O Sertanejo/I/II

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O DESMAIO.

     A par com a comitiva, mas por dentro do mato, caminhava um viajante á escoteira.

     Parecia acompanhar o capitão-mór, porém de longe, ás ocultas, pois facilmente percebia-se o cuidado que empregava para não o descobrirem, já evitando o menor rumor, já affastando-se quando o mato rareava a ponto de não esconde-lo.

     Sua paciencia não se cansava ; tinha caminhado assim horas e horas, por muitos dias, com a perseverança e subtileza do caçador que segue o rasto do campeiro. Não perdia de vista a comitiva, e quando a distancia não lhe deixava escutar as fallas, adivinhava-as pela expressão das phisionomias que seu olhar sagaz investigava por entre as ramas.

     O cavallo cardão, que elle montava, parecia comprehende-lo e auxilia-lo na empreza ; não era preciso que a rédea lhe indicasse o caminho. O intelligente animal sabia quando se devia metter mais pelo mato, e quando podia sem receio aproximar-se do comboio. Andava por entre as arvores com destreza admiravel, sem quebrar os galhos, nem ramalhar o arvoredo.

     Tinha o cavallo um porte alto e linda estampa ; mas nessa occasião, além da fadiga da longa viagem que devia emmagrece-lo, sobretudo por uma secca tão rigorosa, o animal vaqueano conhecia que não era ocasião de enfeitar-se, riflar e dar mostras de sua galhardia. De feito tinha mais aspecto do um grande cão montado por seu senhor, do que de um corsel.

     Era o viajante moço de vinte annos ; de estatura regular, agil, e delgado de talhe. Sombreava-lhe o rosto, queimado pelo sol, um buço negro como os compridos cabellos que annellavam-se pelo pescoço. Seus olhos, rasgados e vividos, dardejavam as vehemencias de um coração indomavel.

     Nesse instante o constrangimento á que a espreita o forçava, tolhia-lhe os movimentos, e embotava a habitual impetuosidade ; mas ainda assim, nesses agachos de caçador a esgueirar-se pelo mato, percebia-se a flexibilidade do tigre, que roja para arremessar o bote.

     Vestia o moço um trajo completo de couro de veado, curtido à feição de camurça. Compunha-se de vestia e gibão com lavores de estampa e botões de prata ; calções estreitos, botas compridas e chapéo á espanhola com uma aba revirada á banda e tambem pregada por um botão de prata.

     Ainda hoje esse trajo pittoresco e tradiccional do sertanejo, e mais especialmente do vaqueiro, conserva com pouca differença a feição da antiga moda portugueza, pela qual foram talhadas as primeiras roupas de couro. Ultimamente já costumam faze-las de feitio moderno, mas não têm o valor e estimação das outras, cortadas pelo molde primitivo.

     Trazia o sertanejo, suspensa á cinta, uma catana larga e curta com bainha do mesmo couro da roupa, e na garupa a malleta de pellego de carneiro, com uma clavina atravessada e um masso de relho.

     Quando a comitiva chegou á eminencia d'onde se avistava a oiticica, o viajante acompanhou com os olhos a donzella até que seu vulto gracioso desappareceu entre o arvoredo ; e dando volta ao cavallo afastou-se vagarosamente do caminho da fazenda.

     Não tinha, porém, andado vinte braças, que sua phisionomia trahiu subita inquietação. Reclinando sobre o arção, perscrutou com o olhar o mato que o rodeava. Ouvia-se ao longe um leve crepitar, semelhante ao rugir do vento nas palmas crenuladas da carnauba.

     O que, porém mais preocupava o sertanejo era a calida rajada que ao passar escaldara-lhe o rosto. Arripiando caminho avançou contra o bochorno para verificar a causa, que tinha logo supposto.

     Seu cavallo cardão rompeu o mato a galope, como quem estava acostumado a campear o barbatão no mais espesso bamburral ; e com pouco o sertanejo, atalhando a distância, avistou D. Flor parada além, no caminho.

     A donzela debalde fustigava o baio, que recuava cheio de terror. Tambem ela sentira-se envolta por uma evaporação ardente, que se derramava na atmosphera e opprimia-lhe a respiração, mas, occupada em vencer a relutancia do animal, não prestara ao incidente maior atenção.

     Nisso levantou-se no mato um fortissimo estrepito que rolava como o borbotão de uma torrente ; e a donzella viu, tomada de espanto, um turbilhão de fogo a assomava ao longe e precipitava-se contra ella para devora-la.

     Conhecendo então a causa do terror que assustara o animal, e presentindo o perigo que a ameaçava, lembrou-se a donzella de retroceder ; mas outro bulcão de chamas já arrebentava por aquella banda e tomava-lhe o passo.

     O incendio, causado por alguma queimada imprudente, propagava-se com fulminante rapidez pelas arvores mirradas que não passavam então de uma extensa mata de lenha. A labareda, como a língua sanguinolenta da hydra, lambia os galhos ressequidos, que desappareciam tragados pela fauce hiante do monstro.

     No seio do denso pegão do fumo, que já submergia toda a selva, rebolcava-se o incendio como um ninho de serpentes, que se arremettiam furiosas, enristando o collo, brandindo a cauda, e desferindo silvos medonhos.

     Ao mesmo tempo parecia que a tormenta percorria a floresta e a devastava. Ouvia-se mugir o vento, agitado pelo reçolho ardente e ruidoso das chammas  um trovão soturno repercutia nas entranhas da terra, e a cada instante, no meio do constante estridor da ramagem, reboavam com os surdos baques dos troncos altaneiros os estertores da floresta convulsa.

     Do meio desse torvelinho, o dragão de fogo se arremessava desfraldando as duas azas flammantes, cujo bafo abrasado já crestava as faces mimosas de D. Flor, e a revestiam de reflexos purpureos.

     Entre as duas torrentes igneas que transbordavam innundando o campo e não tardavam sossobral-a, a donzella não desanimou, e fez um supremo esforço para arrancar seu cavallo do estupor que lhe causava o terror do incendio.

     Negros rolos de fumo, porém, a envolveram, e suffocada pelo vapor ella sentiu desfallecer-lhe a vida.

     Então com um gesto de sublime resignação cruzou as mãos ao peito, reclinou a linda fronte, e abandonou-se á morte cruel que vinha ceifar-lhe sem piedade a primicia de sua belleza, quando apenas desabrochava.

     Nenhum grito lhe rompeu do seio nessa tremenda angustia ; com o nobre pudor das almas altivas recalcou o supremo gemido, e em seus labios mimosos a voz feneceu exhalando apenas esta palavra, que resumia toda a sua afflição :

     — Jesús!...

     O corpo desmaiado resvalou pelo flanco do baio, mas não chegou a cahir. Um braço robusto o suspendeu quando já a fralda do roupão de montar arrastava pelo chão.

     Apenas o sertanejo conheceu o perigo em que se achava a donzella, rompeu-lhe do seio um grito selvagem, o mesmo grito que fazia estremecer o touro nas brenhas e que dava azas ao seu bravo campeador.

     No mesmo instante achava-se perto da moça, a quem tomara nos braços. Para salva-la era preciso voltar antes de fechar-se o circulo de fogo, que já o cingia por todos os lados com excepção da estreita nesga de terra por onde acabava de passar.

     Não houve de sua parte a minima demora ; o campeador devorou o espaço, e não se poderia dizer que chegara, pois sem parar voltara sobre os pés. Mas o incendio tinha as azas do dragão ; retrocedendo, achou-se o sertanejo em face de um bulcão de chammas que o investia.

     As duas trombas de fogo, que desfilavam pelo campo fóra, se haviam encontrado, não frente a frente, mas entrelaçando-se, de modo que deixavam ainda, de espaço em espaço, restingas de mato poupadas pelas chammas.

     Arrojou-se o mancebo intrepidamente nessa voragem. Estreitando com o braço direito o corpo da donzella cujo busto envolvera em seu gibão de couro ; com um leve aceno da mão esquerda suspendia pelas rédeas o bravo campeador que, de salto em salto, transpôs aquellas torrentes de fogo, como tantas vezes sobrepujara os rios caudalosos, abarrotados pelas chuvas do inverno.

     Fustigado pelas chammas que já o attingiam, e instigado tambem do exemplo, o baio, sahindo afinal do torpõr que delle se apossara, disparou à colla do brioso campeador ; porém, menos intrepido e ágil, muitas vezes tropeçou no brazeiro, donde a custo pôde safar-se.

     Para rodear a columna de fogo que lhe cortava o caminho da fazenda, teve o sertanejo de dar grande volta, que o levou aos fundos da habitação, completamente deserta nesse momento, pois todos os moradores e gente do serviço, avisados pelo toque da trombéta, haviam acorrido para o terreiro da frente a receber os donos e festejar a chegada.

     Saltou o mancebo em terra sem esperar auxilio, e atravessando a varanda deitou o corpo desfalecido de D. Flor no longo canapé de couro adamascado, que ornava a sala principal.

     Compoz rapidamente, mas com extrema delicadeza, as amplas dobras da saia de montar, para que não ofendessem o casto recato da donzella, descobrindo-lhe a ponta do pé, nem desconsertassem a graciosa postura dessa linda imagem adormecida. Com os olhos enlevados na contemplação da formosa dama, agitava como leque a aba de seu chapéo do couro, refrescando-lhe o rosto.

     Não assustava ao sertanejo a imobilidade da moça ; durante a corrida, apezar do estrepito do incendio e do esforço que empregava para arrancal-a ás chamas, não cessara um instante de ouvir sobre o peito a palpitação do coração de D. Flor, a principio violenta, mas que foi moderando-se gradualmente.

     Conheceu que não passava isso de um simples desmaio causado pelo vapor do incendio. Com o repouso e a inspiração do ar mais vivo e fresco, a donzella não tardaria a voltar a si. Mas se não receiava já pela vida preciosa que salvara, todavia não se desvaneceu completamente a inquietação do mancebo pelas consequencias que podia ter aquelle susto para a saude e tranquillidade de D. Flor.

     Este disvello extremo enchia-lhe os olhos os feros olhos negros, que fusilavam procellas nos assomos da ira, e que agora, ali, em face da menina desfallecida, se quebravam mansos e timidos, espreitando a volta do espirito gentil que animava aquella formosissima estatua, e estremecendo ao mesmo tempo só com a lembrança de que as palpebras cerradas pelo desmaio se abrissem de repente e o castigassem com mostras de desprazer.

     Indefinivel era a uncção desse olhar em que o mancebo embebia a virgem, como para reanimal-a com os effluvios de sua alma, que toda se estava infundindo e repassando da imagem querida. Ninguém que o visse momentos antes, lutando braço a braço com o incendio, gigante contra gigante, acreditara que esse coração impetuoso encerrasse o manancial de ternura, que fluia-lhe agora do semblante e de toda sua pessoa.

     A respiração da donzella, sopitada pela vertigem, foi-se restabelecendo ; o seio arfou brandamente com o primeiro alento, e na face que parecia de alabastro perpassara um frouxo vislumbre de côr.

     Ajoelhou então o sertanejo á beira do canapé ; tirando do peito uma cruz de prata, que trazia ao pescoço, presa a um relicario vermelho, deitou-a por fóra do gibão de couro. Com as mãos postas e a fronte reclinada para fitar o symbolo da redempção, murmurou uma Ave-maria, que offereceu á Virgem Santissima como acção de graças por haver permittido que elle chegasse a tempo de salvar a donzella.

     Terminada a oração, volveu a vista em torno como se temesse que as paredes se crivassem de olhos para espia-lo, e perscrutou o semblante da donzella com uma expressão pavida e supplicante. Afinal, tremulo, pallido, qual se commetesse um crime, curvou-se e beijou a franja que guarnecia o fraldelhim do roupão, como se beija a mais santa das relíquias.

     Tenue suspiro exhalou dos labios já rosados da donzella ; a mão esquerda moveu-se com um brando gesto que a approximara do seio. O mancebo retrahira-se vivamente par ao lado da cabeceira : e á medida que os sinais do recobro se manifestavam na menina, elle, sempre voltado para o canapé, sem tirar-lhe os olhos do semblante, se affastava de costas em direcção á varanda. Cada movimento de D. Flor era um passo que elle dava, prompto a dessapparecer da sala como uma sombra.

     Já próximo á porta, violenta commoção o abalou. Dos labios frouxos da donzella se desprendera em mavioso queixume um nome, e esse nome era o seu:

     — Arnaldo!

     Irresistivel impulso arrojou-o para a donzella ; mas, como o cedro que o vento inclina, sem arranca-lo do sólo onde lançou a profunda raiz, o sertanejo tinha dentro d'alma um poderoso sentimento, que lhe encadeava os assomos da paixão, e o soldava ao pavimento.

     Foi lentamente e com supremo esforço tornando do primeiro elance, até que, arrancando-se emfim ao encanto que ali o prendera, desappareceu da sala.

     Levantara-se então um grande alarido no terreiro da casa.