O Segredo de Augusta/II
Pela uma hora da tarde do mesmo dia levantou-se Vasconcellos da cama.
Vasconcellos era um homem de quarenta annos, bem apessoado, dotado de um maravilhoso par de suiças grisalhas, que lhe davão um ar de diplomata, cousa de que estava afastado umas boas cem leguas. Tinha a cara risonha e expansiva; todo elle respirava uma robusta saude.
Possuia uma boa fortuna e não trabalhava, isto é, trabalhava muito na destruição da referida fortuna, obra em que sua mulher collaborava conscienciosamente.
A observação de Adelaide era veridica; Vasconcellos recolhia-se tarde; acordava sempre depois do meio-dia; e sahia ás ave-marias para voltar na madrugada seguinte. Quer dizer que fazia com regularidade algumas pequenas excursões á casa da familia.
Só uma pessoa tinha o direito de exigir de Vasconcellos mais alguma assiduidade em casa: era Augusta; mas ella nada lhe dizia. Nem por isso se davão mal, porque o marido em compensação da tolerancia de sua esposa não lhe negava nada, e todos os caprichos d’ella erão de prompto satisfeitos.
Se acontecia que Vasconcellos não pudesse acompanhal-a a todos os passeios e bailes, incumbia-se d’isso um irmão d’elle, commendador de duas ordens, politico de opposição, excellente jogador de voltarete, e homem amavel nas horas vagas, que erão bem poucas. O irmão Lourenço era o que se póde chamar um irmão terrivel. Obedecia a todos os desejos da cunhada, mas não poupava de quando em quando um sermão ao irmão. Boa semente que não pegava.
Acordou, pois, Vasconcellos, e acordou de bom humor. A filha alegrou-se muito ao vêl-o, e elle mostrou-se de uma grande affabilidade com a mulher, que lhe retribuio do mesmo modo.
— Porque acorda tão tarde? perguntou Adelaide acariciando as suiças de Vasconcellos.
— Porque me deito tarde.
— Mas porque se deita tarde?
— Isso agora é muito perguntar! disse Vasconcellos sorrindo.
E continuou:
— Deito-me tarde porque assim o pedem as necessidades politicas. Tu não sabes o que é politica; é uma cousa muito feia, mas muito necessaria.
— Sei o que é politica, sim! disse Adelaide.
— Ah! explica-me lá então o que é.
— Lá na roça, quando quebrárão a cabeça ao juiz de paz, disserão que era por politica; o que eu achei exquisito, porque a politica seria não quebrar a cabeça...
Vasconcellos rio muito com a observação da filha, e foi almoçar, exactamente quando entrava o irmão, que não pôde deixar de exclamar:
— A boa hora almoças tu!
— Ahi vens tu com as tuas reprimendas. Eu almoço quando tenho fome... Vê se me queres agora escravisar ás horas e ás denominações. Chama-lhe almoço ou lunch, a verdade é que estou comendo.
Lourenço respondeu com uma careta.
Terminado o almoço, annunciou-se a chegada do Sr. Baptista. Vasconcellos foi recebêl-o no gabinete particular.
Baptista era um rapaz de vinte e cinco annos; era o typo acabado do pandego; excellente companheiro n’uma ceia de sociedade equivoca, nullo conviva n’uma sociedade honesta. Tinha chiste e certa intelligencia, mas era preciso que estivesse em clima proprio para que se lhe desenvolvessem essas qualidades. No mais era bonito; tinha um lindo bigode; calçava botins do Campas, e vestia no mais apurado gosto; fumava tanto como um soldado e tão bem como um lord.
— Aposto que acordaste agora? disse Baptista entrando no gabinete de Vasconcellos.
— Ha tres quartos de hora; almocei n’este instante. Toma um charuto.
Baptista aceitou o charuto, e estirou-se n’uma cadeira americana, emquanto Vasconcellos acendia um phosphoro.
— Viste o Gomes? perguntou Vasconcellos.
— Vi-o hontem. Grande noticia: rompeu com a sociedade.
— Devéras?
— Quando lhe perguntei por que motivo ninguem o via ha um mez, respondeu- me que estava passando por uma transformação, e que do Gomes que foi só ficará lembrança. Parece incrivel; mas o rapaz falla com convicção.
— Não creio; aquillo é alguma caçoada que nos quer fazer. Que novidades ha?
— Nada; isto é, tu é que deves saber algum cousa.
— Eu, nada...
— Ora essa! não foste hontem ao Jardim?
— Fui, sim; houve uma ceia...
— De familia, sim. Eu fui ao Alcazar. A que horas acabou a reunião?
— Ás quatro da manhã.
Vasconcellos estendeu-se n’uma rede, e a conversa continuou por esse tom, até que um moleque veio dizer a Vasconcellos que estava na sala o Sr. Gomes.
— Eis o homem ! disse Baptista.
— Manda subir, ordenou Vasconcellos.
O moleque desceu para dar o recado; mas só um quarto de hora depois é que Gomes appareceu, por demorar-se algum tempo em baixo conversando com Augusta e Adelaide.
— Quem é vivo sempre apparece, disse Vasconcellos ao avistar o rapaz.
— Não me procurão... disse elle.
— Perdão; eu já lá fui duas vezes, e disserão-me que havias sahido.
— Só por grande fatalidade, porque eu quasi punca saio.
— Mas então estás completamente ermitão?
— Estou chrysalida; vou reapparecer borboleta, disse Gomes sentando-se.
— Temos poesia... Guarda debaixo, Vasconcellos...
O novo personagem, o Gomes tão desejado e tão escondido, representava ter cerca de trinta annos. Elle, Vasconcellos e Baptista erão a trindade do prazer e da dissipação, ligada por uma indissoluvel amizade. Quando Gomes, cerca de um mez antes, deixou de apparecer nos circulos do costume, todos reparárão n’isso, mas só Vasconcellos e Baptista sentírão devéras. Todavia, não insistírão muito em arrancal-o á solidão, sómente pela consideração de que talvez houvesse n’isso algum interesse do rapaz.
Gomes foi portanto recebido como um filho prodigo.
— Mas onde te metteste? que é isso de chrysalida e de borboleta? Cuidas que eu sou do mangue?
— É o que lhes digo, meus amigos. Estou creando azas.
— Azas! disse Baptista suffocando uma risada.
— Só se são azas de gavião para cahir...
— Não, estou fallando serio.
E com effeito Gomes apresentava um ar serio e convencido.
Vasconcellos e Baptista olhárão um para o outro.
— Pois se é verdade isso que dizes, explica-nos lá que azas são essas, e sobretudo para onde é que queres voar.
A estas palavras de Vasconcellos, accrescentou Baptista:
— Sim, deves dar-nos uma explicação, e se nós que somos o teu conselho de familia, acharmos que a explicação é boa, approvamol-a; senão, ficas sem azas, e ficas sendo o que sempre foste...
— Apoiado, disse Vasconcellos.
— Pois é simples; estou creando azas de anjo, e quero voar para o céo do amor.
— Do amor! disserão os dous amigos de Gomes.
— É verdade, continuou Gomes. Que fui eu até hoje? Um verdadeiro estroina, um perfeito pandego, gastando ás mãos largas a minha fortuna e o meu coração. Mas isto é bastante para encher a vida? Parece que não...
— Até ahi concordo... isso não basta; é preciso que haja outra cousa; a diferença está na maneira de...
— É exacto, disse Vasconcellos; é exacto; é natural que vocês pensem de modo diverso, mas eu acho que tenho razão em dizer que sem o amor casto e puro a vida é um puro deserto.
Baptista deu um pulo...
Vasconcellos fitou os olhos em Gomes:
— Aposto que vais casar? disse-lhe.
— Não sei se vou casar; sei que amo, e espero acabar por casar-me com a mulher a quem amo.
— Casar! exclamou Baptista.
E soltou uma estridente gargalhada.
Mas Gomes fallava tão seriamente, insistia com tanta gravidade n’aquelles projectos de regeneração, que os dous amigos acabárão por ouvil-o com igual seriedade.
Gomes fallava uma linguagem estranha, e inteiramente nova na boca de um rapaz que era o mais doudo e ruidoso nos festins de Baccho e de Cythera.
— Assim, pois, deixas-nos? perguntou Vasconcellos.
— Eu? Sim e não; encontrar-me-hão nas salas; nos hoteis e nas casas equivocas, nunca mais.
— De profundis... cantarolou Baptista.
— Mas a final de contas, disse Vasconcellos, onde está a tua Marion? Póde-se saber quem ella é?
— Não é Marion, é Virginia... Pura sympathia ao principio, depois affeição pronunciada, hoje paixão verdadeira. Lutei emquanto pude; mas abati as armas diante de uma força maior. O meu grande medo era não ter uma alma capaz de offerecer a essa gentil creatura. Pois tenho-a, e tão fogosa, e tão virgem como no tempo dos meus dezoito annos. Só o casto olhar de uma virgem poderia descobrir no meu lodo essa perola divina. Renasço melhor do que era...
— Está claro, Vasconcellos, o rapaz está doudo; mandemol-o para a Praia Vermelha; e como póde ter algum accesso, eu vou-me embora...
Baptista pegou no chapéo.
— Onde vais? disse-lhe Gomes.
— Tenho que fazer; mas logo apparecerei em tua casa; quero ver se ainda é tempo de arrancar-te a esse abysmo.
E sahio.