O Segredo de Augusta/III
Os dous ficárão sós.
— Então é certo que estás apaixonado ?
— Estou. Eu bem sabia que vocês difficilmente acreditarião n’isto; eu proprio não creio ainda, e comtudo é verdade. Acabo por onde tu começaste. Será melhor ou peior? Eu creio que é melhor.
— Tens interesse em occultar o nome da pessoa ?
— Occulto-o por ora a todos, menos a ti.
— É uma prova de confiança...
Gomes sorrio.
— Não, disse elle, é uma condição sine qua non; antes de todos tu deves saber quem é a escolhida do meu coração; trata-se de tua filha.
— Adelaide? perguntou Vasconcellos espantado.
— Sim, tua filha.
A revelação de Gomes cahio como uma bomba. Vasconcellos nem por sombras suspeitava semelhante cousa.
— Este amor é da tua approvação? perguntou-lhe Gomes.
Vasconcellos reflectia, e depois de alguns minutos de silencio, disse:
-— O meu coração approva a tua escolha; és meu amigo, estás apaixonado, e uma vez que ella te ame...
Gomes ia fallar, mas Vasconcellos continuou sorrindo:
— Mas a sociedade?
— Que sociedade?
— A sociedade que nos tem em conta de libertinos, a ti e a mim, é natural que não approve o meu acto.
— Já vejo que é uma recusa, disse Gomes entristecendo.
— Qual recusa, pateta! É uma objecção, que tu poderás destruir dizendo: a sociedade é uma grande calumniadora e uma famosa indiscreta. Minha filha é tua, com uma condição.
— Qual?
— A condição da reciprocidade. Ama-te ella ?
— Não sei, respondeu Gomes.
— Mas desconfias...
— Não sei; sei que a amo e que daria a minha vida por ella, mas ignoro se sou correspondido.
— Has de ser... Eu me incumbirei de apalpar o terreno. D’aqui a dous dias dou-te a minha resposta. Ah! se ainda tenho de ver-te meu genro!
A resposta de Gomes foi cahir-lhe nos braços. A scena já roçava pela comedia quando derão tres horas. Gomes lembrou-se que tinha rendez-vous com um amigo; Vasconcellos lembrou-se que tinha de escrever algumas cartas.
Gomes sahio sem fallar ás senhoras.
Pelas quatro horas Vasconcellos dispunha-se a sahir, quando vierão annunciar-lhe a visita do Sr. José Brito. '
Ao ouvir este nome o alegre Vasconcellos franzio o sobr’olho.
Pouco depois entrava no gabinete o Sr. José Brito.
O Sr. José Brito era para Vasconcellos um verdadeiro phantasma, um écho do abysmo, uma voz da realidade : era um credor.
— Não contava hoje com a sua visita, disse Vasconcellos.
— Admira, respondeu o Sr. José Brito com uma placidez de apunhalar, porque hoje são 21.
— Cuidei que erão 19, balbuciou Vasconcellos.
— Ante-hontem, sim; mas hoje são 24. Olhe, continuou o credor pegando no Jornal do Commercio que se achava n’uma cadeira: quinta-feira 21.
— Vem buscar o dinheiro?
— Aqui está a lettra, disse o Sr. José Brito tirando a carteira do bolso e um papel da carteira.
— Porque não veio mais cedo? perguntou Vasconcellos, procurando assim espaçar a questão principal.
— Vim ás oito horas da manhã, respondeu o credor, estava dormindo; vim ás nove, idem; vim ás dez, idem; vim ás onze, idem; vim ao meio-dia, idem. Quiz via á uma hora, mas tinha de mandar um homem pata a cadêa, e não me foi possivel acabar cedo. Ás tres jantei, e ás quatro aqui estou.
Vasconcellos puxava o charuto a ver se lhe occorria alguma idéa boa de escapar ao pagamento com que elle não contava.
Não achava nada; mas o proprio credor forneceu-lhe ensejo.
— Além de que, disse elle, a hora não importa nada, porque eu estava certo de que o senhor me vai pagar:
— Ah! disse Vasconcellos, é talvez um engano; eu não contava com o senhor hoje, e não arranjei o dinheiro...
— Então; como ha de ser? perguntou o credor com ingenuidade.
Vasconcellos sentio entrar-lhe n’alma a esperança.
— Nada mais simples, disse; o senhor espera até amanhã...
— Amanhã, quero assistir á penhora de um individuo que mandei processar por uma larga divida; não posso...
— Perdão, eu levo-lhe o dinheiro á sua casa...
— Isso seria bom se os negocios commerciaes se arranjassem assim. Se fossemos dous amigos é natural que eu me contentasse com a sua promessa, e tudo acabaria amanhã; mas eu sou seu credor, e só tenho em vista salvar o meu interesse... Portanto, acho melhor pagar hoje...
Vasconcellos passou a mão pelos cabellos.
— Mas se eu não tenho! disse elle.
— É uma cousa que o deve incommodar muito, mas que a mim não me causa a menor impressão... isto é, deve causar-me alguma, porque o senhor está hoje em situação precaria.
— Eu?
— É verdade; as suas casas da rua da Imperatriz estão hypothecadas; a da rua de S. Pedro foi vendida, e a importancia já vai longe; os seus escravos têm ido a um e um, sem que o senhor o perceba, e as despezas que o senhor ha pouco fez para montar uma casa a certa dama da sociedade equivoca são immensas. Eu sei tudo; sei mais do que o senhor...
Vasconcellos estava visivelmente aterrado.
O credor dizia a verdade.
— Mas emfim, disse Vasconcellos, o que havemos de fazer?
— Uma cousa simples; duplicamos a divida, e o senhor passa-me agora mesmo um deposito.
— Duplicar a divida! mas isto é um...
— Isto é uma taboa de salvação; sou moderado. Vamos lá, aceite. Escreva-me ahi o deposito, e rasga-se a lettra.
Vasconcellos ainda quiz fazer objecção; mas era impossivel convencer o S. José Brito.
Assignou o deposito de dezoito contos.
Quando o credor sahio, Vasconcellos entrou a meditar seriamente na sua vida.
Até então gastára tanto e tão cegamente que não reparára no abysmo que elle proprio cavára a seus pés.
Veio porém advertil-o a voz de um dos seus algozes.
Vasconcellos reflectio, calculou, recapitulou as suas despezas e as suas obrigações, e vio que da fortuna que possuia tinha na realidade menos da quarta parte.
Para viver como até alli vivêra, aquillo era nada menos que a miseria.
Que fazer em tal situação?
Vasconcellos pegou no chapéo e sahio.
Vinha cahindo a noite.
Depois de andar algum tempo pelas ruas entregue ás suas meditações, Vasconcellos entrou no Alcazar.
Era um meio de distrahir-se.
Alli encontraria a sociedade do costume.
Baptista veio ao encontro do amigo.
— Que cara é essa? disse-lhe.
— Não é nada, pisárão-me um callo, respondeu Vasconcellos, que não encontrava melhor resposta.
Mas um pedicura que se achava perto de ambos ouvio o dito, e nunca mais perdeu de vista o infeliz Vasconcellos, a quem a cousa mais indifferente incommodava. O olhar persistente do pedicura aborreceu-o tanto, que Vasconcellos sahio.
Entrou no hotel de Milão, para jantar. Por mais preoccupado que elle estivesse, a exigencia do estomago não se domorou.
Ora, no meio do jantar lembrou-lhe aquillo que não devia ter-lhe sahido da cabeça: o pedido de casamento feito n’essa tarde por Gomes.
Foi um raio de luz.
— Gomes é rico, pensou Vasconcellos ; o meio de escapar a maiores desgostos é este ; Gomes casa-se com Adelaide, e como é meu amigo não me negará o que eu precisar. Pela minha parte procurarei ganhar o perdido... Que boa fortuna foi aquella lembrança do casamento!
Vasconcellos comeu alegremente; voltou depois ao Alcazar, onde alguns rapazes e outras pessoas fizerão esquecer completamente os seus infortunios.
Ás tres horas da noite Vasconcellos entrava para casa com a tranquillidade e regularidade do costume.