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O Seminarista/XVII

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Grande é o poder do tempo.

O próprio braço da dor, quando não consegue esmagar a sua vítima, por fim de contas esmorece fatigado, e o seu estilete, por mais buído que seja, acaba por embotar-se.

O físico de Eugênio, graças à mocidade e a uma feliz e sadia organização, tendo resistido aos rudes e continuados golpes de uma dor íntima, e intensa e corrosiva, o espírito como que fatigou-se de sofrer, ou antes habituou-se ao sofrimento.

Uma influência talvez ainda mais forte que o tempo, se bem que por ele auxiliada, contribuiu também grandemente para a salutar modificação que se operou na vida do mancebo. Sua natural tendência à devoção e ao misticismo, que nele constituía também uma paixão, há muito tempo abafada pelos pesares e inquietações de um amor infeliz, acordou finalmente no seio daquela alma ulcerada, e se não pôde acalmar de todo seus sofrimentos e tumultuosas agitações, veio pelo menos dar-lhes um caráter menos sombrio e desesperado.

Eugênio não pôde suportar por mais tempo a triste solidão em que gemia abraçado com a cruz de seu sofrimento. Não sabendo onde achar socorro e consolação para o mal que o flagelava, correu a prostrar-se aos pés do Crucificado, regou-os com suas lágrimas, e beijou-os cheio de contrição e de amor, implorando-lhe que lhe acalmasse aquela febril agitação, que lhe queimava o cérebro, e lhe restituísse a paz do coração.

Desde então começou a sentir de novo aqueles celestes enlevos, que as solenidades religiosas outrora lhe despertavam na alma. No templo, aos sons do órgão sagrado e dos hinos religiosos, seu espírito se arrebatava entre as nuvens de incenso sobre as asas do êxtase e pairava pelo empíreo no meio de coros angélicos. O altar inundado de esplendores e de nuvens aromáticas lhe parecia o escabelo do trono de Deus, o único degrau seguro, por onde se pode subir ao conspecto do Altíssimo. No meio de suas deslumbrantes visões o mancebo invejava dentro da alma, e cobiçava ardentemente a glória sem par de empunhar a chave do sacrário, e de queimar o incenso aos pés do onipotente.

Eugênio, então entrado nos dezenove anos já não tinha o seu dormitório no salão dos meninos; pertencia à turma dos grandes, e dos que propriamente se chamam "seminaristas" ou candidatos ao sacerdócio: Como tal, tinha portanto o seu cubículo ou cela particular. Ali também entregava-se com fervor a contínuas práticas de devoção e ascetismo, e ajoelhado aos pés da imagem da Mãe de Deus, rezava longamente e deixava o seu espírito perder-se engolfado em santas e beatíficas contemplações, ou lia as páginas ardentes e sublimes de S. Jerônimo ou de S. Agostinho, e os seráficos escritos de S. Francisco de Sales e de S. Teresa de Jesus, tão perfumados de mística unção e de angélica piedade.

A estas práticas de devoção e piedosas leituras vinham se juntar estudos severos das matemáticas, de filosofia e teologia, que lhe iluminavam e robusteciam a inteligência; ao passo que a leitura assídua do Eclesiastes; do livro da sabedoria e dos provérbios de Salomão lhe confortava o coração, e o protegia contra os ataques das seduções e vaidades do mundo.

Mas não se pense que Eugênio enlevado em seus atos de devoção e absorvido em seus estudos havia conseguido esquecer-se de Margarida.

Somente o seu amor, purificando-se ao contato da religião de tudo que nele havia de carnal e terreno, tinha tomado as cândidas roupagens de uma afeição angélica e ideal, e o fel amargo da saudade, que lhe afogava o coração, se havia transformado em uma torrente de lágrimas silenciosas e resignadas, que vertia aos pés da Virgem consoladora dos aflitos.

Entre as nuvens do incenso, que embalsamavam o templo, no meio dos anjos de suas visões pairava também a imagem de Margarida, e por entre as piedosas e místicas harmonias, que enchiam as abóbadas sagradas, ouvia-lhe a voz suave e argentina. No retiro solitário de sua cela, quando prostrava-se em oração ante a imagem da Virgem, Margarida estava também ajoelhada ao lado dele como nos tempos de seus brincos de criança, e era ela o anjo, que nas asas de neve e ouro levava as suas preces ao trono do Onipotente.

Essas duas tendências naturais de seu coração terno e entusiasta, pode-se dizer essas duas paixões, que lhe eram inatas, o amor e a devoção, congraçavam-se admiravelmente em seu espírito. O arroubo místico, contínua aspiração para Deus e para as coisas celestes, não excluía nele o amor por essa criatura, que é sobre a terra um dos mais belos reflexos do infinito poder - a mulher. É que de fato esses dois sentimentos tão puros, tão celestes ambos, nada têm de inconciliáveis em si mesmos, e somente uma lei meramente convencional, impondo o celibato como um preceito imperativo, podia levantar entre eles esse odioso antagonismo, contra o qual a razão protesta e revolta-se o coração.

Eugênio pois não deixava de sentir em si a mais pronunciada vocação para o sagrado ministério do altar; se não fora o amor, que nele ainda prevalecia sobre as tendências teocráticas, sua resolução estaria definitivamente firmada e decidida. O seu espírito oscilava perplexo entre essas duas belas e santas aspirações, as quais, se não fossem canonicamente incompatíveis, teriam entretecido para a fronte do mancebo a mais brilhante coroa de glória, de amor e de felicidade, e que no entretanto por sua incompatibilidade estavam fadadas a cavar-lhe um abismo de angústias e desgraças.

Dois anjos a um tempo tomavam Eugênio pela mão, e o convidavam para o céu.

Um era a piedade, que lhe mostrava os degraus do altar, e lhe corria diante dos olhos maravilhados os véus sacrossantos, que encobrem o trono de Deus.

O outro era o amor, que lhe entreabria a porta misteriosa da alcova nupcial, e lhe apresentava a imagem de Margarida.

O despertar do espírito religioso na alma do mancebo, alimentado e auxiliado por contínuas exortações e conselhos dos padres, já era um grande passo para a consecução do fim que tinham em vista. A paixão ascética ia pouco a pouco ganhando sua alma, e em breve os afetos profanos não encontrariam nela nem mais um cantinho onde aninhar-se.

Aplaudiam-se entre si deste resultado, e já não duvidavam de que mais tarde ou mais cedo o triunfo seria completo, e o moço abjurando de uma vez todas as paixões terrenas se entregaria sem resistência nos braços de sua natural vocação - o sacerdócio.

Escreveram ao pai de Eugênio:

"Graças ao Todo-poderoso e aos nossos perseverantes esforços, a ovelha desgarrada vai se encaminhando para o aprisco da religião... O bálsamo salutar da devoção vai dissipando os efeitos do veneno, que a paixão pecaminosa lhe filtrara no coração. Mais um passo, e poderemos cantar assinalada vitória sobre o espírito das trevas, ganhando um digno ministro para o altar, e uma bela alma para o céu. Resta, que V. Sa. nos comunique o casamento da rapariga e tudo estará concluído."

A despeito de toda a força da sua vocação eclesiástica, de todo o fervor do seu ascetismo religioso, Eugênio mantinha-se firme na resolução de não tomar ordens. Assim o havia jurado a Margarida. Firmada pela religião do juramento, essa afeição terna e profunda que votava à companheira de sua infância, afeição que com ele nascera, que era a luz de seus olhos, a seiva de seu coração, o perfume de sua alma, via cerrar-se os áditos do santuário do Senhor, para o qual volvia olhos invejosos como para um Éden vedado, de que suas fraquezas o tornavam indigno. Mas Margarida era um anjo de Deus exilado na terra, e se ele não podia com suas mãos profanas tocar nos vasos sagrados e na hóstia sacrossanta, poderia ao menos ajoelhado ao lado dela, inclinar a fronte venerabunda ante os altares, e entoar com ela hinos de louvor ao Todo-poderoso. O culto e adoração oferecidos ao Senhor por um de seus anjos não podiam deixar de ser-lhe tão gratos como aqueles que lhe são endereçados pelas mãos de seus ungidos.

Destes devaneios, em verdade bem suaves, o vinham arrancar considerações de outra ordem, que o lançavam num pego de amarguras e inquietações. Via diante de si a incerteza do futuro, o inabalável emperramento de seus pais, que a todo o transe o queriam fazer padre, a sorte precária de Margarida, mal vista e repudiada por eles, pobre e frágil criatura exposta a todos os embates de um destino cruel e a todas as seduções e azares de um mundo corrupto e libertino.

Já não era só o amor, era um dever mais santo e porventura mais forte que o amor, que o forçava a jamais abandonar ao seu destino aquela infeliz criatura, que o céu como que havia confiado à sua guarda e proteção, fazendo-a nascer junto dele, e colocando-a à sombra do mesmo lar, como a tenra trepadeira, que nasce enleada ao viçoso e copado arbusto, amparando-se com sua sombra e nutrindo-se de sua seiva. Margarida, mesmo não podendo ser sua esposa, era sua irmã; embora o não fosse pelo sangue, o destino colocando junto ao seu o berço dela, os tinha feito irmãos pela alma. Agora que seus pais com tanta desumanidade a repudiavam, e que não lhe restava senão sua velha e mísera mãe, ele, que era seu único amparo sobre a terra, devia viver só por ela e para ela.

O espírito do mancebo bem queria nas asas da religião e da piedade desprender-se da terra, e consagrar-se exclusivamente ao culto da divindade; mas um laço poderoso lhe tolhia os vôos e o tinha atado aos interesses e afeições mundanas.

Depois de ter volvido na alma todas essas tristes e amargas reflexões, Eugênio exclamava: - Não, não posso, não devo ser padre! - e passava a excogitar os meios de despedir-se do seminário o mais breve que fosse possível.