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O Sertanejo/I/VII

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MOIRÃO.

     Quando buscava o pouso, tinha Arnaldo resolvido um encontro para o dia seguinte.

     Vieram depois as namoradas recreações da fantasia, que o absorveram todo, e acaletaram-lhe o somno ; mas sob esse devaneio velava o proposito do animo deliberado, como sob a camada de flores viça a rija vergontea do arvoredo.

     Dormia, pois, o mancebo com aquelle somno captivo dos homens de vontade, que se governam ainda mesmo quando sopitados no lethargo dos sentidos, tão poderosa é a energia moral nessas organisações.

     Arnaldo mais que nenhum homem possuia a admiravel faculdade de reger o somno ; no remanso do corpo o espirito sabia manter de vigia uma percepção intima, que o advertia do menor rumor como da mais leve alteração, em torno de si.

     A vida do deserto tinha apurado essa lucidez. Tantas vezes obrigado á pernoitar no meio dos perigos de toda a casta, entre as garras da morte que o assaltava sob varias formas, no pulo do jaguar como no bote da cascavel ; o sertanejo aprendera essa arte prodigiosa de dormir acordado, quando era preciso.

     Podia-se dizer delle que reproduzia o antigo mito grego e tinha o dom especial de repartir-se em dois, para que um velasse, emquanto o outro se entregava ao repouso.

     Foi ao primeiro vislumbre da alvorada que o sertanejo determinou acordar para ir em busca do Aleixo Vargas, que provavelmente não era outro sinão o sujeito cujo rasto elle havia reconhecido no mato proximo á cabana do velho Job.

     Antes, porem, do momento marcado, despertou o rapaz subitamente, abalado por um ruido estranho, que soara no embastido da folhagem e que, apezar de fragil, repercutira dentro delle como a vibração do grito da araponga no seio da floresta.

     Achou-se de todo acordado á tempo ainda de escutar attentamente o mesmo som, duas vezes reproduzido uma após outra, e conhecer-lhe a origem. Acabavam de triscar um fuzil não mui distante e petiscar fogo do isqueiro.

     Si alguma duvida lhe restasse, desvanecera-se com o cheiro de fumo, delator da primeira baforada do cachimbo, que se acabava de acender.

     — Bom ; cá está o meu homem. Já não preciso de ir-lhe ao rasto ; tenho-o à mão.

     A floresta ainda estava immersa no alto silencio da modorra : apenas a fresca e sutil aragem que precede o primeiro diluculo e é como o hálito da alvorada, frolava mansamente as franças das arvores. No azul do céu nenhum pallor annunciava o raiar da luz.

     Quedou-se o sertanejo com o ouvido attento aos menores rumores que vinham do lado onde pitavam. Nada lhe escapou, nem o roçar do corpo pela casca do páo e os chupos dados ao tubo do cachimbo ; nem o grosso resomnar, que pouco depois substituiu aqueles primeiros ruidos.

     Da sua escuta deduziu o sertanejo quanto lhe convinha. Ficou sabendo que o cachimbador era o proprio Aleixo Vargas, cujo assoprado pitar elle conhecia tanto como o ronco nasal do dorminhoco. Gisou o ponto da floresta em que se achava o sujeito, e com tal exactidão que lá iria de olhos fechados linha recta. Finalmente firmou-se na certeza de que tinha seguro o homem, cujo somno espreitava d'ali mesmo e sem mover-se.

     Arnaldo conhecia todas as arvores da floresta, como conhece o vaqueiro todas as rezes de sua fazenda, e o marujo as minimas peças do apparelho de seu navio. Esses habitantes da selva tinham para elle uma feição própria, que os distinguia ; chamava-os á cada um por seu nome.

     Não admira, pois, que em resultado de sua observação elle dissesse para si :

     — Está no angico da grota !

     As barras vinham quebrando, como diz o povo, exprimindo com essa imagem as faichas de luz que listram o horisonte ao despontar da aurora, e que parecem as tunicas d'alva á desdobrarem-se pelo firmamento.

     O sertanejo adiantou alguns passos pela copa da arvore, á geito de ver lá na quebrada um casalinho, que apparecia em uma aberta no mato.

     Precisamente nesse instante abriu-se a porta do rustico albergue, e sahiu ao terreiro Justa, á quem logo cercou um bando de gallinhas, frangos e pintos á gana do milho pillado que a roceira vascolejava em uma coitê.

     Acompanhava-a uma cabra que, deixando a mulher ás voltas com a gente do poleiro, foi, como de razão, ali perto dar os bons dias aos moradores de um chiqueiro, que lhe responderam com um berredo dos mais alegres, no meio de cabriolas de toda especie.

     Demorou-se o rapaz um instante á olhar para a mãi, cujo vulto ele lobrigava ainda indeciso, movendo-se nas labutações caseiras, á luz frouxa do crepusculo matutino. Uma vez, como a Justa em seu giro se voltasse para o lado da matta, estendeu o filho a mão direita aberta, murmurando com um sorriso :

     — A bênção, mãi !

     Cumprido o preceito da piedade filial, Arnaldo, que nem um instante perdera de espreitar o visinho adormecido, pensou que era tempo de realizar o seu intento, e portanto começou um passeio aereo pela rama das arvores, que se entrelaçava, formando com os galhos um como travejado pavimento, á que servia de docel a verde copa embastida.

     O sertanejo andava tão fácil e seguro por aquelle giráo como pelo pavez de um sobrado. Muitas vezes, quando menino, correra por ali atras dos macacos e saguis que o não venciam na agilidade, pois agarrava-os á mão nas grimpas da floresta. Era tanto para admirar-se a rapidez como o geito e subtileza com que resvallava por entre o chamiço, a ponto que se não ouvia o aflar de uma só folha.

     A' um tiro de arcabuz estava o sitio que Arnaldo designara com o nome de grota : era o despenhadeiro de um profundo barranco. Os detritos, accumulados pelos enxurros nas covoadas ali formava o terreno, alimentavam as arvores altaneiras cujas vastas copas ensombravam o tremedal.

     Entre essas arvores a mais pujante era um angico secular, que lançava as grossas raizes a meio precipicio. O formidavel tronco, crescendo a principio obliquamente, na direção da outra rampa do desfiladeiro, como á atravessá-lo, no centro voltava-se á pino e subia verticalmente á grande elevação, onde repartia-se em varios esgalhos confluentes.

     De escancha sobre um desses ramos, com as pernas engalfinhadas nos intersticios e o corpo recostado no rustico espaldar formado pelos outros galhos, dormia á somno solto um homem ainda moço, de insolita e desconforme robustez.

     O toro, tinha-o corpulento, mas de uma mesma grossura desde os hombros até os artelhos, de modo que estando de pé e com as pernas fechadas, parecia um toco de pau cortado na altura de dez palmos do chão. Essa prancha de carne rematava em uma cabeça pequena e redonda, semelhante à maçaneta de um balaustre, e assentava em dois pés enormes que mais pareciam as cunhas de uma escora.

     Do seu aspecto, bem como da força de que era dotado, lhe viera a alcunha de Moirão, nome que nas fazendas tem o pião onde se jungem as rezes para a férra. Muitas vezes, jactando-se de sua pujança, aguentara no laço um boi bravo á disparada, sem abalar-se do lugar onde se fincava, nem sequer titubear.

     Arnaldo surdira em um ramo superior, á cavaleiro do sujeito, á quem estava agora observando á seu vagar. Comprazia-se o rapaz em admirar a robustez estampada na musculatura dessa organisação atletica, que produzia em sua alma uma emoção artistica. Para elle, sertanejo, filho do dezerto, tão poderosas manifestações da força tinham magestade e belleza epicas.

     Entretanto bastava um gesto seu para anniquilar o colosso. Estendesse elle o braço, travasse-lhe do pé e emborcasse-o no precipicio, que em um fechar d'olhos estaria o Moirão reduzido á migas, nas arestas dos alcantis.

     Arnaldo não demorou seu espirito nesta idéa sinão o tempo necessario para a repellir.

     Ao cabo de alguns instantes, desprendeu-se o rapaz do silencio em que se envolvera e donde não transpirava nem o sopro de seu halito ; algumas folhas rumorejavam em torno, e a casca do pau rangeu ao roçar do corpo que sentava-se.

     Como não bastasse esse tenue arruido para despertar o madraço, o rapaz quebrou uma haste de cipó. Com a folha que deixara em uma das pontas começou á fazer cocegas nas largas ventas rombas do Moirão, que dava com as mãos ás tontas para enxotar a mosca impertinente.

     Afinal abriu o dorminhoco as palpebras, pestanejou com a claridade do dia, esfregou os olhos e ficou pasmado á encarar com o Arnaldo, que se estava rindo, mui lampeiro, ali por cima delle, commodamente sentado em um ramo da arvore.      — Salve-o Deos, Aleixo Vargas ; disse o sertanejo em tom jovial. Que somnata tão regalada, homem ! Apostaria que anda tresnoitado, si não soubesse que você em ferrando á dormir é como giboia quando engoliu veado.

     — Hanh !... bocejou o outro extremunhando. E' você, Arnaldo ?

     — Acorde de uma vez, amigo !

     — Onde estou eu ?... Ah ! já sei ; arranchei-me aqui para madornar um pedaço e pegou de mim uma tal bebedeira de somno que estou que não posso comigo.

     — Pelo que mostra não teve lá muita saudade do seu catre da fasenda, Aleixo Vargas, que logo na noite da chegada veio por-se de poleiro cá pelas mattas !

     — Não sabe que despedi-me do Campello ?

     — Ainda não encontrei quem me desse tal nova ; respondeu Arnaldo, illudindo os termos da pergunta.

     — Então você não tornou á casa depois da chegada ?

     — Depois da chegada do capitão-mór ainda lá não fui.

     — Pois é como lhe digo, Arnaldo ; deixei d'uma vez o homem, por não poder mais aturá-lo.

     — Que lhe fez o capitão-mór, Aleixo Vargas, que tanto o amofinou ?

     — São contos largos, amigo Arnaldo, que levariam muito tempo, e eu já sinto cá pelo estomago uns repiques de fome que estão chamando ao almoço.

     — Guarde lá seu segredo, Aleixo Vargas ; e que não lhe coma a lingua. Quanto ao almoço descanse. Aqui temos no meu farnel para quebrar o jejum.

     — Sempre o conheci precavido, rapaz. Não é atoa a fama que você tem e que eu bem experimentei, quando cheguei á este excommungado sertão.

     — Não é tanto assim. Alí está você, Aleixo Vargas, que é uma barra. Não foi debalde que lhe puzeram o nome de Moirão.

     — Ah ! isso cá de pulso, não se falla ; que ainda não encontrei homem para mim, nem touro tão pouco. Eu dizia, rapaz, era acerca da ligeireza, que, á ser verdade o que se conta, não há por toda esta ribeira quem lhe deite poeira nos olhos.

     — De que serve a ligeireza, se não é para fugir ? A força é melhor, não lhe parece, Aleixo ? disse o rapaz á sorrir.

     — Sem duvida. A força é tudo neste mundo ; disse o Aleixo entufado de sua jactancia.

     — Tambem eu penso assim ; ainda que todos os dias vê-se um caroço de chumbo deitar ao chão o homem mais valente, e uma broca derrubar o tronco mais grosso.

     Moirão levantou os ombros desdenhosamente :

     — São casos que acontecem.

     Arnaldo foi á sua malhada no jacarandá e tornou com o alforge em que tinha as provisões. Consistiam em carne de vento, farinha e queijo do sertão.

     O mancebo foi expedito na refeição e comeu com a rapidez a que o havia acostumado sua vida agreste. O Moirão, porém, almoçou pausadamente, como quem se desempenha de negocio grave ; e de vez em quando conversava com uma borracha de vinho que trazia á cinta e era a sua inseparavel.

     — Não molha a guela, rapaz ? Olhe que esta farinha assim á secca é uma bucha, capaz de entalar á um jacaré.

     — Eu prefiro o vinho cá de minha terra !

     Proferindo estas palavras á sorrir, Arnaldo bebeu dois ou tres goles d'agua n'uma cabaça onde guardava sua provisão e com isso rematou o almoço.

     Aleixo fez uma careta de nojo á cabaça, e para dar tonico ao estomago, que se lhe tinha embrulhado com a vista d'agua, escorropichou o odre na garganta.