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O Sertanejo/I/XIII

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EXPLICAÇÃO.

     O sertanejo curcou-se e beijou a mão ao fazendeiro, costume patriarchal já em voga no sertão e que elle praticava por um impulso d'alma, pois habituara-se desde a infancia á respeitar no velho Campello um outro pae, além do que lhe déra a natureza.

     Arnaldo e Agrela trocaram fria saudação. Havia entre ambos um affastamento, que já o capitão-mór havia percebido com pezar, pois desejava ligar entre si os dois mancebos, como os trazia unidos em sua affeição.

     O ajudante foi arredando-se á feição de retirar-se.

     — Onde ides, Agrela ? perguntou Campello.

     — Ali, ao quartel !

     — Pois ide ! disse o capitão-mór acenando-lhe com a mão.

     O velho sentia que ia cometter uma fraqueza e não queria testemunha.

     — Então, qu'é da onça ?

     — La se ficou no mato.

     — É de bom acomodar ; tornou o capitão-mór á rir.

     — Ah ! somos conhecidos velhos ; respondeu o rapaz no mesmo tom.

     — Como então ?

     — É uma historia.

     — Pois conta lá.

     — Si não tem que contar !... Coisas do mato.

     — Vae dizendo.

     — Eis o caso. Essa dona e seu companheira appareceram aqui na visinhança haverá um anno. Como eu ando sempre á bater por estes matos, parece que os importunava ; e então assentaram de acabar-me a casta. Não dava mais um passo, que não andasse no rasto algum dos dois camaradas.

     — Não eram máos os pagens !

     — Nâo eram, não ; mas á mim é que não me serviam, que sempre foi meu costume andar só, pois é o meio de andar seguro. Então passei á saber dos taes amigos o que pretendiam deste cearense.

     — Ah ! E que responderam ?

     — Si elles ignoram as regras da cortezia... No que afinal tem desculpa, pois nunca foram á côrte, nem ao menos ao Recife. Portaram-se como dois villões. O que elles queriam, bem adivinhava eu; era apanharem-me descuidado e torcerem-me o gasnete. Mas eu transtornei-lhes o plano.

     — Vamos a ver a façanha.

     — Não foi nenhuma, sr. capitão-mór ; manha sim, houve alguma. Um dia que o macho sahiu á carniça mais longe, lá para as bandas do Quixeramobim, aproveitei a ocazião, e fui visitar a moça que tinha ficado na furna deitada com os dois cachorrinhos.

     — Entraste na furna, rapaz ?

     — Pois não havia de fazer as minhas cortesias á dona ? Já se sabe, fui no rigor : bem encourado, com o pellego enrolado no braço esquerdo, e a minha faca flamenga pa mostra.

     — E a cuja como te recebeu ?

     — Com toda a bizarria, lá isso não se pode negar. Assim que me viu, rangeu os dentes, levantou-se á prumo sôbre os quadris, e estendeu a munheca, talvez para dar-me um aperto de mão. Eu, que sou desconfiado, fui mettendo-lhe um palmo de ferro entre as costellas, com o que a bicha deu-se por satisfeita.

     — Mataste-a ?

     — Era minha intenção. Mas quando eu ouví os cachorrinhos á grunhirem como se estivessem chorando, e reparei nos olhos que lhes deitava de longe a onça estendida no chão ; lembrei-me que ella era mãi e ia deixar os filhinhos ao desamparo. Então não sei o que se passou cá em mim, que tirei leite da janaguba, curei a ferida e fui buscar agua na cacimba para dar-lhe á beber e aos cachorrinhos.

     — Bem mostras que és um bom filho, Arnaldo, e nem podia ser d'outra sorte com a mãi que Deus te deu. Mas vamos ao resto da historia, que está curiosa.

     — Mal tinha acabado de agazalhar a dona, ahi chega o marido.

     — Devias esperar por elle.

     — Não digo que não ; mas o tal, ou vinha arrenegado da vida, ou era de genio arrebatado, pois não quis saber de explicação : foi juntando e pinchou-se-me em cima com uma gana de trss dias. Espetou-se na ponta da faca ; mas não se contentou com uma sangria ; foi só á terceira, que emborcou no chão e toca á estrebuchar.

     — Estou vendo que também não a mataste, e que não é outra senão a tal de ainda agora.

     Arnaldo sorriu, mas a expressão jovial que animou-lhe a fisionomia retocou-se de um laivo melancolico.

     — Não sei o que é viverem duas criaturas da mesma vida, e unirem-se para sempre ; nem o saberei nunca.

     — Por que não o hasde saber, Arnaldo ? Para que tenho criado em minha casa, como filha, a Alina, senão para dar-te nella uma boa mulher, como tu a mereces ? Justa ainda não te disse ?

     — Morrerei só, como tenho vivido ; replicou o mancebo com vivacidade. Mas isso não impede que eu sinta quanto hade ser triste ver-se uma creatura desamparada do seu companheiro, daquelle que a deffende e a proteje. Foi o que eu senti, naqulela ocasião : os filhos á grunhirem outra vez ; a mãe á gemer ; elle á arquejar que me cortava o coração ; e no meio de tudo uns quebrados de olhos tão ternos que ninguem diria fossem daquella ralé carniceira. Afinal de contas, eis-me feito cirurgião e enfermeiro dos feridos e criador dos cachorrinhos.

     — Ahi está o segredo.

     — Durante um mez, todos os dias era meu divertimento curar os meus enfermos, e levar-lhes a agua e a comida, sobretudo peixe, de que elles gostam muito, e não faz má dieta.

     — E acabaram por ficar amigos ?

     — Amigos não, camaradas. Elles sabem que eu não os temo, e que tambem não lhes quero mal ; porisso me respeitam. Uma vez, porém, iamos brigando.

     — Ah ! isso é que estava para perguntar-te : pois sempre tive esse animal na conta do mais traiçoeiro que se cria nas mattas, com excepção da cobra.

     — No fim da secca passada, um dia que faltou-lhes a carniça e a fome apertou, tiraram-se de seus cuidados e fizeram as contas ao meu Corisco.

     — E então ?

     — Ficaram com a água na boca e as boas lambadas de relho, que metti-lhes no costado.

     — Deste-lhes de relho ? E elles aguentaram, como um sendeiro, sem respingar nem tugir ? Então não admira que se deixem puxar pela orelha, como ha pouco.

     — Não deixaram de resmungar seu tanto ; mas lembraram-se do que lhes tinha acontecido, e preferiram o couro ao ferro, no que mostram bem a casta que são. Desde ahi é aquella mansidão que o Sr. capitão-mór viu.

     — Ora está a cousa explicada, sem milagres, nem feitiçarias. Ao cabo tudo vem dar nisto : que és um bravo, Arnaldo, valente como as armas !

     — Valentia é a do se. Capitão-mór que enxotou dez homens armados só com um chiqueirador.

     O capitão-mór sorriu-se dessa recordação de uma das mais famosas entre suas façanhas ; e erguendo-se do banco onde estivera sentado, passeou um momento, enquanto compunha novamente com sua ordinaria expressão de gravidade a phisionomia que durante a narrativa do mancebo se havia desarmado.

     — Bem : agora saibamos outra coisa. Estivemos ausentes cerca de quatro mezes de nossa fazenda da Oiticica pela necessidade de prover a certos negocios na cidade do Recife. Durante nossa ausencia consta-nos que Arnaldo abandonara a fazenda ; e tornando nós com o favor de Deus á nossa casa no sabbado, só hoje ao quarto dia de nossa chegada nos apparece. Que quer isto dizer, Arnaldo ?

     — Tambem andei em viagem ; respondeu o mancebo concisamente, mas com mostras de respeito.

     — Sua obrigação era ficar na Oiticica, d'onde ninguem se arreda sem nossa licença.

     — Uma vez já pedi permissão ao sr. capitão-mór para dizer-lhe que eu não pertenço ao serviço da fazenda. Não sei lidar com os homens ; cada um tem seu genio : o meu é para viver no mato.

     Tornou o Campello ainda mais fechado :

     — Quer dar em bandoleiro, como esses que ahi andam ao cosso pelo sertão, acabando o gado das fazendas, à fiusa de matar barbatão, e praticando toda casta de maldades em suas correrias ?

     Arnaldo ergueu a fronte com um assomo de escandalo contra a injuriosa suspeita.

     — O sr. capitão-mór não póde temer isso de mim. Conhece-me bem.

     — Conheço, disse o velho fazendeiro, descançando solemnemente a larga mão sobre o hombro do rapaz, á título de reparação da injustiça.

     — Vivo de pouco e Deus me dá de sobra. Não careço do alheio, nem o cobiço. Tão pouco se ligará com bandoleiros quem não póde acostumar-se á gente de melhor avença. Procuro o sertão, e moro nelle para estar só. Mas fique vossa senhoria descansado, que se não presto para camarada ou vaqueiro, quando se tratar de o defender e acatar, á si e aos que lhe são caros, pode contar que não tem servidor mais pronto, nem mais devoto. Minha vida lhe pertence, é dispor della como lhe approuver.

     O capitão-mór se aproximara e com a voz tocada pela comoção murmurou, enquanto com um movimento rapido da mão direita abarcava ao mancebo o peito esquerdo :

     — Pois eu não sei que é de ouro este coração ?

     Recobrou-se, porém, imediatamente ; outra vez formalisado, dirigiu-se á Arnaldo, guardada a gravidade e a distancia.

     — Agradecemos a sua dedicação, Arnaldo ; mas uma fazenda, e ainda mais, rica e importante como a Oiticica, não dispensa um regime, que mantenha quantos á ella pertencem na obediencia e respeito do dono. Essa regra e disciplina não se guarda sem muito rigor, sobretudo para hibir os maus exemplos, que são motivo de escandalo para os bons e de excitação para os maus.

     — Porisso é que torno a pedir ao sr. capitão-mór que me tenha como estranho á fazenda. Sou um vagabundo que ahi anda pelos matos, e que não pede sinão que o deixem viver nestes campos onde nasceu.

     O capitão-mór prosseguiu sem referir-se ás palavras do mancebo.

     — Na tarde de nossa chegada, quando Manuel Abreu, nosso feitor, deu-nos parte de sua ausencia, Arnaldo, eu disse na ocasião que lhe tínhamos concedido a nossa licença. Depois considerei que tal não houve ; deu-se equivovo de nossa parte. Mas não podiamos voltar atraz, sem quebra de nossa palavra ; e pois ficou sendo verdade que eu consenti na sua viagem.

     Campello fitou no semblante do rapaz um olhar, que ia sublinhar sua palavra.

     — Esta cirscunstancia fortuita nos privou de usar da severidade precisa para reprimir a desobediencia a nossas ordens ; e desta arte poupou-nos um desgosto, pois Arnaldo sabe quanto prezamos o filho daquelle que foi nosso vaqueiro e amigo, o bom Louredo, que Deus tenha em sua santa paz.

     Arnaldo travou da destra do capitão-mór e beijou-a com fervor, estreitando-a ao seio. Esquivou-se aquelle á effusão.

     — Esperamos que não aconteçam mais faltas como esta, que nos ponham na dura necessidade de esquecer a affeição que nos merece. Sabe, Arnaldo, que lhe destinamos o logar que serviu seu pai, de nosso primeiro vaqueiro. Só demoramos a realização desta vontade, enquanto não completava Alina os desoito annos, para que tivesse uma boa carreira, capaz de entender com o serviço da queijaria e o trato das crias. Agora vamos avisar á D. Genoveva para que trate das bodas que se podem fazer pela Paschoa.

     O semblante do sertanejo manifestava o intimo confrangimento d'alma ao ouvir aquellas palavras do capitão-mór. Foi com um tom secco e incisivo que retorquiu :

     — O que posso asseverar ao sr. capitão-mór é que não serei nunca nem vaqueiro de fazenda, nem marido de mulher alguma.

     — Hade ser !

     — Outro Arnaldo sim ; este não !

     — Hade ser, e quem o diz é o capitão-mór Gonçalo Pires Campello ; insistiu o velho com a pachorra sonolenta que precedia as formidaveis explosões de sua colera.

     O primeiro impulso de Arnaldo foi desabrir-se contra a resolução que o velho acabava de annunciar com a formula solemne da vontade inabalavel. Mas elle queria e venerava aquelle velho com amor de filho. Reservando-se para defender mais tarde e no momento preciso sua liberdade, conteve-se nesta occasião. Se opuzesse á tenacidade do fazendeiro seu caracter indomavel, o choque havia de ser terrivel.

     Embora não esperasse evitar o rompimento; todavia seu desejo era affasta-lo quanto fosse possivel, e muito mais naquelle momento em que tinha o coração ainda comovido pelas provas de affeição do velho.

     Limitou-se o sertanejo á dizer :

     — Sabe Deus o que será.

     — Com elle o deixo, e rogue-lhe, Arnaldo, que o faça um homem para honrar a memoria de seu pai.