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O Seminarista/XVI

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Mais um ano se passou empregado naquele inútil porfiar do padre diretor, que empenhara em vão todo o esforço e perseverança para arrancar o mancebo àquele estado de desânimo e abatimento. Este, não vendo outra solução senão a morte à sua cruel situação, abandonava indefeso o coração ao abutre da angústia, que o devorava.

Desalentados por fim os reverendos preceptores, deliberaram entre si e convieram em um expediente do qual esperavam pronto e seguro resultado. Escreveram ao pai do estudante fazendo-lhe ver o estado de melancolia e prostração em que vivia, e como apesar de todos os esforços por eles empregados a sua constante preocupação não o abandonava, continuando a mostrar-se inteiramente avesso ao estado sacerdotal. Aconselhavam portanto ao pai, que procurasse casar a rapariga, que assim trazia desgarrada do bom caminho aquela ovelha predestinada, que Deus parecia ter criado para santas e sublimes coisas. Era este o único recurso eficaz com que contavam, pois era natural que o moço, sabendo que a menina estava casada, tratasse de banir do espírito aquela teimosa tentação de que Satanás se prevalecia para arredá-lo de sua natural e santa vocação. Que era pena perder-se por tão fútil e baixo motivo um digno sacerdote, que viria a ser um dia um dos mais belos ornamentos do clero brasileiro.

Lisonjeado com os elogios feitos ao filho, Antunes aplaudiu e aceitou o conselho e deu-se pressa a pô-lo em execução. Sabendo que Luciano, aquele que tivera a pendência com seu filho, conservava ainda a mais viva inclinação por Margarida, e que, pondo de parte a sua fatuidade e arrogância, era um excelente rapaz, morigerado e tratador da vida, tanto ele como a senhora Antunes começaram a dar passos com grande empenho e diligência no intuito de efetuar aquele casamento. Baldados porém ficaram todos esses esforços. Margarida resistiu inabalável a todos os conselhos, exortações, repreensões, desenganos, promessas e até às ameaças de maldição por parte de seus padrinhos e recusou-se obstinadamente a aceitar marido fosse ele qual fosse.

Outrora Umbelina tinha afagado no espírito a esperança e acreditava na possibilidade do futuro enlace dos dois meninos, Eugênio e Margarida. Não via na pobreza desta embaraço sério para isso, e quanto à linhagem, ela a viúva de um alferes dessa brilhante cavalaria mineira, a nata do exército, onde não se alistava senão gente de sangue limpo e de família honrada, e da qual o simples soldado era tão respeitado e respeitável como hoje um capitão, ela em nada se julgava inferior aos Antunes.

Mas Umbelina não era mulher de têmpera a seguir com tenacidade uma idéia, nem lutar com dificuldades. Logo que viu o vivo desejo, que mostravam os pais de Eugênio para fazê-lo padre, desvaneceram-se suas esperanças, e nem pensou mais no desejado enlace.

Contudo, não deixou de aconselhar à filha que acedesse à vontade de seus padrinhos, mas com tão pouca insistência, que parecia inteiramente neutral naquele negócio. O comportamento de seus compadres para com ela, desde a desagradável ocorrência do mutirão tinha revoltado o seu orgulho, e era com maus olhos que via a interferência, que queriam exercer nos negócios de sua casa.

Margarida, a pobre Margarida, via eclipsar-se para sempre e sem remédio a estrela de suas esperanças no seio de um fúnebre e sinistro negrume, que de mais em mais se condensava sobre sua cabeça. A alegria e o sossego fugiram daquela alma, onde a saudade e o pesar se aninharam para sempre. Ela via que os elementos revoltos só preparavam tempestades no horizonte de sua vida, e conspiravam de modo assustador para desunir dois destinos, que o céu parecia ter criado para se desenvolverem e se extinguirem ao lado um do outro, e não podia encarar sem horror esse futuro, onde a estrela de sua felicidade pálida, e incerta vacilava à borda de um horizonte tenebroso. Tinha crença firme no amor e nas promessas do seu querido; mas não tinha fé no destino, nesse poder implacável, e tirânico, que zomba dos mais firmes protestos e das juras mais leais.

Sofrendo cruelmente, Margarida procurava esconder aos olhos de sua mãe a violência e amargura de seus martírios.

Se não fosse a sua feliz e robusta organização e a têmpera forte do seu espírito, teria sucumbido ao peso de tantos pesares e aflições.

Eugênio e Margarida eram como dois lindos arbustos de viçosa e opulenta folhagem, que nasceram bem junto um do outro; as raízes se entrelaçaram no mesmo alvéolo, nutrindo-se da mesma seiva, e os ramos balançados pela mesma vibração se abraçaram e confundiram no ar. Um imprudente e desalmado cultor, pensando que lhes era nociva aquela vizinhança entendeu que devia separá-los, e arrancando um deles o transplantou para longe. Para isso foi mister lacerar desapiedadamente as raízes de ambos, e um e outro largaram pelo chão as folhas murchas, penderam para a terra os nus e ressequidos galhos, e não houve bafejo da primavera, orvalho benfazejo nem sopro de brisa vivificante, que pudesse restituir-lhes o perdido viço e louçania.

Vendo a invencível relutância da filha e a fria indiferença da mãe, Antunes, cheio de indignação, tomou de acordo com sua mulher a resolução de expulsá-las da fazenda.

— Desaforo! - exclamava o velho inchando as bochechas e bufando de cólera ao que parece, a tal comadre pensa que estou gastando dinheiro e apurando a paciência com a educação do menino para dá-lo em dote à sua pequena!.. ora não falta mais nada! é isso!... outro não é o motivo, por que embirram em não querer nem que se fale em casamento; que malucas!...

— Que dúvida! - acrescentava a mulher - rua com elas e quanto antes!... a tal comadre de uma figa, se não quer casar a filha é porque não quer-se desfazer daquele engodo, que lhe chama à casa os fregueses. Saindo a Margarida, adeus súcias e bebedeiras! adeus jogos e pandeiradas, em que os filhos-famílias vão atirar fora o dinheiro de seus pais... e é isso o que a ela não lhe faz conta.

— Lã isso também pode ser; mas o fito principal da patusca era filar-me o rapaz; isto ninguém me tira do sentido... até consta-me que o menino, depois que expressamente lhe proibimos pôr lá os pés, quando já todos aqui dormiam, fugia sorrateiramente da casa e lá ia passar quase todas as noites!... e que me diz a esta, hem, senhora?...

— Deveras, senhor Antunes!... o que me está dizendo?... homem!... veja que víbora traiçoeira admitíamos dentro de casa! Nada! nada! nem mais um momento quero ver essa mulher perto de nó.... é a serpente! é o diabo em pessoa!...

Assim, pois, ficou irrevogavelmente proferida a sentença de banimento das duas infelizes mulheres, sentença dura e injusta em todo o ponto, e que não tinha outra base mais do que a infundada prevenção dos dois fanáticos esposos. É verdade que Umbelina, como dona de uma pequena bodega à beira da estrada, tinha de tolerar sem remédio a reunião em sua casa de muita rapaziada vadia e turbulenta, que lá se agrupava por vezes aos domingos, e armava algazarras e rara vez algum pequeno distúrbio.

Um belo dia, pois, Umbelina e sua filha tiveram de arrumar a sua trouxa, e de dizer eterno adeus à sua linda casinha, ao risonho e pitoresco vale, ao córrego e às paineiras que por tantos anos tinham sido o abrigo e a companhia de sua feliz e pacífica existência.

Umbelina, por sua parte, de há muito desgostosa e disposta a abandonar aqueles lugares, não sentiu grande pesar em deixá-los; mas a pobre Margarida... essa aí deixava o coração feito em pedaços entre as garras da dor e da saudade. Triste sina era a sua! a sorte desapiedada lhe arrancava até a companhia daqueles sítios queridos, daqueles seres inanimados, que para os outros não tinham valor nem significação alguma, mas que para Margarida tinham uma alma com quem se entendia, uma voz consoladora que com ela conversava mistérios de amor e de saudade.

Quando viu sumirem-se por detrás das colinas a alva casinha, o vargedo, e os últimos topes das figueiras e das duas paineiras, pareceu-lhe que um véu de eterno luto se estendia sobre seu coração, e uma voz lúgubre lhe murmurava dentro da alma: - tudo está acabado!

Assim devia retirar-se Eva, expulsa do paraíso pela espada de fogo do arcanjo vingador, chorosa e a passos lentos, volvendo de quando em quando para o jardim de delícias, que acabava de perder, olhos empanados de lágrimas de indizível angústia. Assim devia retirar-se Eva, sim; porém talvez menos infeliz porque sentia na sua a destra do esposo, que a afagava, e lhe sustinha os passos vacilantes pelas tristonhas e escabrosas sendas do exílio.

Margarida porém, ai dela!... despedindo-se daquele éden saudoso da sua infância, dizia também eterno adeus ao bem querido de seu coração.