O Sertanejo/I/III

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A CHEGADA.

     Quando o capitão-mór reconheceu os primeiros signaes do incendio, preveniu a gente de sua escolta.

     — Queimada, Agrella ? disse elle sorpreso. Neste tempo e nestas paragens, não póde ser.

     — E' que vem de longe, observou o tenente fincando as esporas no cavallo. Toca ávante a escolta.

     O troço de cavalleiros disparou com a machada em punho, desbastando o mato de uma e outra banda para formar um largo aceiro que impedisse o fogo do propagar-se pela floresta.

     Enquanto elles abatiam as maravalhas e ramadas altas que facilmente concebiam a chamma e a communicavam, os peões, chamados a tempo, arredavam para longe todo esse chamiço, isolando os grosso troncos, que se não podiam facilmente derrubar na ocasião.

     No meio dessa faina que o capitão-mór dirigia em pessoa e animava com a palavra e o exemplo, sôou um grito de afflição. Partira de D. Genoveva, a quem de repente acudiu a idéia do perigo que podia correr a donzella nesse instante, si é que já não fôra victima da horrivel catastrophe :

     — Minha filha !... Flor !... bradava a desolada mãi.

     E ora queria atravessar por dentro da mata abrazada, levada pelo desespero á busca da menina ; ora voltava-se para o marido com as mãos postas, supplicando-lhe que a amparasse naquella ancia.

     Rapida contracção frisou o rosto grave e placido do capitão-mór, que logo dominou-se. Podia medir-se a energia que recalcou a primeira impulsão, pela força com que o velho se firmou na sella, vergando ao seu peso o espinhaço da cavalgadura á feição de um arco.

     — Não se assuste, D. Genoveva ! disse com voz sossegada. Nossa filha não corre perigo.

     — De-certo, acudiu Agrela ; a doninha passou antes que o fogo chegasse ao caminho, sinão teria voltado.

     — Esteja descançada, minha mulher. D. Flor já chegou á nossa casa ; observou o capitão-mór, e tornou ao serviço. Aguenta, rapazes !

     — Quem sabe, Sr. Campello ; Flor é tão animosa ! Talvez teimasse em passar para mostrar que não tem medo.

     — Mas, senhora dona, insistiu o Agrella, si tivesse acontecido alguma cousa, de que Deus nos livre e guarde...

     — Amem ! disse a dama.

     O capitão-mór tirou o chapéo, gesto que toda a escolta imitou.

     — Por força que se havia de ouvir !

     — Com esse barulho do fogo, que parece uma trovoada !...

     — Lá o grito da doninha, não digo nada, mas o rincho do cavalo chega longe ; e então quando o fogo começasse a chamuscar-lhe a pelle !

     — Convença-se do que lhe digo, senhora ; acrescentou o capitão-mór.

     — A prova ahi está ! Não ouve, senhora dona ? Um cavallo que está rinchando lá em casa ?

     — E' verdade ! exclamou D. Genoveva.

     Agrella applicou o ouvido.

     — E não é outro sinão o baio !

     — Está vendo, D. Genoveva ?

     A inquietação da mãi abrandou um tanto, mas não serenou de todo. Nessas occasiões, quando um grande susto abala profundamente o coração, deixa uma incredulidade, que se não desvanece com palavras, e muitas vezes resiste á própria realidade.

     E' só depois que ao coração, como ao lago revolto pela tempestade, volta a bonança, que elle recobra sua limpidez, na qual espelha as celestes esperanças.

     — Em quanto meus olhos não virem Flor, eu não fico socegada, Sr. Campello.

     O capitão-mór voltou-se para Agrella.

     — Minha senhora dona já póde passar ; disse o tenente. Olá, o Xavier e o Bentevi !

     — Prompto ! disseram dois sequazes acodindo á ordem do cabo.

     — Ordena o Sr. capitão-mór que acompanhem á casa a Sra. D. Genoveva ? perguntou Agrella.

     — Ordeno !

     — Até logo, Sr. Campello. Não se demore ; já basta de afflições.

     O capitão-mór fez á mulher uma respeitosa cortezia, e emquanto ella se encaminhava á fazenda, tornou ao serviço que sua gente emprehendera para atalhar o incendio e salvar as matas visinhas, ameaçadas de ficarem reduzidas á cinzas.

     O trabalho avançara rapidamente á ponto de poder D. Genoveva atravessar para o outro lado sem necessidade de fazer grande volta. O aceiro aberto na direcção da fazenda tinha cortado a tromba do incendio que o vento impellia naquelle rumo, de modo que não foi difficil ilha-lo nessa porção de terreno já devastada, onde brevemente, consumido pela chamma todo o combustivel, começou a apagar-se, ficando apenas o brazido.

     Todavia, não era prudente abandonar esse imenso borralho, donde o vento á cada instante levantava enxames de fagulhas, que inflammavam-se no ar, e podiam atear novamente o fogo no mato cheio de gravetos e chamiços.

     Agrella não descansou enquanto não extinguiu de todo o fogo na largura de umas dez braças, e ainda assim postou de espaço á espaço vigias que ahi deviam ficar durante a noite, para dar aviso de qualquer accidente, quando por si não o pudessem remediar.

     Durante essa arriscada e ardua tarefa, a gente da escolta e do comboio não deixava de torcer-se com a impaciencia de Agrella, mas ali estava o capitão-mór que não sómente não se poupava para dar o exemplo, como não duvidaria esborrachar com um murro a cabeça do primeiro que respingasse contra o seu tenente.

     Com pouco appareceu o reforço da gente da fazenda, que avisada pela chegada de D. Genoveva, corria em socorro e deu a ultima demão ao serviço.

     — Podemos seguir, Sr. capitão-mór, se V. S. não manda o contrario.

     — Vamos !

     Só então o capitão-mór Campello resolveu-se á deixar aquelles sitios para dirigir-se à sua casa da qual se achava ausente havia meses, e á que tão á propósito voltara para salva-la da ruina de que não escaparia com certeza, se o fogo continuasse com a violencia em que ia.

     Entretanto havia chegado D. Genoveva ao terreiro, onde a aguardava novo susto.

     Toda a gente da casa, aggregados e servos, apinhada no meio do pateo, em frente ao caminho, esperava anciosa que aparecesse a cavalgada para recebel-a com as alviçaras, toques e acclamações de prazer, que eram de uso em taes occasiões.

     D. Genoveva, apenas entrou no terreiro, sem atender ás festas com que a saudavam, foi em altas vozes perguntando pela filha ás primeiras pessoas que lhe sahiam ao encontro.

     — Flor ?... onde está Flor !...

     Esta pergunta instante deixou á todos sorprezos. Não podiam comprehender como a dona lhes pedia novas de uma pessoa, que devia estar á essa hora em sua companhia e chegar juntamente com ella e o marido.

     A hesitação que se pintava em todos os semblantes, o espanto que já assomava nos gestos de alguns, lançou outra vez a mãi extremosa na mesma, sinão mais cruel afflição.

     — Minha filha !... gritou com um clamor de angustia. Não viram minha filha ?... Ela não chegou ?... Então, meu Deus, está morta ! O fogo a queimou !...

     A dama se arremessara da sella ao chão, e estorcendo os braços convulsos, arrancava os cabellos que se desgrenhavam revoltos pelas espaduas.

     Nem uma das mulheres presentes, crias de sua casa e famulos, se animava á consolar a dôr suprema da mãi, que perdera a filha. Limitavam-se á acompanhal-a com o pranto e á velar sobre ella, para amparal-a, si afinal desfallecesse com o atroz supplicio.

     Foi o capellão, o padre Telles, quem no exercicio do santo ministerio dirigiu palavras de conforto á mãi afflicta.

     — Lembre-se a dona que mais soffreu a mãi de Cristo, vendo seu filho não só morto e crucificado, mas coberto de baldões. E ella bebeu resignada esse calice de amargura !...

     Mas outro grito soou ahi perto, que á todos estremeceu :

     — Minha mãe !

     Na janela da casa assomara o vulto de D. Flor, que tambem inquieta pela sorte dos pais á quem estremecia, soltava uma exclamação de desafogo, avistando sua mãi.

     D. Genoveva cahiu de joelhos, dando graças á Deus que lhe restituia a filha ; e quando ergueu-se foi para estreitar ao peito a donzella que se lançara em seus braços.

     — E meu pai ? interrogou a menina assustada.

     — Não lhe aconteceu nada ; socega ; ficou atraz para apagar o fogo ; eu é que não podia descansar enquanto não te visse perto de mim, livre do perigo... Que desespero, quando cheguei, e ninguem sabia de ti ! Como não morri, meu Deus !

     — Já passou ! murmurava D. Flor. Agora socegue, que aqui está sua filha querida.

     — Sim ; sim ; parece-me que ainda mais te quero depois que te chorei perdida.

     A' esse tempo já toda a gente de serviço corria para o lugar do fogo.

     Entre as mulheres que cercavam a dama e sua filha, nem uma tomara maior parte nas afflições, como nas alegrias maternaes, do que uma sertaneja alta e robusta sem corpulencia, que mostrava no semblante rude, porém amoravel, uma franqueza de captivar.

     Era essa a Justa, a ama de D. Flor, cujo amor pela menina às vezes causava ciumes a D. Genoveva, tamanha era a devoção da carinhosa aldean por sua filha de criação.

     Apenas se desprendeu dos braços de sua mãi, D. Flor se atirou com effusão á Justa, que esperava essa caricia, como seu foro e juro de segunda mãi. A alentada sertaneja não se contentou com qualquer affago dos que se costumam fazer as moças ; tomou a menina ao collo, e conchegando-a á si como fazia outrora quando a trazia aos peitos, comeu-a de beijos desde as macias tranças dos cabellos até á ponta dos pequeninos pés, calçados de coturnos de setim escarlate.

     — Olhem só, gentes !... como veio bonita !... Está-se rindo, hein !... Teve saudades de sua mamãi ?... Teve !... Teve ?... Não havia de ter !... Por que não voltou logo ?... A gente tanto tempo aqui penando !... Pois agora ha de pagar ! Tome ! Um, dois, tres... cem !... Ah ! cuida que não me hei de desforrar ?

     Tudo isto interrompido por mil carinhos e entremeado dessa ingenua garrulice com que as mãis fallam aos filhinhos de collo, e que elles parecem entender : misteriosa linguagem do mais sublime affecto, formada de arrulhos, de caricias e de ternos balbucios.

     D. Flor deixava-se acariciar ; e cheia de risos, mostrava no semblante o contentamento que sentia banhando-se nessas effusões de amor.

     — Então lembrou-se muito de mim, mamãi Justa ? disse D. Flor.

     — Nem se falla, gente !

     A donzella pôde emfim receber as festas das companheiras da Justa ; com todas mostrou-se affectuosa, porém mais especialmente com uma moça que no seu tímido receio não ousava approximar-se.

     — Adeus, Alina ; vem abraçar-me.

     Entraram afinal as duas senhoras na sala principal.

     — Ainda não me disseste, Flor ! tomou D. Genoveva, sentando-se no sofá e chegando a filha para junto de si, como que ainda receiosa de que lh'a arrebatassem. O fogo assustou-te muito, ou não havia nada quando passaste ?

     — Pensei morrer ! exclamou D. Flor erriçando-se á lembrança do transe horrivel que passara. Está bom ; não fique outra vez afflicta ! Para que fallar mais destas cousas ?

     — Não ; conta, Flor !

     — Foi um milagre. O baio espantadiço empacou ; a principio não sabia o que era ; quando descobri o fogo, quiz voltar. Estava cercada ; via as labaredas correrem para mim, e pareciam-me estarem folgando e rindo do medo que me causavam. Mas a fumaça de repente suffocou-me ; e não soube mais de mim !... Vi que era chegada a minha ultima hora e encomendei-me á Deus.

     — Jesús ! pôde afinal proferir D. Genoveva em quem se repetia a ancia já passada da filha. E como escapaste, Flor ?

     — Não sei, minha mãi ; respondeu a menina ingenuamente. Disse-lhe já que foi um milagre ; não póde ser outra cousa. Nossa Senhora quiz valer-me !

     — Pois foi mesmo Nossa Senhora da Penha de França ! afirmou a Justa, que ouvia de pé. E porisso há de ter a sua novena de arrojo este anno, que foi a minha promessa, si trouxesse a minha filha e todos a salvamento.

     — Obrigada, mamãi !

     — Mas, Flor, como chegaste á casa sem que te acontecesse nada ?

     — Não posso lembrar-me ! respondeu a menina pensativa e evocando do intimo as vagas impressões que lhe fluctuavam no espirito. Desde que a fumaça cobriu-me toda, como se fosse a minha mortalha, não vi mais nada ; só dei acordo de mim aqui, neste canapé !...

     — Neste canapé ! exclamou D. Genoveva attonita.

     — E deitada, como se tivesse dormido.

     — Foi a minha Senhora da Penha, que a trouxe nos braços. Porisso ninguem viu quando chegou.

     — É verdade ! exclamaram outras vozes de mulher.

     — Eu tinha acordado ; não sabia onde estava, nem tinha idéia de quê me acontecera. Ergui-me ; e começava a reconhecer a casa, quando ouvi gritos no terreiro ; corri á janella e dei com minha mãi.

     A moça proferindo estas ultimas palavras lançou os braços ao pescoço da mãi, e ambas ficaram enlaçadas naquella ardente effusão com que novamente se restituiam uma á outra.

     A maneira por que a donzella fora salva do incendio, ficou sendo um mysterio. A maior parte da gente da fazenda attribuiu o caso á intervenção divina, e acreditava que Nossa Senhora da Penha fizera um milagre em favor da menina e pela intercessão da Justa. Outras, sem affirmar, suppunham que a menina, trazida á casa pela disparada do cavallo, que se encontrou atado ao pillar da varanda, apeara-se fôra de si e cahira desmaiada de susto no sofá, não se recordando dessas circumstancias pelo abalo que soffrera.

     Quanto á D. Flor, cogitando depois sobre o acontecimento que ameaçara a sua existencia, recordava-se de um grito que ouvira ao perder os sentidos e de um vulto que surgira de repente á seus olhos já annuviados pelas sombras da morte.

     Mas essa impressão que ao despertar exalava-se em um nome murmurado á flôr dos labios, seria a fugaz reminiscencia deixada por confusa realidade, ou illusão apenas da fantasia turbada pela vertigem ?