instâncias de Martins, não houve rogativas de Eugênia e Sinhazinha que dissuadissem Maurícia de seguir àquela mesma hora para o Caxangá. A todos os pedidos, respondeu dizendo que lhe estavam fazendo mal os ares da estrada, e que deveria ter pressa em fugir deles; os ares nunca tinham sido mais saudáveis; os aromas das flores dos cajueiros e das mangueiras saturavam a atmosfera de átomos balsâmicos e gratos. Não houve nada que a retivesse no sítio. Às onze horas, a porteira do engenho batia sobre a carruagem que entrara conduzindo Maurícia, Virgínia e Martins.

O afastamento de Ângelo e a tristeza de Maurícia lançaram no espírito de Sinhazinha grandes suspeitas, Aquela retirara-se sem lhe dizer uma só palavra sobre a sua prometida intervenção. Somente uma vez dizendo-lhe a filha de D. Sofia que lhe parecia não ter diminuído a indiferença do advogado, visto que nunca mais ele tornara ao sítio, ela lhe respondera:

— Não perca as esperanças. O tempo acabará tudo.

Parte destas suspeitas fora insuflada por D. Sofia, a quem a filha revelava todas as ocorrências que lhe diziam respeito.

— Tens tanta confiança em D. Maurícia, Sinhazinha, como se ela fosse tua mãe ou tua irmã. Se pensas que há de fazer mais por ti do que por ela, está enganada.

— Não diga isso, minha mãe. D. Maurícia tem muito boa alma.

— Tola! Não passas de uma tola! Eu tudo estou vendo e pelos domingos vou tirando os dias santos. Já observaste que o Dr. Ângelo só se senta ao pé dela, e que só com ela tira conversa?

— Quem é que não gosta de conversar com D. Maurícia, que é tão instruída e bem educada?

— Não seja simplória, minha filha. Eles aproximam-se um do outro porque alguma coisa existe entre eles dois. Que quer dizer D. Maurícia compor um acompanhamento para uma poesia do Dr. Ângelo, mandar-lhe traduções feitas por ela, conversar com ele horas inteiras? Não te iludas, Sinhazinha!

A menina começou atentar nestas traiçoeiras sagacidades do amor maternal e achou que havia fundamento. As suas suspeitas redobraram com a intensidade da moléstia espiritual de Maurícia, que lhe parecia ocasionada pelo amuo do bacharel.

Uma manhã, Martins, passando os olhos por uma das folhas diárias do Recife, teve grande surpresa. Acabara de ler a nomeação de Ângelo para o lugar de promotor de uma comarca do interior. Mas a surpresa não lhe foi inteiramente desagradável; e dando a notícia a Eugênia, acrescentou estas palavras:

— Já era tempo de procurar um emprego e entrar numa carreira séria e decente. está apodrecendo no Recife.

Igual, senão maior surpresa teve D. Matilde, quando o filho lhe indicou o seu despacho na folha, Por pouco ela não teve uma síncope. Não havia para ela sacrifício maior do que viver separada do filho.

— Que resolução foi esta, Ângelo? E por que não me ouviste antes, meu filho?

— Eu sabia que as suas lágrimas haviam de ter força para dissuadir-me de um pensamento, e um propósito que não pode, aliás, deixar de redundar em benefício de minha mãe e meus irmãos.

D. Matilde começou a chorar.

— Muito me há de custar a separação, minha mãe, mas a lei fatal da necessidade pode mais que as leis do coração. Tenha paciência. Preciso de meios para sustentar a família, e o escritório não os proporciona. Devo ir buscá-lo onde eles se me oferecem, ainda que seja distante daqui.

Dois dias depois, Ângelo seguiu para a comarca. Ia com ele imensa dor. A imagem de Maurícia, impressa no pensamento, não o deixava um instante, no meio das suas fundas cogitações; e ao lado dela, aparecia D. Matilde, chorosa e triste como no momento da despedida. Nunca as saudades tiveram tamanha força em seu coração. Também as longas e desertas solidões, que ele atravessava muito deveriam concorrer para semelhantes impressões.

— Talvez - dizia ele consigo - talvez que, tendo conhecimento deste meu passo, Maurícia ainda venha a retribuir o meu afeto. Mas quem sabe se eu não ando iludido? Maurícia pensará ainda em mim? Pense ou não, é ela o único objeto do meu afeto.

Maurícia pensava nele, e não podia esquecer-se dele. Quando Virgínia lhe disse que lera no jornal a nomeação de Ângelo, ela correu como louca para verificar com seus olhos esta fatal notícia. Sentiu todas as amarguras, todos os tormentos que sofrem de perto os namorados com tudo o que pode prolongar a ausência do objeto das suas afeições.

Estava ela ocupando de novo o antigo aposento, na casa-grande, para onde se mudara depois da fugida de Bezerra. Concentrou-se aí com a grande dor. Poucas vezes, descia à sala, onde costumava reunir-se com D. Carolina, Virgínia e outras senhoras. Deu em tocar e cantar músicas tristes. Perdia as noites em longas abstrações.

— Foi a fatalidade que pôs em minha alma esta paixão! - dizia algumas vezes.

E as lágrimas deslizavam-se-lhe pelas faces.

Outras vezes, advertia:

— Se eu fosse livre, se eu pudesse dizer-lhe: "posso dar-lhe o meu amor, posso retribuir o seu afeto, podemos viver juntos até a morte" não haveria quem fosse mais ditosa do que eu!

Mas logo recaía em sua habitual melancolia. E então acrescentava:

— Ai de mim! Esta paixão leva-me à sepultura.

Maurícia tinha-se esquecido quase inteiramente de Sinhazinha. Também esta não lhe aparecera, nem escrevera mais. Quando alguma vez aquele se lembrava da promessa que fizera, acudia como defesa de si própria.

— Fiz por ela o que me foi possível; mas ele não esteve pelas minhas súplicas.

Uma tarde, Virgínia subiu banhada em lágrimas ao aposento de Maurícia. Esta foi ao seu encontro sobressaltada e aflita. A menina trazia na mão um jornal, onde vinha publicado, entre as notícias no Norte, a de ter sido assassinado Bezerra na Paraíba, num ajuntamento de povo, por ocasião de uma festa de arraial. Dera lugar ao homicídio a represália de Bezerra a uma provocação de um valentão afamado que bulira com Janoca. Não era duvidosa a notícia. O fato estava narrado pelo miúdo, e os nomes não deixavam a menor incerteza. No fim de um mês, a dor de Virgínia estava curada e para Maurícia começaram a raiar os alegres dias. Quando pela primeira vez depois da lúgubre notícia, elas pôs as mãos ao piano para tocar, foi uma música de escolhidas harmonias, que rebentou em notas animadas, daquele gigante cofre de suas predileções.

Estava neste momento presente uma senhora de sua amizade que lhe pediu cantasse. Maurícia cantou um dos mais belos pedaços do seu repertório. A felicidade voltara ao seu espírito; astro risonho começara a surgir acima do horizonte de seu coração, onde tinha reinado até então merencórias sombras. "Eu vos agradeço, meu Deus, a misericórdia que tivestes para mim", dizia ela consigo nos longos solilóquios a que costumava entregar-se no aposento. Mas a felicidade não devera ficar somente na liberdade. Ela possuía certamente, o amor que lhe consagrava Ângelo. O pensamento de ser venturosa com ele rebentou pujante. Fora contrariado por suas declarações, que ele tomara a resolução de exilar-se para o centro da província. Tudo, pois, a levava a acreditar no sentimento do bacharel a seu respeito. Por isso, não podendo mais resistir ao mais natural desejo de ser feliz, assentou de escrever-lhe para que voltasse ao Recife, onde poderiam realizar o seu sonho de tantos meses.

Estava já com a pena na mão, quando vieram dizer-lhe que duas senhoras queriam falar-lhe. Maurícia desceu. e qual não foi a sua surpresa deparando-se Sinhazinha e D. Sofia, que vinham dar-lhe condolências pela morte de Bezerra.

Sinhazinha estava pálida, e quase disforme. A dor moral fizera da sua juventude uma ruína. Abraçando-se com Maurícia, a menina não pode suster as lágrimas.

— Oh! a amizade na terra é uma ilusão! Não há amizade verdadeira. O que se apresenta com este nome não passa de vã cortesia que praticam pessoas de educação.

— Não é tanto assim, Sinhazinha.

D. Sofia deu força ao pensamento da filha, acrescentando algumas palavras acerbas.

Foi curta a visita. Ao sair, Sinhazinha, por palavras impregnadas de ressentimento, deu a entender que suspeitava o amor de Maurícia, e que esse amor era o inimigo do seu. Maurícia, sem saber a princípio o que responder, pode, enfim, defender-se, dizendo que Sinhazinha estava enganada; que ela já não era para isso; que só na prosperidade de Virgínia fazia consistir a sua, nem queria outra ainda que lhe fosse fácil alcançá-la.

Maurícia subiu ao seu aposento, levando inesperadas amarguras na alma. Tinha passado alguns dias nos braços de uma ilusão inefável; algumas manhãs haviam surgido cheias de luzes e visões feiticeiras aos seus olhos; algumas noites tinha levado em claro, enamorada dos castelos, que a esperança lhe levantara na imaginação. Mas tudo caía por terra. A presença da filha de D. Sofia, seu emagrecimento, sua tristeza, seu desânimo, suas queixas, suas lágrimas, tinham destruído, como se fossem vendavais, as flores que estas manhãs se mostraram toucadas, como as jovens de Anacreonte. Por uma singular generosidade de sua alma, Sinhazinha se lhe afigurou uma segunda filha. O sentimento maternal que lograra alcançar a felicidade para Virgínia, ela o sentiu despertar no coração para favorecer aquela desconsolada menina, cujas qualidades morais tinha na melhor conta. Doeu-lhe que fosse ela que concorresse de qualquer modo para destruir o futuro da meiga criatura e aos seus próprios olhos envergonhou-se de pensar em ser feliz à custa do amor dessa mulher que no mais apertado transe procurara a sua proteção. Pareceu-lhe que, se levasse por diante a resolução, nenhuma senhora de sua amizade, ninguém que a conhecesse teria para ela outro epíteto que o de - pérfida! Esta ordem de idéias acovardou Maurícia. Há, ainda, posto que sejam raros, como era o dela, caracteres que rejeitam riqueza, brilho, prazeres da vida, se para a aquisição de tais bens se exigir que eles sujeitem a uma imputação menos digna, que seria o seu perpétuo tormento, a sua túnica de Nesso.

Quando as suas vistas caíram sobre o papel, que ainda estava aberto na mesa, ela sentiu que os olhos se lhe arrasavam de lágrimas. Se a visita de Sinhazinha se realizasse no dia seguinte, ou talvez algumas horas depois, a carta teria seguido já os eu destino, e ela lograria, talvez, o que sonhava; mas a fatalidade, que a perseguia de há muito nãos e esquecera dela ainda esta vez.

Maurícia sentou-se defronte do papel

— Que devo fazer? - perguntou a si mesma. Devo escrever, ou devo, ao contrário, renunciar para sempre a esperança de ter completa na terra a mais nobre ambição de minha alma?

Passou alguns momentos em aflitiva hesitações, muda, o olhar gelado sobre a página branca. Sinhazinha não lhe saía da pensamento.

Quando estava nesta perplexidade, Virgínia entrou e começou a falar-lhe sobre o depauperamento e a tristeza da amiga.

— Mamãe, sabe por que é que Sinhazinha está assim?

— Por que é? - interrogou Maurícia por demais.

— São saudades do Dr. Ângelo. Ela tem-lhe muito amor. Não se pode esquecer dele. Coitada de Sinhazinha!

— Tens pena de Sinhazinha, Virgínia?

— E por que não hei de ter? Mamãe bem sabe que eu gosto muito Sinhazinha; ela é uma das minhas melhores amigas. Se estivesse em minhas mãos dar-lhe o que mais deseja, eu não hesitaria um momento. Ela é tão boa, tão meiga, tão sincera.

— Acreditas na sua amizade?

— Acredito, sim. Quantas vezes ela me consolou nas minhas tristezas, antes do meu casamento, quando me parecia que ele não havia de realizar-se! Quantas vezes me disse, vendo-me chorar: "Não chore, Virgínia. Tenha confiança em Deus. O Sr. Paulo há de ser seu marido. Que tem que Iaiazinha tenha muitos contos de réis, seja prima do Sr. Paulo, e D. Carolina mostre desejo que eles se casem? Tudo isto não lhe há de fazer mal nenhum. Não desanime." Quem fazia isto comigo, quem me dava tanta coragem, quando eu sentia meu espírito abatido, quem queria do meu coração a minha felicidade não me deve merecer muito, muito?

Estas palavras foram agudos punhais desferidos contra o coração de Maurícia, que se sentiu depois disso ainda menos forte pata levar a efeito a sua resolução.

— Não escreverei - disse, levantando-se. Custar-me-á, talvez, a vida este passo, mas hei de ter forças para dá-lo.

Sem compreender o que dissera sua mãe, Virgínia olhou para ela atônita e confusa; e no seu rosto, por onde lhe corria em bagas o pranto, buscou em vão ler o natural sentido daquelas palavras.

— Meu Deus! - exclamou a menina ao cabo de um momento, em que lobrigava muito ao longe nuvem cheia de tempestades no horizonte, por ora sem fogos e sem vulcões destruidores, da vida de Maurícia. - A quem ia escrever, mamãe? Se minhas palavras concorreram para que a senhora mudasse de uma resolução que lhe era agradável, não se importe com elas. Faça o que for melhor.

Era tarde. Estava resolvido o sacrifício.