O Sacrifício/XIX

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Longe do Recife, numa vila de costumes primitivos, de vida quase rudimentar no alto sertão, o amor de Ângelo por Maurícia requintara. Dia e noite, o bacharel trazia na lembrança a bela imagem dessa mulher, umas vezes a modo assustada, outras mostrando rápidos ciúmes, outras indiferentes às suas exaltações. Maurícia de feito passara por todos estes estados espirituais, que se alternavam e sucediam ao sabor das circunstâncias ou dos acontecimentos de sua vida agitada por forças diferentes, contraditórias ou reciprocamente hostis. Qualquer que fosse, porém, a face dessa imagem que se reproduzisse no pensamento do jovem bacharel, tinha sempre ele para ela as mais distintas preferencias.

Nos primeiros tempos, Ângelo sentiu-se inteiramente arrependido do passo que dera; esteve ainda para pedir demissão, tamanho foi o seu descontentamento, e tão incompatíveis se lhe afiguraram com sua índole e educação costumes e sentimentos tão primários de mistura com sentimentos e costumes inocentes e singelos; mas, dominando os receios de desgostos e sobretudo, desanimado ante o pensamento de continuar a sofrer no Recife os tormentos silenciosos de sua paixão contrariada, logrou perder a idéia de voltar. Todo o seu espírito começou a revoar em torno dessa imagem imperecedoura, dessa ideal criação, que distante do original, se tornava cada vez mais espiritual, mais fantástica, mais poética, e por isso mais rica de atração pelos eu prestígio quase divino. Enfim, a idéia fixa de Ângelo era esta: que Bezerra havia de morrer primeiro que ele e Maurícia, e que, esta lhe pertenceria. Imagine-se, por isso, com que mostras de satisfação interior não leu ele no jornal a notícia da morte daquele infeliz homem. Quanto o amor é perverso!

Não leu uma vez só, releu muitas vezes a notícia de cuja veracidade ao princípio pareceu duvidar, mas em que acreditou, por último, visto que era irrecusável a evidência. Ocorreu-lhe, então, o pensamento de voltar ao Recife, procurar Maurícia e dizer-lhe: "Eis-me aqui, belo anjo. Cessaram todos os obstáculos que cavavam entre nós abismo intransponível." E a sua imaginação de poeta concluía este como cântico de ressurreição com um verso de Martins, que andava muito em voga e se repetia entre moças e rapazes no retiro literário da estrada:

"Sejamos, meu anjo, sejamos um só"

O primeiro correio que partira da vila, depois da chegada da notícia consoladora, trouxe a um amigo de Ângelo que o era também do presidente da província - o mesmo que obtivera a nomeação - um pedido de licença para vir tratar de sua saúde na capital. Por essa ocasião o bacharel escreveu também a D. Matilde e a Martins, mas nada lhe disse a respeito do passo que dera.

O seu empenho em fazer surpresa a Maurícia era tamanho que ele recomendou àquele amigo toda a reserva. A licença não foi publicada.

Ângelo pôs-se a caminho, logo depois que recebeu o despacho oficial, e depois de longa jornada a cavalo, alcançou uma das últimas estações da estrada de ferro Recife a São Francisco. Chegou àquela cidade na mesma tarde. Entre o pedido de licença e a chegada, haviam decorrido cerca e três meses.

Quanto lhe custou o trajeto da estação das Cinco Pontas à estrada João de Barros! Tinha o coração em aflitiva e doce ansiedade. A carruagem não rodava, voava por ordem sua, o plaustro das ninfas antigas não era mais veloz. E ele tinha razão de querer vencer a distância com a rapidez do pensamento; estava quase alucinado. Havia perto de seis meses que não sabia notícia de Maurícia, que durante esse tempo tivera quase exclusivo domínio em suas idéias. Enfim, ao escurecer, o carro parou à porta do sítio de D. Rosalina. Ângelo, tendo na mão a bolsa de viagem, saltou, quando o carro ainda não estava parado, e transpôs correndo a soleira do portão. Arbustos, que ele deixara pequenos, estavam grandes. Madressilvas novas, resedás, jasmins-laranjas, que haviam sido plantados em sua ausência, formavam latadas sombrias e muitas espessas nas proximidades da porta da entrada. Os cajueiros ostentando os primeiros frutos daquele ano, recendiam aromas agradáveis.

— Reconheço os aromas do cajueiro - disse ele - entrando. Como são gratos os perfumes da casa paterna!

Uma afilhada de D. Matilde, por nome Joana, que ao pé de uma das janelas, se aproveitava das últimas claridades do dia para concluir a sua tarefa em uma almofada de renda, correu como louca pelo corredor a dentro, gritando:

— Dindinha, Dindinha, aqui está seu Ângelo!

Foi um reboliço, uma revolução, um deus-nos-acuda na casa de D. Rosalina. Por alguns momentos, pareceu que o mundo vinha abaixo. mas não estava longe do prazer o desgosto, da esperança o desespero para o infeliz homem de letras.

— Dá-me notícias de D. Maurícia, minha mãe? - perguntou Ângelo.

D. Matilde hesitou. Seu rosto, por onde discorria a aurora boreal de uma satisfação inesperada e inefável, seu rosto, que, sem falar, parecia dizer mil prazeres interiores, vestiu repentinamente a sombra do luto íntimo. A boca, que estava dizendo miríada de emoções, emudeceu.

A mudança súbita, que Ângelo notou imediatamente, aguçou a sua curiosidade, redobrou a sua angústia.

— Por que se cala, minha mãe? - inquiriu ele, mal disfarçando a contrariedade. Não me oculte nada. Li no jornal que o marido tinha morrido. Antes de tudo, diga-me se o jornal falou a verdade ou mentiu.

— Falou a verdade, Ângelo - respondeu D. Matilde. Assim não tivesse D. Maurícia...

— Não tivesse o quê, minha mãe?

—... morrido também, Ângelo!

— O quê? O que, minha mãe? - exclamou o bacharel.

— Meu Deus, meu Deus! - acudiu D. Matilde. Não te impressiones com a vontade de Deus, meu filho, por mais dolorosa que te pareça.

Durante alguns momentos, Ângelo não pode dizer uma palavra sequer. Véu de profunda noite descera como mortalha negra sobre o seu espírito, onde alvejavam antes roupas de noivado querido. Pôs as mãos na cabeça e, cravados os cotovelos na mesa, que tinha diante de si, no quarto, entregou-se à acerba dor que o tomara no meio do mais intenso prazer que sonhara. Era a segunda vez que se lhe deparava na vida o espetáculo da morte de uma pessoa cara. As lágrimas em borbotões começaram a cair-lhe pelas faces e a formar uma poça cristalina, onde se refletia a luz já então acesa.

Vendo-o chorar, D. Matilde entrou a chorar, também. E por esta forma se trocaram sorrisos em lágrimas, doces comoções por aflições pungentes.

Horas depois, Ângelo deitado no sofazinho de vime do seu aposento, tendo a cabeça sobre as pernas de D. Matilde, ouviu desta a narração dos últimos dias de vida de Maurícia. O que a mãe contou ao filho pode resumir-se no seguinte:

Certa manhã, Maurícia sentira-se sem forças para levantar-se da cama. Passara a noite prostrada e febril. Nas faces, lívida cor substituíra as mimosas tintas esparzidas aí meses antes pelo pincel do artista insigne que se chama saúde , ou antes tranqüilidade espiritual . O vigor, e com ele a vida fugiam espavoridos.

A doença trouxe grandes sustos à família. Em conversação com a mulher, Albuquerque, que já tinha notado dias atrás os progressos da decadência física dessa criatura robusta, que os sofrimentos mais cruéis nunca tinham podido vencer, e que, ao contrário, de todos triunfara.

Virgínia muitas vezes surpreendera a mãe chorando em silêncio. Empregara todo o esforço para saber a origem dessas lágrimas, que levavam dor mortal diretamente ao seu coração; mas nem de longe Maurícia dera a entender a verdadeira causa delas. Uma vez disse à filha, depois de fugir por muitos modos às suas indagações.

— Não te assustes com o meu pranto, Virgínia. Não és tu feliz? A tua felicidade não vai aumentar com o nascimento do primeiro fruto do teu amor? Deixa-me chorar em silêncio; choro sem causa; as minhas lágrimas provêm de uma melancolia que eu não compreendo e não posso explicar.

Naquele dia, Maurícia pedira Albuquerque que mandasse por os cavalos na carruagem; queria ir à estrada de João de Barros; tinha muitas saudades de Eugênia; queria vê-la. À noitinha a mãe e a filha entraram em casa de Martins.

— Venho vê-los - disse aquela, entrando; e creio que daqui não sairei mais, senão para o cemitério. Procuro uma região aprazível para exalar o meu último suspiro.

Martins e Eugênia, que não sabiam da doença da parenta, sentiram uma impressão dolorosa, vendo-a naquela abatimento geral, que indicava próximo acabamento, e ouvindo palavras que pareciam anunciá-lo já.

Nessa mesma noite, Maurícia mandou dizer a Sinhazinha que a viesse ver, e ela não se fez esperar. Aquelas duas mulheres, que estavam padecendo do mesmo mal, abraçaram-se com ternura.

— Ainda está muito descrente, Sinhazinha? - perguntou-lhe Maurícia.

— Cada vez estou mais. A sinceridade fugiu do mundo.

— Você não tem razão para dizer isso. Deixe-se de descrença. Seu futuro está clareando. A tempestade cessará brevemente, e surgirá depois um dia risonho e esplêndido, que há de acompanhá-la por toda a vida sem nuvens e sem ventanias.

— Qual, D. Maurícia! A senhora diz-me estas coisas tão bonitas para consolar-me. Ninguém melhor do que a senhora sabe que as minhas ilusões murcharam e secaram.

— Para que metes pontas de remoques nas tuas palavras? Não me queira mal, Sinhazinha. Faço votos sinceros para que você logre o que mais deseja.

Aparecendo Eugênia e Virgínia, as duas senhoras mudaram de assunto.

Eugênia disse que o mal de Maurícia desapareceria com o leite tomado todas as manhãs ao pé da vaca, banhos frios, e passeios pela estrada. Virgínia aprovou este tratamento, e Sinhazinha prometeu fazer companhia a Maurícia. Esta, porém, mostrava-se no todo desanimada. Tinha por certo o seu aniquilamento. Estava resignada, e dizia que não havia de chegar ao fim do ano.

Uma tarde, Maurícia foi atacada de febre tão forte que dela não se levantou mais. Os médicos deram à moléstia fatal um nome acabado em ite : mas o que a levou à sepultura não foi senão o sacrifício que se impusera.

Três dias depois do ataque, a casa de Martins que durante tantos anos servira de estância de prazeres puros e alegres, oferecia um espetáculo altamente contristador. Ia emudecer a voz que fizera vibrar as harpas mais harmoniosas que ainda ressoavam na pitoresca estrada; iam tolher-se finos e gelados os dedos torneados e coloridos, que arrancaram das teclas mudas e frias as mais ardentes e apaixonadas inspirações dos grandes mestres da arte dos sons e das melodias; ia, enfim, morrer aquela beleza ainda fresca, ainda admirável, dando o grande exemplo de uma rara abnegação, depois dos maiores e mais eloqüentes testemunhos de respeito ao dever conjugal. Mulheres, mirai-vos nesse espelho de aço puro! Maurícia existiu. Foi, como aqui se pinta, uma mulher que honrou seu sexo e a família brasileira.

Albuquerque e Paulo, que tinham vindo do engenho na véspera, ora se sentavam, ora passeavam pela sala comovidos mas silenciosos. Na alcova, D. Eugênia, Sinhazinha, D. Carolina e D. Teodora, em pranto, rodeavam o leito da agonizante. D. Matilde, mais perto dela do que nenhuma outra, tinha quase sobre os joelhos a sua cabeça e pegava-lhe de uma das mãos. Virgínia, que não tivera coragem de arrostar a transição daquela que ia levar consigo parte de sua alma, soluçava inconsolável em um aposento vizinho.

— O Dr. Ângelo está tão distante daqui! - disse Maurícia. Mandem chamá-lo. Quero vê-lo antes de morrer.

— Ele vem aí - respondeu-lhe D. Matilde.

— Levo algumas saudades da vida - tornou a agonizante.

E depois disse:

— O meu sacrifício matou-me...

Foram estas as suas últimas palavras.

Depois da morte de Nunes Machado, não houve naquela estrada outro caso de morte que produzisse nos habitantes tão profunda impressão. Nem podia acontecer o contrário. Por vários anos, especialmente por ocasião das festas de São João, do Natal e da Conceição eles tinham visto passar de braço dado com alguma jovem das mais estimadas, ou algum cavalheiro de maior distinção, em grupos de famílias por baixo das árvores, colhendo flores, sorrindo feliz, gracejando e brincando, aquela senhora respeitável sem entono, esbelta sem afetação, formosa sem os esplendores da primeira juventude, sempre desejada, sempre querida e sempre digna do apreço e respeito dos que a conheciam.

No outro dia, a capelinha, onde fora depositado o cadáver parecia horto. Não houve rosas, perpétuas, saudades, murtas e alecrins em todos os sítios dos arredores, que não tivessem vindo adornar o penúltimo paço de tão preciosos restos mortais. Não houve matrona, ou moça, ainda que não pertencesse ao círculo de onde havia emigrado para nunca mais voltar aquela musa canora, apaixonada e honesta, que não mandasse levar à capelinha o seu ramalhete ou o seu açafate com flores - delicado tributo de estima, espontaneamente rendido em honra de quem deixava tão gentil memória na face da terra.