O Sertanejo/I/XIV
O capitão-mór encaminhou-se para a casa. Ao deitar o pé no primeiro degráo do portico, voltou-se e gritou ao sertanejo que já descia a encosta:
— Torne cá, Arnaldo.
O mancebo acercou-se outra vez do terreiro.
— Diga-me onde anda o velho Job, que deitou fogo no mato da fazenda, na tarde de nossa chegada.
Arnaldo teve um sobressalto. A tremenda collisão que elle evitara poucos momentos antes apresentava-se sob outra face.
— Asseguro ao senhor capitão-mór que não foi o velho Job quem deitou fogo ao mato.
— Sabemos do contrario.
— Juro si fôr preciso.
— Não basta um juramento suspeito, pois o velho é seu camarada ; são precisas provas que destruam a accusação.
— Quem o accusa ? Eu respondo por elle ; o sr. capitão-mór não confia em minha palavra ? disse o mancebo ressentido.
— Sabemos que Arnaldo é pessoa de bem e de verdade ; e prestamos a maior fé ao seu depoimento. Mas todas as vozes se unem para lançar ao velho Job a culpa do fogo ; e nós não podemos por uma simples asseveração desprezar tantos testemunhos e dispensar a devassa de um caso de aleivosia que por sua gravidade demanda punição exemplar, afim de que se não repita, e ponha em risco as vidas tão preciosas de nossa esposa e filha. Sem falar do desprezo das ordens terminantes que temos dado.
— Aleivosia houve, sr. capitáo-mór, porém não foi Job quem a cometteu, nem teve parte ou sciencia della.
— Que assim fosse... Elle que se apresente e confie de nossa justiça, que não lhe faltará, como jámais faltou aos que á ella recorreram.
Calou-se Arnaldo. Tinha fé na retidão do capitão-mór ; mas tambem conhecia seus rigores e escrupulos. Que provas podia exibir contra a suspeita geral corroborada pelo testemunho de todos os embusteiros, de quem era o velho mal quisto ?
Elle sabia a verdade ; mas como communica-la a outrem, quando não tinha della mais documento do que um rasto, aquella hora já apagado ? Demais, para desviar de Job a imputação, era necessario lança-la á Aleixo Vargas, o autor da maldade.
Campello observava a perplexidade do sertanejo e cravando nelle os olhos interrogou :
— Arnaldo sabe onde está o velho Job ?
— Sei, sr. capitão-mór ; respondeu o mancebo com a voz firme e sustendo francamente o olhar do velho.
— Vae dizer-nos aonde ; ou vae traze-lo á nossa presença para evitar apparato de prisão e suspeita de fuga.
— Nem uma nem outra coisa posso eu, meu senhor.
— Por que não póde ?
— Não sou denunciante, nem esbirro.
— Mas é um rapaz estonteado. Manda-lhe o capitão-mór Gonçalo Pires Campello...
Arnaldo interrompeu-o.
— Por Deus e por sua filha, á quem o senhor mais quer neste mundo, peço-lhe que me ouça primeiro, sr. capitão-mór.
Campello reteve-se e disse :
— Falle, que ouviremos.
— Minha vida lhe pertence, sr. capitão-mór, já lh'o disse. Se lhe apraz, póde tirar-m'a neste momento, que não levantarei a mão para defende-la, nem a voz para queixar-me. Essa ordem, porém, que vossa senhoria quer dar-me ; se meu pai ressuscitasse para mandar-me cumpri-la, eu lhe diria : não ! Rogo-lhe, pois, pelo que tem de mais caro, que não exija de mim semelhante sacrificio, para não me collocar na dura necessidade de o recusar.
— Atreve-se a desobedecer-nos ? disse Campello, contendo a borrasca prestes á desabar.
— Se vossa senhoria obrigar-me.
— Pois manda-lhe o capitão-mór Gonçalo Pires Campello que vá immediatamente buscar o velho Job e traze-lo aqui á nossa presença.
O velho proferiu estas palavras com a solenidade de que elle costumava revestir-se nas occasiões graves, e com o olhar que fazia tremer a vista aos mais valentes.
Arnaldo, em cujo semblante perpassou uma sombra de melancolia, levantou a cabeça e cruzou o olhar sereno com o irado lampejo do velho :
— Ao sr. capitão-mór Gonçalo Pires Campello, digo-lhe eu, Arnaldo Louredo, que não !
O fazendeiro estendeu a mão para travar do braço do mancebo ; porém este retraiu-se de um salto e collocou-se em distancia.
— Como amigo, podia fazer de mim o que bem quisesse. A' força, não !
Foi então que a ira terrível do velho fez explosão, estalando como a cratera de um rochedo vulcanico ao arremessar a lava.
— Agrela !
Este brado que elle repetiu tres vezes uma sobre outra abalou os ares, estremecendo a casa e reboando pelos ecos da montanha.
O ajudante, que já vinha aproximando-se, acodiu e o terreiro encheu-se de homens d'armas, trabalhadores e escravos, que haviam corrido ao brado do fazendeiro. Todos elles tinham avistado de longe o capitão-mór, que se voltara para chamar o ajudante, e o Arnaldo em pé junto ao banco da oiticica.
— Agarre-me este atrevido ! gritou Campello ao Agrela que sahia á seu encontro. Quede ?
Ao voltar-se o capitão-mór não vira mais Arnaldo e debalde buscou-o com a vista.
— Eu o vi, acodiu Agrela, perto deste banco.
— Onde metteu-se então ?
— Daquí não sahiu, que tambem nos o enxergamos ali, e ninguem o viu passar ; observou Manoel Abreu.
— Procurem-n'o ! bradou novamente Campello, em um segundo accesso de colera.
Arnaldo tinha-se effectivamente sumido, e de uma maneira incomprehensivel. Visto por todos que haviam primeiro acorrido e que asseguravam ainda tel-o encontrado no terreiro, desapparecera de repente como uma sombra que se houvesse dissipado.
Entre os que se cançavam na pesquisa estava o João Coité que disse com um ar triunphante :
— Não querem acabar de convencer-se que o capeta do rapaz é feiticeiro !
Já á esse tempo haviam sahido ao terreiro D. Genoveva e a filha, inquietas pela irritação do fazendeiro, cuja causa vieram á saber ali, e muito as penalisou, principalmente pela razão da Justa.
Nenhuma dellas, porém, se animava naquelle momento á fallar ao capitão-mór que passeiava de um para outro lado, pensando no desapparecimento de Arnaldo.
Veio Agrela communicar a inutilidade da pesquisa.
— Ejle não está aquí e tambem não sahiu, porque além de não o ter ninguem visto fugir, não ha rasto nem vestígio de sua passagem.
O terceiro accesso de ira foi ainda mais terrivel que os outros :
— Pois vão desencoval-o ainda que seja no inferno e tragam-n'o vivo ou morto. O capitão-mór Gonçalo Pires Campello não seja dono da Oiticica, nem pise mais a soleira de sua porta, si...
Não acabou o velho de proferir o formidavel juramento, que fez tremer quantos o escutavam. D. Flor alçando-se para cingir o pescoço do pai, com a mão mimosa fechou-lhe a bocca murmurando-lhe ao ouvido :
— Por sua filha, que bebeu o mesmo leite que elle, não jure, meu pai.
O velho quedou-se um instante, ao cabo do qual travando a mão de D. Flor caminhou com ella para a casa. Chegado á um aposento interior onde ninguem o podia vêr, desabafou sua ternura pousando-lhe na face um beijo. Depois vieram ao encontro de D. Genoveva, que os chamava para o almoço.
Não tardou que apparecesse a Justa, afflicta com o que tinha acontecido e ainda mais com as consequencias que dahi podiam resultar. Faltando-lhe o animo para apparecer naquella occasião ao capitão-mór, esperou que sahissem da meza.
— Que foi o que aconteceu, meu Jesus de minha alma ? disse a sertaneja, correndo para D. Flor. Não foi sinão castigo, minha filha.
— Castigo de que, mamãi Justa ?
— Do pecado da soberba em que ei cahi esta manhã enchendo-me daquelle filho e da protecção de Nossa Senhora da Penha de França. Nunca a gente se deve gabar do favor de Deus e dos Santos ; mas deve-se fazer ainda mais humilde para merecer a sua graça. Foi o que me ensinou o sr. padre Telles e eu não fiz caso, para agora ser bem castigada.
— Quem pecou por soberba não foi você, Justa, mas seu filho que chegou a desobedecer ao sr. Campello, coisa que até hoje nunca se tinha visto nesta fazenda disse D. Genoveva.
— Como isto foi, minha Mãe Santíssima, é que eu ainda não sei ! Elle que adora o sr. capitão-mór, e daria a vida para servil-o, como é que havia de faltar-lhe com o respeito ? Só se foi alguma tentação do inimigo !
— Ou estouvamento de rapaz, que é o mais certo ; tornou D. Genoveva.
— Arnaldo sempre foi de genio arrebatado ; disse D. Flor ; mas são uns impetos que passam logo, porque elle tem bom coração.
— E agora, senhora dona, o que vai ser de meu filho, se não me valer com sua intercessão e mais a de meu querubim ?
— O sr. Campello, você bem sabe, Justa, quando diz uma cousa hade-se fazer por força : ninguem o arreda d'ali. O melhor é você ir ter com seu filho e trazê-lo à presença do meu marido para pedir perdão da desobediencia e cumprir com o que elle mandar. Assim conte que não lhe acontece nada, porque elle era muito amigo do defunto Louredo e também de seu pai.
— Pois eu vou fazer o que me diz a senhora dona. Agora onde o acharei, a esse filho de meus pecados ?
D. Flor sorriu-se.
— Mande mamãi bebé procural-o, que ella dá com elle.
— É mesmo !
Foi-se a Justa. D. Genoveva tornou ás lidas da casa, que depois de tão longa ausencia reclamava mais que nunca o seu governo, para voltar ao arranjo e ordem em que ella costumava trazel-a.
Flor tinha destinado essa manhã para abrir seus bahús e tirar os enfeites e galantarias de que a tinham accumulado, durante a estada no Recife, a ternura de sua mãi e a generosidade do pai.
Para ajudal-a nessa tarefa e gozar do prazer de admirar aquellas bonitas cousas, chamou Alina ; e ambas dirigiram-se á direita do edificio, onde ficavam seus aposentos.
Havia de ser então mais de nove horas da manhã. O sol, ainda ardentissimo apezar dos annucios do inverno, dardejava no céo do mais puro azul, em cuja immensidade não se descobria nem um esgarço de nuvem ou tenue vapor. Magestosa serenidade do clima tropical, em que aliás se ostenta a pujança dessa natureza em repouso, e se pressente a violencia de suas commoções, quando percutida pela tempestade.
Já a alegria e animação que sempre traz a manhã nossa estação ardente, ia se dissipando ; e começava a calma da soalheira, que infunde no sertão indefinivel melancholia.