O Seminarista/XII

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A quatragem é a dança pitoresca dos nossos camponeses, dança favorita do roceiro em seus dias de festa, e que faz as delicias do tropeiro nos serões do rancho após as fadigas da jornada.

Dança vistosa e variegada, entremeada de cantares e tangeres, cantiga maviosa, já freneticamente sapateada ao ruído de palmas, adufes e tambores.

Sem ter o desgarre e desenvoltura do batuque brutal, não é também arrastada e enfadonha como a quadrilha de salão; ora salta e brinca estrepitosa e alegre, ora se requebra em mórbidas e compassadas evoluções.

Como o próprio nome indica, forma-se de um grupo de quatro pessoas. A música é desempenhada pelos dançantes que além de uma garganta bem limpa e afinada, devem ter nas mãos ao menos uma viola e um adufe. Há uma quantidade incalculável de coplas para acompanhar esta dança, e a musa popular cada dia engendra novas. São pela maior parte toscas e mesmo burlescas e extravagantes; todavia algumas há impregnadas dessa maviosa e singela poesia, que só a natureza sabe inspirar.

Dançava-se a quatragem no mutirão da tia Umbelina.

Margarida estava sentada junto de Eugênio, de cujo lado não se arredara, desde que este havia chegado.

Ia-se formar nova roda de dançadores; Luciano, que tinha a viola em punho, dirigiu-se a Margarida, e convidou-a para a dança. Ela recusou-se protestando já ter dançado muito e achar-se fatigada.

— Então venha esse mocinho, que aí está com a senhora - disse Luciano.

Com este convite o rapaz procurava mesmo ocasião de travar-se de razões com o estudante, a fim de desabafar o ciúme e o despeito que por dentro o corroíam.

— Eu não sei dançar - respondeu Eugênio com timidez.

— Deveras!... não me diga isso, moço; isso é desculpa; falta-nos uma pessoa; venha... não se faça de rogado.

— É deveras; não sei dançar, nunca dancei em dias de minha vida.

— Então para que vem a estas funções?...

— Ora essa é boa!... para ver...

— Como quem vem aqui ver... mas ah! já o estou conhecendo; o senhor não é aquele coroinha, que ultimamente tem ajudado à missa ao vigário lá na vila?

— É ele mesmo - acudiu Margarida, que já se impacientava com as grosserias, - é o filho do sr. capitão Antunes.

— Do capitão Antunes?... ah!... e o que vem ele aqui fazer?... decerto aqui veio fugido de casa, e há de ser bem feito que o pai lhe passe uma dúzia de bolos, quando souber que já anda metido em súcias...

Eugênio, por efeito da sua índole e mais ainda de sua educação de seminário, era uma tímida criança para responder às insolências de seu interlocutor. Margarida, porém, que com ser mulher e mais moça tinha o sangue mais quente, e mais altivez e resolução, tomou as dores por ele, e não pôde deixar de repelir tão grosseira chocarrice.

— Súcias não senhor!... veja como fala... bradou ela pondo-se em pé e alçando-se crespa e altaneira como siriema enraivecida. - Este moço foi criado junto comigo, e sempre vem à nossa casa. O pai dele não se importa com isso, e o senhor quem é para lhe vir tomar contas?...

— Bravo, minha rica!... não pensei que o maganão era tanto do seu peito!... por isso!... por isso é que a senhora anda tão soberba com os outros!...

— Senhor Luciano!... gritou a moça indignada, e ia responder; o moço, porém, satisfeito com o remoque que acabava de atirar, voltou-lhe rapidamente as costas, e foi para o meio do terreiro acender o cigarro na fogueira.

Luciano estava cruelmente ferido em sua fatuidade e amor-próprio, mordia-se de raiva e de ciúme, e só procurava uma ocasião de vingar-se do desdém de Margarida sobre o pobre e inofensivo estudante.

Eugênio por sua parte achava-se muito mal satisfeito de si mesmo e envergonhado do papel covarde que fizera perante sua amada, tornando necessário que esta acudisse em sua defesa. Estava agora resolvido a responder com quatro pedras na mão, se Luciano outra vez tivesse a audácia de o provocar.

Ia-se organizar nova quatragem, e de novo o terrível competidor de Eugênio dirigiu-se a Margarida. Esta, já sumamente agastada com ele, desta vez sem desculpas nem satisfações respondeu-lhe secamente:

— Não quero!

— Não quero?... retorquiu o rapaz com um sorriso forçado e gutural; - em má hora entrou aqui este fedelho, esse chupa-galhetas, que veio pôr a senhora assim tão altanada e tão cheia de fidúcias!

— O senhor é bem atrevido!... foi a frase mais enérgica, o doesto mais furibundo, que Eugênio levantando-se trêmulo e vermelho encontrou no vocabulário dos impropérios para atirar ao seu insolente rival.

Mas considere-se que Luciano era um homem no vigor da idade, alto e de compleição atlética, de barbas negras e cerradas, e que Eugênio era um menino imberbe e delicado. O epíteto de atrevido que lhe atirou à cara, foi portanto um rasgo de coragem admirável e Deus sabe quanto custou ao pobre estudante!

— Como é isso?... faça o favor de repetir se é capaz.. replicou Luciano pondo-se diante de Eugênio de mãos nas cadeiras e com ar ameaçador... - Olhem a figura de quem quer se empertigar diante de mim!... este fedelho.... este rato de sacristia!... se me diz mais uma palavra, escovo-lhe aqui mesmo as orelhas...

— Alto lá, senhor - bradou uma voz, ao mesmo tempo que uma mão vigorosa agarrava o braço de Luciano... - Que lucro tira o senhor de estar desfeiteando uma criança?... se lhe puser as mãos é comigo que tem de se haver.

— Pronto!... respondeu voltando-se rapidamente para o seu interruptor. - Mas quem o chamou cá?... porventura o senhor é pai da criança?...

Daqui originou-se uma pendência, que durou alguns minutos sem passar de doestos, provocações e fanfarronadas em que todos tomaram parte, fazendo as mulheres uma pavorosa algazarra.

— Ora! ora! com efeito, senhor Luciano! - dizia a tia Umbelina altamente escandalizada com o negócio. - Nunca pensei que fosse o senhor o primeiro a vir armar barulhos e desordens nesta casa, onde até o dia de hoje - louvado seja Deus - não se sabia o que era a mais pequena rusga. E com quem vem mostrar-se valente? com a coitada de uma criança, que ainda ontem deixou os cueiros!

— Fie-se nisso... não está ele nos cueiros para lhe andar namorando a filha...

— Senhor Luciano, isso não são coisas que se digam! Estes meninos foram criados juntos, querem-se muito e...

— Bravo!... atalhou o rapaz com um riso de galhofa... Ainda mais essa! muito bem! pois deixe-os andarem juntos... que mal faz isso?... deixe-os e espere pelo resultado.

— Cale-se, senhor Luciano! bradou Umbelina roxa de cólera e batendo com o pé. - Pensa o senhor que por ter na algibeira uma pataca mais do que os outros pode dizer o que lhe vem à boca, e chegar a ponto de querer governar as filhas alheias?

Luciano quis responder, mas uma multidão de vozes aplaudindo Umbelina abafaram-lhe as palavras.

— Muito bem! muito bem, tia Umbelina!

— Tem carradas de razão, e aqui estamos para punir pela senhora.

— Saia! saia o desmancha-prazeres!

— Fora o rusguento!

A filáucia e o tolo orgulho do rapaz arredavam dele todas as simpatias, e portanto, achou-se só no meio da tormenta que ele mesmo suscitara.

Fulo de raiva, Luciano pegou no chapéu.

— Vou-me embora! - disse bufando - a culpa tenho eu de me meter no meio de gente baixa e sem educação. Adeus, senhora Umbelina!... pode estar certa que Luciano Gaspar de Oliveira Faria e Andrade nunca mais há de cruzar a soleira da porta de sua casa.

— Oh! oh! oh! senhor Luciano! replicou Umbelina com riso de mofa. - É pena que não tivesse essa lembrança há mais tempo.

Um coro de aplausos a Umbelina e de apupadas a Luciano acolheu estas palavras.

Enquanto rugia toda esta trovoada, Eugênio e Margarida, trêmulos e espavoridos, tinham-se retirado para um canto, cosendo-se à parede da casa postaram-se bem junto à janelinha de balaústres, que tantas vezes tinha ouvido seus suspiros e amorosas falas no mistério da solidão.