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O Seminarista/XI

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Alguns dias depois da proibição imposta a Eugênio, a casa de Umbelina amanhecia em grande animação e alvoroço. Via-se lá entrando e saindo mais gente do que de ordinário; matavam-se frangos, o forno trabalhava, o fogão deitava fumaça mais do que de costume, e reinava atividade e movimento que faria crer que naquele dia ali se festejava algum batizado ou casamento.

Não havia porém nada disso. O que havia em casa de Umbelina era apenas um mutirão.

Mutirão! só esta palavra nos faz ressoar aos ouvidos os alegres rumores dos descantos e folguedos da roça, o estrépito dos sapateados da dança camponesa por entre a zoada dos adufes e violas, e nos transporta ao meio das rústicas e singelas cenas de prazer da vida do sertanejo.

Mutirão! mas eu não sei se todos os meus leitores saberão a significação desta palavra, que talvez não poderão encontrar em dicionário algum. Portanto é necessário defini-la.

É o mutirão um costume dos pequenos lavradores, ou da gente pobre dos campos, que vivem como agregados dos grandes fazendeiros e que não possuindo terra, e menos ainda braços para cultivá-la, nem por isso deixam de plantar boas roças, ou de exercer sua pequena indústria, de que tiram a subsistência. Quando chega o tempo de qualquer dos serviços de roça, que consistem nestas quatro operações principais - roçar, plantar, capinar e colher - o pequeno roceiro convida seus parentes, amigos e conhecidos da vizinhança para vir ajudá-lo, e todos pelo direito costumeiro são obrigados a vir dar-lhe uma mão - é a frase usada -, ficando o que assim se aproveita dos serviços dos vizinhos na obrigação de acudir também ao chamado destes para o mesmo fim.

Já se vê que a calhandra de La Fontaine erraria seus cálculos, e perderia inevitavelmente os seus filhotes, se tivesse de haver-se com os bons lavradores desta nossa abençoada terra.

O mutirão constitui pois como uma espécie de sociedade de auxílios mútuos, baseada unicamente nos costumes e usanças dessa boa gente, que não dispondo muitas vezes senão do seu único braço para o serviço, planta todavia roças consideráveis, e obtém a colheita necessária para a sua subsistência.

Este uso não é somente dos roceiros, e é também posto em prática pelas mulheres que vivem de fiar e tecer, das quais antigamente havia grande número na província de Minas, alimentando com o seu trabalho esse ramo de indústria outrora mui importante e florescente.

Mas o mutirão não consiste simplesmente no desempenho de uma tarefa de trabalho. O dono ou a dona da casa tem por obrigação regalar os seus trabalhadores do melhor modo possível, e a reunião e a boa mesa trazem sempre como conseqüência natural os divertimentos e folguedos. Assim trabalha-se de dia, e à noite toca a comer e beber, a dançar, cantar e folgar.

Umbelina convidou para a festa as comadres e amigas mais chegadas da vila e das vizinhanças a virem passar alguns dias em sua casa, a fim de ajudarem-na a desmanchar algumas arrobas de lã e algodão, que queria pôr no tear, e para as regalar punha em atividade toda a sua perícia de quitandeira.

À noite, como de costume, havia toques, cantigas e folguedos, e então apareciam também lá alguns rapazes da vila e dos arredores.

Enquanto o prazer e a festança reinavam ruidosos em casa das vizinhas, o pobre Eugênio, aferrolhado na casa paterna, mordia-se de impaciência, e devorava lágrimas de despeito e desesperação. Triste dele!... naqueles dias nem lhe era permitido ir à costumada entrevista noturna; a casa estava abarrotada de gente, por todos os cantos dela havia ouvidos afiados e olhos vigilantes, e para cúmulo de males, como a casa de Umbelina era extremamente acanhada e fazia então excessivo calor, os serões do folguedo, que duravam até alta noite, se faziam no terreiro, embaixo da grande figueira. Pobre Eugênio, até essas horas caladas da noite e esse solitário e propício abrigo, que lhe proporcionavam os únicos momentos de prazer e ventura que lhe era dado gozar, lhe eram disputados pelo destino!

De noite pregado na cama, onde se revolvia inquieto como se estivesse em um leito de brasas, ouvia os ecos das tocatas e descantos ressoando ao longe pelos vales silenciosos, e quase rebentava de frenesi, de mágoa e de despeito por não poder lá se achar também. Em vão dava tratos à imaginação para descobrir algum jeito de ir tomar parte no folguedo, porém nenhum meio natural confessável se lhe oferecia ao espírito. Tinha cabal certeza de que por modo algum conseguiria licença de seus pais para lá ir.

Pungido por tantas contrariedades cada vez se irritava mais a impaciência, e mais se assanhava o desejo de se achar no mutirão, ainda que fosse um só momento.

Por certo algum vislumbre de zelos também se mesclava a essa impaciência; o moço sentia infinito desejo e curiosidade de ver como Margarida se comportaria em uma reunião.

Certo de não poder obter o consentimento de seus pais, Eugênio tomou o partido de enganá-los. Como estava em vésperas de partir para o seminário, mostrou-se com grande desejo de ir passar um dia e uma noite com um primo seu, que morava na vila e a que de fato era sumamente afeiçoado, e para esse fim pediu permissão a seus pais. Estes, vendo o estado de tristeza e abatimento em que ia caindo seu filho, e considerando que aquele passeio poderia ser uma salutar distração para fazê-lo esquecer-se de Margarida, não ousaram negar a permissão pedida; antes a concederam com sumo gosto, e até o autorizaram a ficar na vila os dias que quisesse.

À tardinha desse mesmo dia, o rapaz montou a cavalo, e tomou o caminho da vila, mas lá não chegou. O caminho, que se dirigia da fazenda de Antunes para a vila Tamanduá, ia ganhar a estrada real meia légua além da casa de Umbelina, pela frente da qual, como já sabemos, passava essa mesma estrada. Apenas Eugênio nela entrou, colheu as rédeas ao animal, retardando-lhe o passo o mais que podia. Quando porém a noite de todo se fechou, voltou de súbito as rédeas, e voltando a galope pela estrada real voou direito à casa de Umbelina.

Pretendia ali passar a noite, enquanto durassem os divertimentos, findos os quais montaria de novo a cavalo e viria amanhecer na vila.

Ressoavam as violas e adufes; o folguedo já tinha começado à sombra da figueira do terreiro.

Além do luar, que estava soberbo, duas grandes fogueiras acesas no terreiro a alguma distância, iluminavam de modo original e pitoresco o âmbito, dentro do qual se desenhavam destacando-se vivamente as figuras daquela curiosa e interessante reunião, uns no centro, dançando, outros em derredor, sentados pelo chão ou em tamboretes e cepos de pau. O clarão das fogueiras avermelhava a cúpula gigantesca da figueira, que com sua espessa folhagem abrigava os convivas do orvalho frio da noite.

Eugênio chegou-se à roda tolhido e ressabiado. Porém Margarida, que apenas o avistou, soltou um grito de alegre surpresa, e veio imediatamente colocar-se ao pé dele, fez com que logo cobrasse ânimo e presença de espírito, e tomasse assento na roda com todo o desembaraço.

Atraídos pela beleza de Margarida, como dissemos, alguns rapazes freqüentavam a casa de Umbelina, e lhe requestavam a filha. Esta, porém, não lhes dava a mínima atenção, e em sua cândida inocência nem mesmo suspeitava o verdadeiro motivo, por que tanto a festejavam.

Entre esses aspirantes ao amor da rapariga, o que mais padecia era um certo rapaz por nome Luciano. Era um moço que teria a rigor os seus vinte e cinco anos, de bonita e agradável presença, tropeiro bem principiado, que já tinha alguns lotes de burros no caminho do Rio, e que além de tudo se tinha em grande conta de bonito, de rico e de bem nascido, pelo que não deixava de ser sumamente ridículo, quando não era insolente e malcriado.

Cheio de si olhava os demais pretendentes por cima dos ombros, e sorria-se deles no íntimo da alma com desdém e compaixão, porque estava profundamente convencido que ninguém mais do que ele estava no caso de merecer a preferência da encantadora menina e as boas graças da senhora Umbelina. No meio de todos aqueles pés-rapados que ali andavam, quase todos gente de cor e sem eira nem beira, ele, o único que possuía alguma coisa, e que se trajava com decência, ele, o único branco legítimo que ali pisava, não tinha o menor receio de ser preterido por quem quer que fosse; pelo menos esta era a sua firme convicção.

Luciano não conhecia a Eugênio, a quem nunca em sua vida tinha visto, e estava muito longe de suspeitar que Margarida tivesse um amante, cujo amor correspondesse. Quando viu pois a não disfarçada e especial predileção de que Margarida o rodeava, o tom de íntima familiaridade com que conversavam, e mais certos sinais inequívocos de uma mútua e ardente afeição entre os dois, Luciano foi aos ares; sentiu ferver-lhe no coração o veneno do ciúme, e a muito custo pôde abafar no peito um bramido de cólera e despeito.