O Sertanejo/II/VIII
Oculto nas vizinhanças do Bargado, Jó espiava a casa da fazenda e seus arredores.
O velho tinha a astúcia de um índio e talvez a adquirira no trato com os indígenas durante a robustez da idade e a aumentara com a experiência de sua vida quase selvagem.
Achou êle na mata uma grossa casca de pereiro, já despegada do tronco morto, e vestiu-a como um estôjo que o escondia desde a cabeça até os pés, deixando-lhe ver por entre as rachas do córtice. Êste aparelho, que êle completou com as ramas verdes da árvore, permitia-lhe transportar-se de um ponto para outro, sem que o percebessem. Era uma moita ambulante.
Arnaldo recomendara especialmente ao velho que observasse os movimentos de Luiz Onofre e da sua bandeira; pois suspeitava da vinda dessa gente, embora fosse tão natural que o Fragoso, tendo de atravessar o sertão de Inhamuns ainda infestado de índios bravos, se munisse de uma escolta maior do que trouxera do Recife.
Jó notou na véspera da montearia que Luiz Onofre saíra do Bargado com o Moirão e mais um camarada que levava um grande surrão ou alforge de couro, e só tornou à casa por tarde. Ao passar, o bandeirista dizia a um dos acólitos:
— Esta madrugada, quando o galo cantar a segunda vez, todos a-cavalo. Ouviu, Corrimboque?
— Não tem dúvida, sr. Onofre.
— E até lá, moita.
Concluiu o velho que de alguma expedição se tratava para a madrugada seguinte; e não era a montearia, pois havia recomendação de segrêdo. Quando Arnaldo veio à noite, êle comunicou-lhe o que sabia.
— É uma emboscada, disse o velho.
— A quem? perguntou Arnaldo.
— Ao Campelo. O capitão-mór é soberbo; ofendeu ao moço, êste vinga-se.
— Mas êle pretende a filha por espôsa?
— Então é que o pai a recusou.
— Ainda não, afirmou Arnaldo.
Foi combinado entre ambos um plano. Arnaldo tinha de acompanhar o capitão-mór. Jó seguiria o Onofre para saber o fim da expedição. No caso de verificarem-se as suspeitas, daria sinal a Arnaldo pela percussão da terra.
Era porisso que durante o trajeto Arnaldo tinha o ouvido alerta.
A princípio inclinou-se ao alvitre de prevenir o Campelo; porém receou que o tomassem por visionário, ou que fosse êle o motor de algum injusto desabrimento do capitão-mór contra o Fragoso. Seu pundonor repelia essa idéia de chamar em auxílio de seu ódio o poder do dono da Oiticica; êle, Arnaldo, não carecia de ninguém mais, senão de si, para combater seu inimigo.
Não obstante, quando viu a pequena escolta com que saíu o capitão-mór, cerrou-se-lhe a alma e quis falar. Mas dominou-o ainda o mesmo receio.
— Em todo o caso, para salvar D. Flor, basta o Corisco! pensou consigo anediando a longa crina do cardão que rinchava.
À hora aprazada a bandeira estava montada e partiu do Bargado, saindo os cavaleiros de casa a um e um para não fazer tropel. Atrás do último foi Jó escanchado em um poldro que o Arnaldo lhe deixara para êsse fim.
Luiz Onofre era um produto dêsse cruzamento de raças a que se deu o nome de coriboca. Assim como a sua tez representava a fusão das três côres, a alva, a vermelha e a negra, da mesma sorte o seu caráter compunha-se dos três elementos correspondentes àquelas variedades. Tinha a avidez do branco, a astúcia do índio, e a submissão do negro.
O Fragoso não podia achar melhor instrumento para seu projeto; e até, segundo rezava a crônica de Inhamuns, não seria êsse dos primeiros furtos ou raptos de moça que o Onofre fizesse por conta do patrão, o qual tinha fama de grande corredor de aventuras.
Ao primeiro alvorecer chegou o bandeirista com sua gente ao ponto designado. Depois que prenderam os cavalos e ataram-lhes o focinho com embornais para impedílos de rinchar, seguiram todos o cabo, que os levou para dentro do cerrado.
— Corrimboque!
— Pronto!
— Você fica no mundéu lá do outro lado para cortar a corda; e o Raimundo do lado de cá. Raimundo!
— Rente!
— Chegue cá! Está vendo êste angico vergado ao chão? Pois assim que me ouvir gritar ai, é cortar a corda, senão corto-lhe eu as orelhas. Está entendido?
— Não quero destas graças comigo, sr. Onofre.
— Cá o amigo Aleixo Moirão, não precida que lhe diga; fica ao pé do pau...
— E lá vai a trabuzana! acrescentou o Moirão, fazendo gesto de quem mete as mãos para empurrar.
— Quando for tempo! advertiu o Onofre. Onde está o Beijú?
— Às ordens!
— Lembra-se bem do canto da saracura? Do José Cigano?... Vamos a ver lá isso!
O Beijú soltou um guincho que imitava perfeitamente o canto da saracura, e que estrugiu longe pela mata a dentro.
— Está direito. Quem falta agora? Rosinha!
— Que tem com ela? perguntou uma trêfega rapariga adiantando-se.
— Já sabe, moça. Quando o cavalo da dama passar, é de um pulo escanchar-se na garupa e segurar bem a dita, e tapar-lhe a bôca para não gritar.
— Fica ao meu cuidado.
— Bem; tudo está corrente. Agora, moita; vamos esperar que passe a comitiva, para cuidarmos cá da pessoinha. Quem piar, tem contas comigo. Toca a deitar. Corrimboque, vá ver se os cavalos estão com os focinhos bem apertados pelos embornais, e leve-os para bem longe.
Restabeleceu-se de todo o silêncio; e os emboscados permaneceram coisa de meia hora em completa mudez até que ouviu-se ao longe o tropel dos animais. Eram as duas comitivas já reunidas, que se aproximavam, e passando por diante do esconderijo, afastaram-se rapidamente.
— Agora temos umas três horas por diante. Podemos quebrar o jejum. Amigo Moirão, mande buscar os alforges, e sobretudo as borrachas que devem estar bem apoiadas, pois foi esta a ordem do sr. Marcos Fragoso, nosso capitão e o mais chibante fidalgo de todo êste Pernambuco.
— Alto lá, que o capitão é cá do Ceará, nascido em Inhamuns, na fazenda das Araras, onde morava o defunto coronel, antes de vir para o Bargado, disse Raimundo, acudindo pela terra natal.
— Cá para mim que sou de Pajeú de Flores, tudo é Pernambuco, Raimundo, quer tu queiras, que não!
— Pois eu, se não estivesse aquí no serviço do senhor capitão, lhe contaria uma história...
— Cabra mofino!
— Mas chegando no Bargado, há de ver de que pau é a canoa.
— É de pau que precisa ser descascado, Raimundo, e quero eu ter êste gôsto.
Muito a-propósito voltaram Moirão e Corrimboque, trazendo os alforges cheios de comidas e os odres retesados de vinho português e de cachaça da terra. Essa vista aplacou a resinga do Onofre com o seu bandeirista.
Estendeu-se um couro no chão e os camaradas trataram de baldear o conteúdo dos alforges e odres para as vasilhas dos estômagos. Êsses descendentes dos caboclos seguem a mesma regra daqueles: não guardar comida, nem fome, para o dia de amanhã. Assim não carregam a primeira, nem esperdiçam a segunda.
A comezaina corria no meio das pilhérias e galhofas dos bandoleiros.
— O tal sr. Fragosinho não cochila, gente! disse o Beijú. Lá no Inhamuns quanta diabinha bonita havia foi direitinho para o jiquí. Agora vai meter-se em filha de capitão-mór!...
— Que tem lá isso? perguntou com tom arrebitado a Rosinha, que estava de lado sentada em um galho sêco e almoçava laranjas e passoca em uma cuia. Por ter pai de farda vermelha, não é mais bonita do que as outras.
— De que certa faceira de meu conhecimento, não é; isso juro eu, menina.
Rosinha sorriu mostrando dois rocais de pérolas, finos dentes orientais. Tinha ela todo o busto e uma parte do rosto envolto por um mantéu escarlate, que lhe servia de capuz; mas o que se entrevia e o que se adivinhava da fisionomia como do talhe, denunciava encantos de fascinar.
Eram além daquele sorriso perlado, uns olhos negros e aveludados que cintilavam sob o capuz como estrêlas em noite procelosa, uma cintura de vespa, e um pé arqueado que aparecia por baixo da orla da vasquinha parda.
— Raimundo, homem, passa para cá a mandureba! Olha o diabo, como escorropichou!
— Não sei que tem êste vinho, hoje! observou Moirão, enxugando a bôca do sôrvo. Acho-lhe assim um travo como de engaço! Não sentem?
— Deixe ver!
— Eu já lhe tinha sentido.
— Há de ser da borracha.
— E não é só o vermelho; a branca também tem o mesmo gôsto.
— Mas vão escorregando; que dizem? Ainda nenhum se engasgou que eu visse.
— Então, Rosinha, não tomas um trago também?
— Para beber à sua saúde, sr. Onofre.
— Pois vá lá. À nossa, feiticeira!
— André, dá um pulo lá embaixo, homem, e tira as mochilas dos cavalos, para que almocem também! Vão correr mais do que você, que já forrou a tripa, cabra velho.
A essa recomendação do Corrimboque levantou-se o André e dirigiu-se ao lugar designado com o seu alforge de couro cheio de carne e farinha.
Terminada a comezaina, o Onofre passou nova revista à sua gente, designando a cada um seu pôsto e insistindo nas primeiras recomendações.
O lugar escolhido para a emboscada não podia ser mais azado. Era uma brenha, defendida ao sul por um serrote íngreme. O caminho passava entre duas rochas a que pela forma convexa tinham dado o nome de Baús. À direita ficava o alcantil; à esquerda o bamburral que terminava logo adiante em um vasto alagado. Para tornar impossível aos cavaleiros o trânsito pela espessura, o Onofre havia levantado no meato uma perfeita estacada entre a rocha e o pântano.
Assim a comitiva na volta não tinha outra passagem senão a estrada; e, trancada esta, seria obrigada a fazer um longo rodeio, ou a retardar a sua marcha por algumas horas enquanto abria caminho. Desta circunstância, tirara o Onofre todo o partido para a cilada.
Tecera o bandeirista uma grade de rêlho e a atravessara diante dos dois penhascos, amarrando as pontas em árvores novas, de um e outro lado. Vergara depois essas árvores como costumam fazer os caçadores nas armadilhas; e a teia ficou estendida no chão coberta de terra e fôlhas sêcas.
Por artes do cigano incumbido de enfeitiçar o baio, conta Onofre que a filha do capitão-mór será a primeira a passar pelos Baús. Apenas ela se ache do outro lado, que o Corrimboque e o Raimundo cortarão as cordas das árvores; e estas voltando à posição natural, levantarão consigo a grade que deve fechar a estrada.
Então, separada a moça da comitiva, ainda que tenham passado com ela algumas pessoas, é fácil ao bandeirista consumar o rapto. A Rosinha saltará na garupa do baio; com uma das mãos tapará a bôca de D. Flor para impedí-la e gritar e com a outra a estreitará ao peito, enquanto o Onofre bemmontado, tomando o beio pela brida, disparará com êle e a donzela.
Para reforçar a grade de couro, preparou Onofre outra barreira. É uma ramalhuda braúna, já serrada pelo tôpo e que a um empurrão do Aleixo Vargas cairá sôbre o caminho, trancando-o com uma sebe viva e emaranhada.
Enquanto o capitão-mór e sua gente esbarrarem nessa embrechada, o Onofre tem tempo de pôr-se a salvo com a donzela e recolher-se ao Bargado.
Antes de concluir o novo exame da emboscada, sentiu o bandeirista a língua trôpega:
— Diabo dêste vinho do reino!... Não sei que mistura lhe deitaram!... Querem ver que pôs-me, meio lá, meio cá? Eu me entendo é com o patrício!
— Não é, sr. Onofre. Êste vinho tinha alguma coisa com certeza. Também eu estou com as pernas bambas, de uns sorvos que dei na borracha. Pois a minha conta no Minho era meio quartilho ao almôço.
Reparou o Onofre que toda a sua gente já andava estirada, uns pelo chão juncado de fôlhas sêcas, outros pelos galhos rasteiros, a curtir a carraspana.
— Olhem esta corja de bêbados! Como roncam!... E mais é que vou fazer o mesmo! Não posso comigo! O tal sumo de uva não me toa!... Corrimboque, fique de espreita e acorde-nos, quando chegar... quando for... você sabe...
Não concluiu Onofre. O torpor que lhe invadira o corpo sopitou-o completamente, e nem lhe deu tempo de escolher o lugar onde acomodar-se. O corrimboque, se ainda o ouviu, não pôde responder-lhe de pesada que tinha a língua; e o Moirão já mugia como um touro.
Nessa ocasião os cavalos começaram a rinchar sentindo talvez a aproximação de algum animal da mesma espécie.
A única pessoa que resistiu ao súbito letargo foi Rosinha, de-certo por ter bebido apenas uns goles do vinho. A rapariga vendo toda aquela gente sopitada em profunda modorra, assustou-se, tanto mais quanto também sentia desfalecimento.
Não foi longa, porém, essa perturbação; passada ela, conservou-se alerta a fim de acordar os companheiros ao primeiro sobressalto.
Ergueu-se então dentre um monte de fôlhas sêcas a alta e magra estatura de Jó. Investigando com rápido olhar a cena, o velho esgueirou-se com a sutileza de uma sombra por entre a folhagem e foi surdir a uma distância de cem braças.
Alí, segurando um grosso madeiro, começou a bater na terra com o movimento compassado de um pilão.
Às primeiras pancadas, Rosinha sobressaltou-se e tratou de acordar Onofre; mas o bandeirista não deu acôrdo de si e os companheiros ainda menos. Quando a rapariga já não sabia o que fizesse, cessou o estrépito que ela atribuiu à corrida de algum boi.
Entretanto Arnaldo acabava de soltar o Dourado, e lembrando-se dos rinchos que ouvira, e que denunciavam a presença de cavalos bridados, tomou êsse rumo, suspeitando que a bandeira do Onofre andasse por aqueles sítios.
Nisso percebeu uma como vibração que saía da terra e reconheceu imediatamente o sinal de Jó, que tinha aprendido dos índios a comunicar-se por aquele meio seguro através de grandes distâncias.
Instantes depois o moço sertanejo encontrava-se com o velho, que o levou ao lugar da emboscada.
— Estão dormindo?
— beberam tinguí.
O velho referiu então rapidamente a Arnaldo o que fizera.
Enquanto os bandeiristas agachados no mato espiavam a passagem da comitiva, Jó fôra aos alforges, tirara um caneco, enchera-o de aguardente em um dos odres; e esmagando entre os dedos ramas de tinguí, macerou-as depois dentro do espírito. Quando lhe pareceu que a tintura estava bastante forte, dividiu a aguardente pelas duas borrachas e teve o cuidado de as sacolejar.
Sabendo que a gente da escolta fôra tinguijada pelo velho, Arnaldo estremeceu:
— Envenenados? Todos?...
— Tontos apenas. Deixa-os dormir descansados, e daquí a uma hora acordarão um tanto moídos e nada mais.
— E a rapariga?
— Bebeu pouco.
— É preciso amarrá-la a ela e aos outros por segurança.
Jó apoderou-se de Rosinha embrulhando-lhe a cabeça na mantilha. Arnaldo foi à várzea, matou um boi e o esfolou com a rapidez e destreza que tem neste, como em todos os misteres de seu ofício, o vaqueiro cearense.
O couro foi imediatamente cortado em correias, com que o sertanejo peou de pés e mãos a toda a escolta, inclusive a Rosinha, passando em seguida, êle e Jó, a amordaçá-los pelo mesmo sistema.
Na ocasião em que ligava os pulsos do Moirão, Arnaldo traçou-lhe com a ponta da faca uma cruz nas costas da mão direita, e tão ferrado estava no sono o minhoto que não sentiu o gume do ferro cortar-lhe a epiderme.