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O Sertanejo/II/XXI

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Uma descarga mais próxima tinha alcançado a escolta da Oiticica, e a um e outro lado do capitão-mór tombaram as pilhas de combatentes.

Foi o Xavier um dos que mordeu o pó. Ferido mortalmente, o infeliz estrebuchou no chão; mas soerguendo-se logo sôbre o cotovêlo, gritou em uma golfada de sangue:

— A absolvição, senhor padre! Pela graça de Deus.

Justa e outras mulheres transidas de horror, mas tocadas de comiseração, tomaram o moribundo nos braços e o levaram ao sacerdote, que ficou perplexo.

— Êle não pode esperar, disse D. Flor erguendo-se.

O capelão suspendeu a celebração do casamento; e tomando os santos óleos administrou a extrema-unção ao morimbundo.

— Está acabado, padre Teles? bradou o capitão-mór, voltando-se para o altar.

O sacerdote levantou de novo a ponta da estola, e travou da mão de Leandro Barbalho primeiro; depois recebeu a de Flor; mas não chegou a uní-las ambas, porque nesse momento a do noivo fugiu-lhe.

Soara rápido sibilo; uma seta fina e breve, cortando os ares, picara a artéria cervical do sobrinho do capitão-mór. O mancebo ainda ergueu a mão esquerda, supondo-se mordido por uma abelha; mas não a levou ao pescoço. Caíu fulminado.

No meio do esturpor causado por esta morte, ninguém tinha notado o salto de Arnaldo, que em um arremêsso feroz sacara a faca da bainha, e correu sôbre o altar. Ao baque do corpo, êle estacara; mas ainda com o golpe alçado.

Foi D. Flor quem primeiro o avistou, quando as mulheres que a cercavam, cedendo afinal ao terror, fugiam espavoridas, e D. Genoveva abraçada com ela, a puxava para a casa.

— Arnaldo! disse a donzela, resistindo à sofreguidão materna e acenando ao sertanejo que se aproximasse.

— Recolha-se, Flor, exclamou Arnaldo, recobrando afinal o seu ânimo pronto e resoluto.

— Meu lugar é aquí perto de meu pai, disse ela, mostrando o capitão-mór que não poupava os tiros de seus bacamartes. Morreremos juntos.

— Não, Flor, não morrerá.

— Fique aquí perto de mim, Arnaldo. Se meu pai cair antes que uma bala me leve, quero que me trespasse o coração com sua faca. Jure-me, Arnaldo! Jure-me, que não cairei viva nas mãos dessa ralé.

— Nem viva, nem morta, eu o juro, Flor.

Enquanto Justa, a um aceno dele, agarrava D. Flor e a levava à casa, seguida de D. Genoveva, Arnaldo galgando o muro, soltou o grito de guerra do chefe Anhamum, e arrojou-se ao combate, montando no corisco, oculto alí perto à sua espera.

Levantou-se além, em tôrno da linha inimiga a pocema dos Jucás; e uma longa fila de selvagens ornados de penas de canindés e araras coleou pelo campo semelhante a uma serpente monstruosa que enroscasse em seus elos os bandeiristas do Fragoso.

Pouco depois Agrela à frente de sua escolta avançou pela várzea e foi cortando a bandeira do João Correia, como a cunha de um machado que penetra no cerne do madeiro e o fende.

Os assaltantaes, que já estavam a tomar de escalada o terreiro da Oiticica, atacados pela retaguarda e metidos entre dois fogos, recuaram em desordem atropelando-se.

Quando o capitão-mór e Arnaldo investindo caíram sôbre êles, a derrota foi completa. O sertanejo desforrava-se do tempo que perdera, imóvel no terreiro, e pelejava por dez. Seu bacamarte esquentou a ponto de inflamar a pólvora com o calor; então arrancando o arcabuz de um inimigo que sucumbiu, nomeou-o como uma clava.

Fragoso batia-se também com uma sanha de leão. Já os outros fugiam à rédea sôlta, que êle e o Daniel Ferro ainda sustentavam o choque do inimigo; mas quando as fôrças contrárias refluiram todas sôbre êles, não puderam mais suster o ímpeto, e por sua vez abandonaram o campo.

Enquanto o Campelo com Arnaldo e Agrela acossava os fugitivos, e o chefe Anhamum com seus índios despojava os cadáveres de que estavam os campos juncados, D. Genoveva tornando do assombro causado pelas útimas cenas, deu ordem às escravas que fossem buscar o corpo de seu sobrinho Leandro Barbalho.

Elas obedeceram; mas o corpo não foi encontrado e ninguém sabia explicar o fato. A velha Filipa que espiava por uma seteira, dizia ter visto um diabo carregando o morto e persignava-se. Mas a descrição que ela dava do tal diabo que tinha chifres amarelos, e chamas a saírem-lhe do corpo, era de um índio bravo com cocar e trofa de penas.

Foi só por tarde que o capitão-mór voltou de perseguir o inimigo e não coltou senão obrigado pela fadiga de sua gente que pelejava desde o romper do dia, e também pela estafados cavalos. Mas o orgulhoso fazendeiro deixou rastejadores para descobrirem a pista do Fragoso; e jurou que em poucos dias se poria a caminho para arrasar a fazenda das Araras nos Inhamuns, e agarrar o atrevido onde quer que êle se escondesse.

A poucos passos da fazenda, Arnaldo viu Jó ao longe, sentado em um tôco de pau negro do fogo e com os olhos submergidos no azul do céu.

— Por que tardaste, Jó?

— Aquele homem não te pertencia enquanto a sorte pudesse mudar seu destino. Esperei para ver se Deus mandava uma bala que o levasse.

— Sua vida não corre perigo.

— Sua vida, não; foi sua felicidade que mataste.

— Êle não ama D. Flor.

— Ama sua liberdade, filho.

Arnaldo ficou pensativo; êle sabia que amor é êsse da independência, a melhor aura do coração brioso.

— Não te desconsoles, filho; é preciso que os homens se devorem entre si, para que a terra caiba à raça de Caim.

O velho absorveu-se de novo em sua cogitação; e Arnaldo dirigiu-se à Oiticica, onde o capitão-mór já tinha chegado, e achava-se no meio de sua família, depois de haver trocado as efusões do mútuo contentamento.

A recordação da morte de Leandro Barbalho anuviara a alegria que em todos excitava o triunfo inesperado em tão árduas circunstâncias como aquelas em que se achara a fazenda. Mas essa mágoa esqueceu naquele instante de ventura para voltar depois.

O capitão-mór já sabia pelo Agrela de tudo quanto Arnaldo fizera para prevenir o assalto e rechaçá-lo com vantagem. Assim, vendo aproximar-se o sertanejo, êle foi ao seu encontro, e travando-lhe da mão, veio apresentá-lo à mulher e à filha.

— D. Genoveva, aquía está quem salvou-nos. A êle devemos todos a vida, Flor.

— Mais que isso, meu pai; a felicidade de estarmos agora aquí reunidos, e a satisfação de ver castigados aqueles que nos insultaram.

— É assim. Arnaldo, nós queremos dar-lhe uma prova de nossa gratidão pelo serviço que nos prestou. Peça o que quiser.

— O sr. capitão-mór promete dar-me o que desejo? perguntou o sertanejo singelamente.

— Não prometemos, e nem juramos. Está feito! O capitão-mór Gonçalo Pires Campelo não é quem manda aquí neste momento; fale, Arnaldo, para ser obedecido.

O sertanejo estremeceu. Uma vertigem passou-lhe pelos olhos, que êle cravou no chão. Afinal recalmando a emoção que lhe tinham causado as palavras do capitão-mór, respondeu já calmo e com voz segura:

— Peço a mão de Alina.

— Essa lhe pertence, Arnaldo, criei-a para ser sua mulher, disse o capitão-mór.

Um leve desmaio perspassara o formoso semblante de D. Flor. Quanto a Alina, sentira-se como envôlta por uma chama; a onda, que refluira do coração, abrasando-lhe as faces, turbou-lhes os sentidos.

— Não peço a mão de Alina para mim, replicara entretanto Arnaldo; mas para um coração nobre que a merce; para o ajudante Agrela.

— Oh!... fez o fazendeiro surpreso. Que diz a isso nosso ajudante?

— Que seria a minha ventura, sr. capitão-mór, se ela consentisse.

— E para si, Arnaldo, que deseja? insistiu Campelo.

— Que o sr. capitão-mór me deixe beijar sua mão; basta-me isso.

— Tu és um homem, e de hoje em diante quero que te chames Arnaldo Louredo Campelo.

Proferindo estas palavras em uma expansão de entusiasmo, o capitão-mór abraçou o sertanejo. Depois tomando a mão de Alina, deu-a ao Agrela.

— As bodas se farão, logo que se acabe o luto por nosso infeliz sobrinho Leandro Barbalho.

Foi cruel o desencanto de Alina quando ao tornar a si da comoção produzida pelo pedido de Arnaldo, sentiu sua mão na mão do Agrela. A linda moça fitou no sertanejo um olhar de mártir e suas pálpebras cerrando-se com uma expressão de dorida, pareciam desdobrar um sudário para velar a formosa estátua.

Agrela pressentira o que se passava n’alma de Alina, e soltando-lhe a mão, murmurou:

— Não se assuste, Alina. Juro que não aceitarei sua mão, enquanto não m’a der de sua livre vontade.

O capitão-mór e D. Genoveva recolheram-se à casa, onde os seguiu Alina; Agrela apertou a mão de Arnaldo e retirou-se também.

Era então ao pôr do sol.

Flor, que pouco antes apartara-se do grupo da família, fôra sentar-se no banco da oiticica, e engolfou-se nas cismas, que despertava a lembrança ainda tão recente dos acontecimentos que haviam agitado sua existência feliz e serena.

Arnaldo aproximou-se, e viu o mavioso semblante da donzela tocado de uma doce melancolia, como se o crepúsculo do céu que ela fitava se refletisse em suas feições gentís. Os grandes olhos límpidos e brilhantes empanaram-se; e duas lágrimas rolaram pelas faces rubescentes.

— Está triste, Flor? disse Arnaldo.

A donzela sobressaltou-se:

— Estou com pena de Leandro.

— Queria-lhe muito? perguntou Arnaldo trêmulo.

— Era meu primo; e morreu por minha causa.

— Só?...

O sertanejo interrogou o semblante de Flor, que pousando nele seus olhos aveludados, respondeu:

— Deus não quer que eu me case, Arnaldo!

No transporte do júbilo que inundou-lhe a alma, o sertanejo alçou as mãos cruzadas para render graças ao Deus que lhe conservava pura e imaculada a mulher de sua adoração.

Flor corou; e afastou-se lentamente. Quando seu vulto gracioso passou o limiar da porta, Arnaldo ajoelhando, beijou o ar ainda impregnado da suave fragrância que a donzela derramava em sua passagem...