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O Sertanejo/II/XV

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Já tinham soado no sino da capela as últimas badaladas do toque de recolher.

Por toda a fazenda da Oiticica, sujetia a um certo regime militar, apagavam-se os fogos e cessava o borborinho da labutação quotidiana. Só nas noites de festa dispensava o capitão-mór essa rigorosa disciplina, e dava licença para os sambas, que então por desforra atravessavam de sol a sol.

Era uma noite de escuro; mas como o são as noites do sertão, recamadas de estrêlas rutilantes, cujas centelhas se cruzam e urdem como a finíssima teia de uma lhama assetinada.

A casa principal acabava de fechar-se; e das portas e janelas apenas escapavam-se pelos interstícios umas réstias de luz, que iam a pouco e pouco extinguindo-se.

Nesse momento um vulto oscilou na sombra, e coseu-se à parede que olhava para o nascente.

Era Arnaldo.

Resvalando ao longo do oitão, chegara à janela do camarim de D. Flor, e uma fôrça irresistível o deteve alí. No gradil das rótulas rescendia um leve perfume, como se por alí tivesse coado a brisa carregada das exalações da baunilha. Arnaldo adivinhou que a donzela antes de recolher-se, viera respirar a frescura da noite e encostara a gentil cabeça na gelosia, onde ficara a fragrância de seus cabelos e de sua cútis assetinada.

Então o sertanejo, que não se animaria nunca a tocar êsses cabelos e essa cútis, beijou as grades para colhêr aquela emanação de D. Flor, e não trocaria de-certo a delícia dessa adoração pelas voluptuosas carícias da mulher mais formosa.

Aplicando o ouvido percebeu o sertanejo no interior do aposento um frolido de roupas, acompanhado pelo rumor de um passo breve e sutil. D. Flor volvia pelo aposento, naturalmente ocupada nos vários aprestos do repouso da noite.

Um doce susurro, como da abelha no seio do rosal, advertiu a Arnaldo que a donzela rezava antes de deitar-se; e involuntariamente também ajoelhou-se para rogar a Deus por ela. Mas acabou suplicando a Flor perdão para a sua ternura.

Terminada a prece, a donzela aproximou-se do leito. O amarrotar das cambraias a atulharem-se indicou ao sertanejo que Flor despia as suas vestes e ia trocá-las pela roupa de dormir.

Através das abas da janela, que lhe escondiam o aposento, enxergou com os olhos d’alma a donzela, naquele instante em que os castos véus a abandonavam; porém seu pvem branca de jaspe surgisse uma estrêla. A trepidação da luz, cega e tece um véu cintilante, porém mais espêsso do que a seda e o linho.

Cessaram de todo os rumores do aposento, sinal de que D. Flor se havia deitado. Ouvindo um respiro brando e sutil como de um passarinho, conheceu Arnaldo que a donzela dormia o sono plácido e feliz.

Só então afastou-se para acudir ao emprazamento que recebera.

O aposento de Águeda ficava do mesmo lado da casa, e era o penúltimo antes do quintal, logo depois do quarto de Alina. A janela estava cerrada e escura, mas ao olhar de Arnaldo não escapou uma fita imperceptível que a dividia de alto a baixo, e que êle atinou ser o tênue vislumbre de uma candeia velada.

Águeda espreitava por essa fresta a chegada de Arnaldo, receosa de que não viesse, e impaciente com a demora. Além do interêsse da recompensa prometida pelo Onofre em nome de Fragoso, outro impulso movia nesse instante a cigana.

Era mulher, e tinha nas veias o sangue ardente do boêmio tocado pelo sol americano. O prazer de fascinar um homem e cativá-lo a seus encantos, bastaria para excitá-la; acrescia, porém, que êsse homem era um mancebo galhardo e amava outra mulher, o que dava particular sainete à aventura.

Assim prometia-se a Rosinha uma noite de emoções, que à satisfação de sua vaidade reuniria a fácil execução da trama urdida. Para disfarçar a impaciência da espera, entrou a devanear, e sorria-se pensando que no outro dia, quando se apercebessem do desaparecimento dela Águeda e de Flor, Arnaldo as seguiria com certeza, mas talvez não dosse por causa da filha do capitão-mór.

No meio dêste devaneio, avistou pela fresta um vulto parado em frente à sua janela. Ergueu-se de chofre e entreabrindo a rótula perguntou em tom submisso:

— É Arnaldo?

— Êle próprio que vem saber para que o chamou aquí, a esta hora.

— Entre! segredou a moça abrindo de todo a rótula e afastando-se para dar passagem.

— Não podemos falar aquí mesmo? tornou Arnaldo, a quem repugnava penetrar no aposento.

Águeda aproximou-se outra vez da janela e travando vivamente das mãos do mancebo, disse-lhe comovida:

— Pelo senhor eu farei tudo! Mas ando espiada. Êsse velho que me acompanhou... Se êle o visse aquí, seriam a minha perdição. Podem ouvirnos e o que eu tenho a dizer-lhe ninguém o deve saber, ninguém, senão Arnaldo.

O sertanejo em extremo admirado daquelas falas, não opôs resistência ao movimento da moça que o atraía a si, convidando-o a entrar. Apoiou-se no parapeito e saltou no aposento, onde a mão tépida de Águeda o conduziu até um estrado que havia junto ao leito.

Fechada a janela, a moça tirou a candeia que havia escondido por detrás de um baú, coberta com uma bacia de rosto, e colocou-a em cima da cantoneira, de onde alumiava todo o aposento.

Foi então que Arnaldo pôde bem admirar a beleza dessa mulher, que até aquele momento só vira de longe, ou de relance, quando ela passeava com D. Flor, em quem iam presos seus olhos.

Águeda tirara o véu de luto. Sua cabeça meneava-se airosamente agitando os bastos e longos cabelos negros, semelhante à palmeira, que embala a sua verde coma ao sôpro da brisa. O corpinho de cambraia, cerrando-lhe a fina cintura, abria-se como uma taça esvazada para mostrar o colo.

Tinha as mangas curtas, onde os lindos braços engastavam-se apenas em um molho de rendas; a saia, bordada de crivo, descia-lhe até as curvas deixando nua a extremidade de uma perna bem torneada, e o pé largara a chinela para pisar mais sutil.

Notando o olhar do mancebo que devorava os seus encantos, Águeda fez um movimento de espanto, como caindo em si, e lançou mão de uma mantilha de sêda, na qual embuçou-se com gesto vergonhoso. Depois foi sentar-se no estrado e disse erguendo timidamente os olhos para Arnaldo, em pé diante dela:

— Sente-se, aquí, perto de mim. O que vou contar-lhe é um segrêdo de que depende a minha sorte. Jura guardá-lo, Arnaldo?

— Se desconfia de mim, para que arrisca o seu segrêdo?

— Não; não desconfio, nem é preciso que jure. Sei que é generoso, Arnaldo; e não há de querer o mal de uma pobre mulher, que só tem uma culpa, a de não vencer o seu coração.

Águeda repetiu então a fábula que inventara para explicar sua vinda à Oiticica; mas desta vez inserindo-lhe particularidades do caso, acompanhadas de exclamações e lamentos, em que a arteira rapariga empregava toda a sua habilidade cômica, e jogava com os requebros dos olhos, a volubilidade do semblante e as inflexões lascivas do talhe.

As mulheres têm o talento especial dessa eloquência ouca, mas sonora, que certos homens neutros conseguem imitar. Os lábios ressoam como as cordas de um instrumento; ouve-se a música das palavras; mas o que fala é somente o sorriso e o gesto, que não fazem senão repetir o mesmo e constante desejo de atrair e fascinar.

Águeda insistia em minuciosidades puerís, repisava as mesmas coisas, contradizia-se muitas vezes; mas o que ela queria era um pretêsto para falar, e bordar com a palavra essa teia de olhados matadores e efusões irresistíveis que a aproximava de Arnaldo e estabelecia entre ambos comunicação íntima.

Porisso, memorando a morte do marido, estremecia de horror, e conchegava-se ao mancebo como para amparar-se com a sua coragem; querendo enternecê-lo, travava-lhe das mãos que apertava nas suas, transmitindo-lhes o seu fluído no toque macio e tépido; outras vezes fingindo um susto, parecia desmaiar, e como sem tino e conciência do que fazia, levava ao seio a destra do sertanejo ainda enlaçada na sua.

— Que susto, meu Deus! Veja como bate o meu coração! dizia como sufocada.

Arnaldo estava sob a influência maligna desta sedução, de que o advertia a sua perturbação, mas que êle não tinha a fôrça de repelir; porque nesse momento sua alma nobre e altiva era sopitada pelas erupções do sangue.

Aos vinte e um anos, a bêsta humana, quando revolta-se contra o espírito que a domina, é uma fera indomável, sobretudo em uma organização pujante como a de Arnaldo. A pura e casta adoração que até alí havia preservado o mancebo de pagar o tributo à matéria e o alheara dos prazeres sensuais, deixara incubar-se o desejo que fazia agora explosão.

O sertanejo já não escutava as palavras da moça, nem entendia o que ela falava. Mas ouvia-lhe a voz harmoniosa, e bebia-lhe nos olhos a beleza, que o embriagava como o suco da jurema, do qual provara uma vez na taba de Anhamum.

Quando a rapariga apertava-lhe as mãos, ou se conchegava ao seu peito, um sentimento de profunda repulsão o invadia; mas, se turbava-lhe a alma, não tinha êle fôrça para retrair o corpo. Ficava imóvel e passivo.

Terminou Águeda a sua narração, convencida de que tinha em seu poder o mancebo; mas também com o tato e experiência que possuia, conheceu que não era êle homem para ousar logo da primeira vez. Que importava? Ela supriria êsse acanhamento pela sua afoiteza; contanto que naquela mesma noite alcançasse as duas vitórias porfiadas, a de seu capricho e a de seu interêsse.

No desafôgo de sua história, Águeda abrira aos poucos a mantilha, que afinal resvalara pelas espáduas, deixando nu o colo. Foi assim que estreitou-se com o mancebo para dizer-lhe:

— Eu sou uma desventurada, Arnaldo!

— O matador de seu marido será castigado. O capitão-mór não prometeu? murmurou o sertanejo.

— Se fosse esa toda a minha desgraça! Eu já me teria conformado com a vontade de Deus. Mas, além de perder meu marido, ficar ainda sem aquilo que a mulher mais preza neste mundo, a honra?

— Quem é que a quer roubar? perguntou o sertanejo indignado.

— Um sujeito de Inhamuns, chamado Marcos Fragoso.

— Êle?

— Conhece-o?

O sertanejo acenou com a cabeça.

— Pois êsse homem jurou que havia de perder-me; e o velho que me trouxe é um espião pago por meu perseguidor. Não tendo quem me acompanhasse, fiei-me nele, que me ia entregando ao amo. Se não o enganasse fingindo-me doente e pedindo para descansar uma noite na Oiticica, estaria a esta hora perdida, Arnaldo! exclamou a moça, atirando-se ao peito do sertanejo.

— Sossegue. Aquí está em segurança! respondeu o mancebo.

— O velho já ameaçou-me!

— Atreveu-se? disse o sertanejo com um grito de ameaça.

— Ah! eu lhe suplico, Arnaldo! tornou a moça, lançando-lhe os braços aos ombros. Não lhe faça mal, seria perder-me!

E Águeda reclinou a cabeça ao seio do sertanejo. Houve um instante de silêncio em que ela ouviu as pulsações violentas dêsse coração indômito, que parecia estalar antes do que render-se.

A moça ergueu a fronte e mostrou o formoso rosto banhado de lágrimas e sorrisos.

— Não se lembra de mim, Arnaldo?... Nem sequer me viu, embora tivesse os olhos postos em mim, disse com um suspiro.

— Onde? perguntou o mancebo surpreso.

— No Icó. Quando esteve lá há dois anos. Eu o vi, Arnaldo, e desde êsse momento sentí que não era mais senhora de mim. Infeliz sina a das mulheres! Os homens ainda quando não são queridos, têm o consôlo de seguir aquela a quem amam. Nós, porém, se roubam-nos o coração, não podemos ir após êle. Casaram-me à fôrça!

A emoção embargou a voz de Águeda, que depois de breve pausa continuou:

— A sorte me trouxe à Oiticica, onde havia de encontrá-lo, Arnaldo, para amparar-me contra o meu perseguidor.

— Não receie, que a defenderei.

— Ao seu lado nada receio, Arnaldo. Desde muito que eu lhe pertenço. Quer uma prova? Exija!

Águeda ficou suspensa, fascinando com o olhar ao mancebo, que a fitava alucinado.

— Fale!... murmurou ao ouvido de Arnaldo, unindo o seu ao rosto dele. Que prova quer? Um beijo?...

E descaíu languidamente a cabeça de modo que a bôca apinhada, roçando pela face do mancebo, veio embeber-se em seus lábios.

Ao contacto dêsse beijo ardente Arnaldo estremecera, como se visse erguer-se diante dele uma serpente, a cuspir-lhe no rosto sua baba impura. Recuou soltando um rugido surdo, e as mãos ambas impelidas por um instintivo movimento de horror, foram cerrar-se no colo da moça.

Por algum tempo o mancebo permaneceu na mesma posição, com o corpo imóvel, os braços hirtos como os braços da fôrca, os olhos fechados, sentindo nas mãos as retrações convulsivas da mísera mulher as quais êle tomava pelo colear da serpente. As vascas da agonia indicavam-lhe que o réptil ainda vivia, e êle esperava.

Êsse pesadelo o dominou de tal modo que fugiu-lhe a lembrança do lugar onde se achava e dos fatos que se haviam passado momentos antes.

Afinal abriu as pálpebras; e viu espavorido que tinha nas mãos a infeliz mulher, com os olhos esbugalhados e a língua saída pela bôca escâncara. Rangerm-lhe os dentes de frio, e das mãos trêmulas escapou o corpo que rolou pelo chão.

De um pulo ganhou o mancebo a janela e desapareceu.

No dia seguinte, ao chegar de sua jornada, Jó encontrou o sertanejo espojado no chão da caverna, falou-lhe, mas êle fitou os olhos e não respondeu. Era a alucinação que durava ainda. A mesma cena da noite debuxava-se em sua alma com formas estupendas e monstruosas.

O velho conhecia estas procelas d’alma; e sabia que, à semelhança das outras que conturbam os elementos, elas só passam quando o céu descarrega os vapores de que estão pejadas as nuvens.

Jó deixou, portanto, Arnaldo ao seu delírio e submergiu-se no passado, onde vivia mais do que no presente, êle que já não tinha futuro.

Decorreram as horas. Era já sobretarde, quando sentiu-se na caverna uma ligeira vibração. Jó e Arnaldo ergueram a cabeça de chofre, e olharam-se. Ambos por um simultâneo movimento deitaram-se no chão e escutaram.

— Cavalos! disse Jó.

— Montados,a crescentou Arnaldo.

— Trinta.

— Eu contei trinta e um.

— Teu ouvido é melhor.

— Uma escolta a galope!...

Proferindo estas palavras, Arnaldo saíu da caverna seguido pelo velho.

Sua primeira idéia foi que Marcos Fragoso voltava para atacar a Oiticica; mas o número dos cavaleiros que se aproximavam o dissuadiu dessa idéia.