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O Sertanejo/II/IX

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Depois de combinar com Jó o que lhes restava a fazer, Arnaldo deixou o velho no lugar da emboscada e voltou ao sítio onde havia ficado a comitiva.

Alí chegou, como vimos, ao terminar o almôço e contou ao capitão-mór a pega do Dourado.

Quando, na ocasião de montarem os convidados para a volta, êle apresentou o baio a D. Flor, já tinha destruído completamente o efeito das artes do cigano. Desapareceu nessa ocasião; mas para acompanhar por dentro do mato a comitiva e observar melhor o jôgo do Fragoso.

Viu o sinal dado. O cigano que também oculto no mato espreitava aquele sinal, soltou o canto da saracura e disparou a correr, passando perto de D. Flor.

O baio não o seguiu como êle esperava; mas seguiu-o Arnaldo que breve o alcançou e, derribando-o da sela, puxou-o para dentro da espessura, onde o deixou peado como os companheiros.

O sertanejo imitou então o canto da saracura, enquanto Jó espantava os cavalos emboscados, que partiram à desfilada na direção do Bargado.

Marcos Fragoso, ouvindo a senha convencionada e o tropel dos animais, acreditou que D. Flor estava em seu poder, e despediu-se arrogantemente do capitão-mór, dando aviso aos companheiros para que o seguissem.

Entretanto D. Flor e Alina transpunham o lugar da emboscada sem o menor acidente, e D. Genoveva moderava a marcha de seu cavalo para reunir-se ao marido e saber dele a razão da repentina partida do Ourém e seus companheiros.

Ao passar por diante de Arnaldo oculto na espessura, D. Flor perguntava a Alina.

— Onde estão suas flores, menina?

— Que flores, Flor? retorquiu a moça, brincando com a palavra.

— As que nos trouxe o Marcos Fragoso.

— Deixei-as ficar, respndeu Alina com indiferença.

— Pois das minhas fiz um aderêço! Olhe! disse a gentil donzela, apontando para os pingentes escarlates que lhe ornavam o colo e os cabelos. Não parecem rubís.

— São muito galantes; mas eu prefiro esta que você me deu, tornou Alina sorrindo e mostrando a umbela que Arnaldo colhera, e que ela trazia ao seio.

D. Flor ficou séria e fustigou o baio, que partiu a galope.

O capitão-mór havia alcançado D. Genoveva; e referia-lhe agora quanto se passara com o Marcos Fragoso, desde o pedido que êste lhe fizera da mão de D. Flor, até à recusa formal e terminante que recebera.

D. Genoveva, quando pela primeira vez, quinze dias antes, conversara com o capitão-mór acêrca dêsse particular, mostrara-se inclinada ao sobrinho Leandro Barbalho, e até dera a entender que não tinha em bom conceito ao Marcos Fragoso.

Desde, porém, que o capitão-mór decidira-se por êste, ela como fiel espôsa, habituada a identificarse completamente com a vontade do marido, passou a considerar Marcos Fragoso já como o noivo de sua querida Flor.

O mais ardente desejo da boa mãe era vera filha casada, embora quando pensava nisso estremecesse com a idéia de uma separação por mais breve que fosse. A êsse respeito, porém, a tranquilizava o capitão-mór, que estava resolvido a impor ao futuro genro a condição de viver debaixo do mesmo teto.

O desfecho da pretensão do Marcos Fragoso devia, pois, entristecer a D. Genoveva, que viu adiado o casamento por ela tão ardentemente desejado. A boa senhora não compreendia o motivo que tivera o capitão-mór para recusar um genro que êle mesmo, de sua própria inspiração, havia escolhido entre outros e preferido a todos.

Mas ela acatava as decisões do marido, e não tinha o costume de discutí-las, pois depositava a maior confiança na prudência, como no amor, daquele a quem havia unido o seu destino.

A pergunta que fez não teve outro fim senão saber do motivo que determinara a deliberação do marido para melhor compenetrar-se dela.

— Por que foi então que o despachou, sr. Campelo?

— Porque atreveu-se a pedir D. Flor.

— Não é costume?

— Nossa filha, D. Genoveva, não é para ser pedida, como qualquer moça aí do mundo. Não foi para isso que nós a criámos. Eu tinha-me lembrado dêsse Fragoso, mas êle adiantou-se e com tamanha arrogância, que já se julgava noivo.

Passava de meio-dia, quando o capitão-mór chegou com sua família à Oiticica.

D. Flor dirigira o cavalo para baixo da árvore a fim de apear-se na sombra. Arnaldo a seguira, e saltando em terra, ofereceu-lhe o ombro como um escabêlo.

A donzela estava então encantadora. A agitação do passeio e os raios do sol tingiam-lhe as faces de uns laivos de púrpura, os olhos tinham um brilho vivo, e as lindas flores escarlates entrelaçadas em suas negras e bastas madeixas, formavam-lhe um toucado gracioso. Dir-se-ia que não eram flores, mas os sorrisos feiticeiros de seus lábios de carmim, que lhe serviam de jóisas para a fronte e de broche para o seio do roupão.

Arnaldo, vendo aquelas flores que ainda mais formosa tornavam a donzela, sentiu o coração traspassado.

— Tire estas flores! disse êle, ajoelhado junto ao estribo e com a voz suplicante.

— Por quê? perguntou a donzela admirada.

— Têm veneno! balbuciou o sertanejo.

— Devéras! tornou D. Flor com um riso de mofa.

Arnaldo ergueu-se de um ímpeto, e antes que pudesse dominar o violento impulso de sua alma, arrancara da cbeça e do seio da donzela as flores, que arrojou ao chão, e esmagou com a ponta da bota, como se fossem um réptil venenoso.

D. Flor, que já apeava-se, foi tomada de uma surpresa dolorosa; e pasma com aquela audácia, racíu sôbre a sela. No primeiro assomo de sua indignação não se lembrou quem estava diante dela e não cia alí senão um homem que tivera a insolência de tocá-la.

A haste do chicotinho, brandida por sua mão irritada, vibrou no ar; mas a donzela tivera tempo de dominar êsse ímpeto de cólera. Retraiu-se em uma altiva dignidade.

— Arnaldo!

O sertanejo permanecia imóvel, e sofreu em silêncio, impassível, mas resoluto, a repreensão que provocara.

— Não esqueça o seu lugar, Arnaldo, continuou D. Flor com severidade. A ternura que tenho à sua mãe não fará que eu suporte estas liberdades. A culpa é minha, bem o vejo. Se não lhe desse confianças, tratando-o ainda como camarada de infância, não se atreveria a faltar-me ao respeito. Lembre-se, porém, que já não é um menino malcriado; e sobretudo que eu sou uma senhora.

— Minha senhora?... disse Arnaldo, carregando nessa interrogação com acerba ironia.

— Sua senhora, não, tornou D. Flor com um tom glacial; não o sou; mas também, a-pesar-de nos termos criado juntos, não sou sua igual.

Arnaldo ajoelhou-se de novo como para oferecer a espádua à moça; e disse-lhe provocando-a com o olhar.

— Se a ofendí, castigue-me; não tem na mão um chicote?

— Não, e arrependom-me de meu primeiro movimento. Mas, se outra vez esquecer-se do respeito que me deve, Arnaldo, eu me queixarei a meu pai, para que êle o corrija.

Ditas estas palavras no mesmo tom severo e altivo, a donzela acabou de abater o sertanejo com um olhar de rainha e afastou-se, encaminhando o animal para a casa. Pouco adiante saltou da sela, e foi reunir-se à mãe que também acabava de apear-se.

Esta cena passou-se rapidamente, com um aparte ao movimento geral da desmonta. Entretidos consigo, os outros não perceberam a súbita ação de Arnaldo ao arrancar as flores, e o incidente que sobreveio.

Erguera-se o moço sertanejo com arrogância ao ouvir o nome do capitão-mór com que o ameaçou D. Flor, e acompanhou a donzela com um olhar de desafio, até que ela entrou em casa.

Então Arnaldo saltando de novo no sela, meteu as esporas no Corisco e disparou da ladeira abaixo.

Correu direito ao Bargado; ia resolvido a desafiar o Marcos Fragoso, matá-lo para vingar nele a humilhação que acabava de sofrer, e depois deixar-se matar para assim punir-se do crime de haver ofendido o melindre de D. Flor.

A fazenda do Bargado estava deserta, e Arnaldo apenas alí encontrou a família de um vaqueiro inválido, que ficara para guardar a casa. Disse-lhe a mulher que o capitão Marcos Fragoso tinha partido uma hora antes para Inhamuns levando toda a sua comitiva e mais o José Bernardo com a gente da fazenda.

Desconfiou Arnaldo dessa partida precipitada, e receou que ela escondesse algum novo embuste. Desde que um perigo ameaçava a tranquilidade da família a quem se devotara e a segurança de D. Flor, o sertanejo esquecia-se de si, para só ocupar-se com a defesa dos entes que estremecia.

Seu primeiro cuidado foi dirigir-se ao lugar da emboscada. Já não havia alí viva alma; todos os bandeiristas haviam desaparecido; mas ainda viam-se pelo chão as peias de rêlho, cortadas a ferro.

Eis o que sucedera.

Marcos Fragoso ao despedir-se do capitão-mór, tomara à direita, e reunido diante ao Ourém e mais companheiros, ganhara o atalho, que rodeando o alagado devia pô-los a caminho do Bargado. Êle conhecia perfeitamente êsse desvio, por tê-lo percorrido na véspera com Onofre.

Esperava o moço capitão alcançar pouco além dos Baús o Onofre e a escolta, que êle acreditava conduzirem D. Flor, conforme suas recomendações e o plano anteriormente combinado. Tudo correra como se esperava; e já ouvia-se a pequena distância o tropel da cavalhada.

Na desfilada em que iam, não era possível travar conversa; mas Ourém pôde trocar êste curto diálogo.

— Que é isto, primo Fragoso? Refrega de castelhanos?

— É a princesa que levamos.

— Ah! bem me queria parecer!... Pois vamos lá como D. Gaiferos:

Finca esporas no cavalo Que o sangue lhe faz saltar; Ei-lo que corre, ei-lo que voa, Ninguém o pôde alcançar.

E ferrando por sua vez os acicates no cavalo, Ourém lá se foi no encalço do primo.

Afinal, quando saíram da mata para o descampado, pôde Marcos Fragoso acistar a cavalhada que ia-lhes na dianteira cêrca de cem braças. Não foi pequena a sua surpresa e dos companheiros notando nos animais selados e arreados a completa ausência de cavaleiros.

Pensou Fragoso que os animais tivessem arrancado por surpresa, deixando Onofre e a escolta desmontados. Enquanto o José Bernardo dava cêrco aos cavalos, voltou êle sôfrego ao sítio da emboscada, esperando chegar ainda a tempo de tomar D. Flor ao arção e fugir com ela.

Diante dos bandeiristas estirados no chão, e atados de pés, mãos e queixos, êle entendeu que tinha sido burlado pelo capitão-mór; e isto o encheu de furor.

Onofre e seus companheiros já tinham tornado a si do torpor, que produzira a infusão do tinguí; mas estavam bambos, e sobretudo corridos de vergonha por terem caído no laço, êles que o vinham armar. É o que chamam virar-se o feitiço contra o feiticeiro.

Nenhum deles sabia explicar a esparrela em que fôra apanhado. Apenas à lembrança ainda atordoada de alguns acudiu aquele travo especial do vinho e da aguardente, donde tiravam uma suspeita ainda obscura. O Moirão, porém, que sentira arderem-lhe as costas da mão, e logo que lhe cortaram as correias vira a cruz traçada pelo Arnaldo, benzeu-se e adivinhou que alí andavam artes do rapaz.

— Não tem que ver, murmurou. Se êle anda de pauta como Tinhoso.

A única pessoa que podia referir os pormenores da tramóia era a Rosinha, que não ficara completamente sopitada com o tinguí. Mas Jó tivera o cuidado não só de atá-la de pés, mãos e queixos, como Arnaldo fez aos outros, mas de embrulhar a cabeça de modo a tapar-lhe os olhos.

Assim nada tinha visto, e o que ouvira, pouco adiantava: era o canto da saracura, o arranco da cavalhada e o tropel da comitiva que passava tranquilamente pelo caminho.

Marcos Fragoso ficou tão exasperado com o êxito da emboscada, que proibiu aos seus vaqueiros cortarem as correias dos pulsos e artelhos dos bandeiristas, e intimou-lhes esta ordem cruel:

— Surrem-me já esta corja de biltres, para ensinálos a não serem basbaques! Deixarem-se agarrar como preás no fojo!

O Daniel Ferro, que era mais vezeiro nessas emprêsas e sabia que no sertão ninguém, ainda o mais esperto, se livrava de tais embrechadas, fez uma observação prudente e assisada.

O capitão-mór zombara do Onofre, peando-o a êle e a seus companheiros, como a um magote de bêstas; mas quem assegurava que não passasse a demonstrações mais enérgicas? Podia resolver-se da afronta que êste lhe fizera tentando roubar D. Flor.

Nesse caso de um ataque súbito, careciam de gente brava e destemida. Não seria com êsses homens, irritados por um castigo injusto e infamante, que poderiam contar para resistir ao braço forte do capitão-mór, o qual fazia tremer ao mais valente.

Ourém e João Correia apoiaram as razões de Daniel Ferro; e Marcos Fragoso cedeu.

— Podemos seguir, senhor capitão? perguntou José Bernardo depois de cortar as correias que peavam os bandeiristas.

— Daqui para Inhamuns! disse o Marcos Fragoso, voltando-se para os companheiros. Não ponho os pés no Bargado senão depois de tirar a minha desforra.

Despachou o capitão ao José Bernardo para seguir do Bargado com a bagagem; e êle partiu dalí com os companheiros e a escolta em direitura à sua fazenda das Araras, situada à margem do rio das Flores.

Arnaldo examinava o sítio e estudava o rasto da comitiva, quando apareceu-lhe Jó, que o esperava, contando que êle voltasse alí. O velho enterrado nas rumas de folharada, tinha assistido à cena anterior; e narrou-a fielmente ao sertanejo.

— Partiu para Inhamuns, concluiu êle. Mas volta breve; e com maior bando de gente armada.

— Cá me achará, disse o sertanejo simplesmente, como se êle, só, bastasse para derrotar o bando dos inimigos.

Deixou Arnaldo ao velho na gruta e seguiu para a casa. Perto do tombador avistou o Nicácio, que descia a-cavalo, de maca e rede na garupa, alforges no arção e todos os petrechos do sertanejo em viagem.

— Até a volta, amigo Arnaldo. Quer alguma coisa para o Ouricurí?

— Está de viagem, Nicácio?

— Vou levar uma carta do sr. capitão-mór ao sobrinho Leandro Barbalho. E o negócio é de apêrto, que vou aforçurado. Deu-me quatro dias para a ida e outros tantos para a volta. Até lá.

— Boa viagem, Nicácio!

— Se puder de vez em quando dar um pulo lá pelo roçado...

— Fique descansado.

— É favor! gritou o viajante, que já desaparecia ao longe de galope.

Arnaldo continuou para a casa. Aquela súbita partida do Nicácio, e a carta que levava, o deixaram preocupado. Tinha um pressentimento que novo perigo ameaçava a sua felicidade, e quando ainda o primeiro não estava dissipado.

Aproximando-se oculto pelo arvoredo, viu de longe D. Flor recostada à sua janela.

Era já sobretarde. A sombra que vestia êsse lado do edifício, concorria talvez para tornar ainda mais merencória a expressão da donzela. Seus olhos límpidos passavam por entre a folhagem rendilhada de uma aroeira e iam imergirse no azul do céu, onde estampava-se o disco prateado da lua. Alí ficavam imóveis, fixos, como dois raios do astro meigo e saudoso da noite, que se estivessem embebendo em seu seio e enchendo da luz do céu.

O coração de Arnaldo confrangeu-se. Fôra êle quem perturbara a serena placidez daquela fronte angélica; fôra êle o autor daquela tristeza.

Saltou em terra, ajoelhou-se humildemente, e de mãos postas, com todo o fervor do crente quando ora à divindade, pediu perdão a D. Flor da mágoa que lhe causara. Teve ímpetos de punir-se alí mesmo diante da donzela, do atrevimento com que lhe ofendera o pudor e o altivo melindre.

Chegou a levar a mão ao punho da faca; mas lembrou-se que sua vida era precisa naquela ocasião em que novos e talvez mais sérios perigos ameaçavam a casa da Oiticica.