O Sertanejo/II/XX
O primeiro golpe de luz, jorrando do oriente, foi bater de chapa na frente da casa.
Tinha nascido o sol.
No patamar, acabava de assomar o vulto majestoso do capitão-mór Campelo, que trajava a sua farda de veludo escarlate com recamos e galões dourados.
Os calções eram, como a véstia, de gorgorão branco entretecido de prata; e os coturnos do mais fino cordovão, tinham no salto vermelho a espora de ouro, e na pala do rosto uma fivela de pedrarias.
Ao lado pendia-lhe do talim bordado a espada com bainha também de ouro e copos cravejados de diamantes, como o argolão que prendia-lhe ao pescoço a volta de fina cambrais, cujas pontas caíam sôbre os folhos estofados da camisa.
O chapéu de feltro, armado como então usava-se, com a aba da frente apresilhada e um respeitável rabicho com laçada de fita amarela completavam o trajo de cerimônia do capitão-mór.
Com êle saíra D. Genoveva, também vestida de gala, com uma roupa mui rica de veludo azul, alcachofrada de ouro, e coberta de gemas preciosas desde o pente do toucado até os sapatos de setim.
Colocaram-se ambos, marido e mulher, de um e outro lado da porta, um tanto voltados para dentro como esperando alguém que devia passar.
Apareceu então D. Flor.
A donzela vinha radiante de formosura e graça. Debuxava-lhe o talhe airoso um vestido de lhama de ouro, justo e de estreita roda como usam-se agora à moda daquele tempo.
Uma petrina de setim azul recamada de rubís como uma faixa de céu estrelado, cerrava-lhe a mimosa cintura, e recortando-se em coração, debuxava um colo do mais perfeito cinzel. Eram dessa mesma teia celeste os chapins em que se engastavam as jóias de dois pés de sílfide.
A túnica de veludo carmesim, atufando-se em dois elegantes falbalás, formava a cauda que a gentil donzela arrastava com o altivo garbo de uma rainha.
O toucado alto, composto de crespos que borbulhavam uns sôbre outros como as ondas de uma cascata, era coroado por um diadema de brilhantes, que cintilavam aos raios do sol nascente, sôbre aquela fronte senhoril, como se a aurora brilhasse da terra para o céu.
Preso por um airão de ouro, o longo véu de alva e finíssima renda de escócia, todo semeado de raminhos de alecrim e flor de laranja, com lizes de ouro, descia-lhe até os pés, e arfando às auras matutinas, formava-lhe uma nuvem diáfana.
Pousava a mão calçada com luva de sêda branca no braço de Leandro Barbalho, também trajado com apuro e riqueza e pelo mesmo teor do capitão-mór com a diferença de trazer a casaca de setim verde de Macau.
A êsse tempo, padre Teles vestido com os paramentos sacerdotais, saía da capela acompanhado pelo sacristão, e ia ao encontro do capitão-mór recebê-lo e à sua família de hissope e turíbulo, como era então de rigor fazer aos príncipes e governadores.
D. Flor conduzida pelo cavalheiro, desceu os degraus da escada, e dirigiu-se ao altar, precedida pelo capelão e acompanhada pelo capitão-mór e D. Genoveva. Alina, Justa, e outras mulheres do serviço da casa tiveram licença para assistir à cerimônia.
Faziam parte do séquito e seguiam logo após do capitão-mór, três pagens negros como azevixhe, vestidos à moda antiga de pelotes de setim amarelo os quais levavam ao ombro os bacamartes do dono da Oiticica.
Os agregados da fazenda estavam surpreendidos com aquele espetáculo, cuja significação muitos ainda não atinavam. Nesse enleio, olhando a formosa donzela que passava radiantae, parecia-lhes ver a imagem de Nossa Senhora da Conceição no resplendor de sua festa.
D. Flor tinha com efeito em seu puro e níveo semblante a maviosa serenidade que se admira nos mais belos modelos da Santíssima Virgem; e que é como um ressumbro do céu.
Para a casta e altiva donzela, o ato em que tomava parte não era um casamento, nem nesse instante a dominavam os enleios que a cerimônia nupcial produz naturalmente em uma virgem, e os sentimentos que desperta êsse transe solene da vida.
D. Flor não se recordava nessa hora senão que ia vingar a sua dignidade ultrajada, e desafrontar o orgulho de seu pai escarnecido pela insolência do Fragoso.
Os mais antigos lembraram-se de D. Genoveva, quando vinte anos antes, e moça gentil como a filha, o capitão-mór Campelo a conduzira o altar, vestida com aquelas mesmas roupas e adereços de gala, que serviam agora a D. Flor.
Naquele tempo era assim, os estofos e fazendas tinham tal dura que passavam de pais a filhos e transmitiam-se por muitas gerações. Hoje em dia os tecidos merecem a mesma fé que as palavras e as ações do homem; são uns ouropéis, de um brilho efêmero, que desaparecem com as modas.
Porisso, quando na véspera Campelo comunicou sua resolução a D. Genoveva, esta não careceu para preparar o trajo de noiva da filha senão de abrir o baú de cedro forrado de primavera, onde guardava as ricas louçanias de suas bodas.
Arnaldo, arredio, contemplava esta cena como desespêro nalma. Quando D. Flor surgiu no fulgor de sua beleza, êle fechou os olhos deslumbrado, como se ostivessem ferido os raios do sol.
Vendo a mulher de sua adoração presa das chamas e estorcendo-se em horríveis convulsões, sem poder salvá-la, não passaria pelos tratos cruéos que sofreu naquele instante.
D. Flor atravessou o terreiro com o seu séquito e foi ajoelhar em frente ao altar sôbre a almofada de veludo que alí a esperava. Leandro Barbalho ajoelhou a seu lado, o capitão-mór e D. Genoveva logo após.
O sacerdote começou a celebrar, e toda a gente da fazenda ouviu devotadamente a miss, incluindo a escolta que rezava de mãos postas e com a espingarda abraçada ao peito.
Soou de repente um brado seguido muito de perto de grande alarido e de uma descarga de fuzilaria.
Marcos Fragoso, como seus amigos, tomados da primeira surpresa, não compreenderam logo a significação da cena que tinham diante dos olhos. A distância, produzindo alguma confusão no aspecto dos grupos, não lhes deixou ver claramente a posição de D. Flor ao lado do Leandro Barbalho, e as flores de laranja e ramos de alecrim, emblemas do matrimônio.
Conheceram bem que tratava-se de uma cerimônia religiosa; mas estavam longe do desfecho ordenado pelo capitão-mór, que não lhes acudiu a idéia de um casamento àquela hora, e nas circunstâncias em que se achavam o dono e moradores da Oiticica.
O respeito ao símbolo da redenção e aos sacramentos da igreja, dominou-os a todos; e os teve por algum tempo calados, imóveis, perplexos e curiosos de uma explicação daquela singular ocorrência.
Foi quando o sacerdote, depois de ter levantado a Deus, voltou-se com a hóstia consagrada e administrou a Santa Comunhão a D. Flor primeiro, e a Leandro Barbalho depois, que Fragoso teve súbita revelação do que era até alí um enigmapara êle e seus companheiros.
— Inferno! bradou em fúria. Vão casar-se.
— O jeito é disso, observou Daniel Ferro.
— Fogo! ordenou o moço capitão aos seus bandeiristas.
— E a missa? perguntou o Onofre por desencargo de consciência.
— Leve tudo o diabo! gritou Fragoso, armando o bacamarte.
— Então, minha gente, começa o fandango. Quero ver esta pontaria! Na cabeça do padre, que é a casusa de tudo. Sem padre não se faz casamento.
A bandeira do Onofre com o Marcos Fragoso à frente deu a primeira descarga, e carregou para avançar. João Correia e Daniel Ferro correram ao sítio onde tinham acampado a sua gente, para atacar de seu lado.
Quanto ao Ourém, não tendo conseguido com a sua diplomacia resolver o casus belli, reservou-se para mais tarde ajustar a paz; e dando trégua à retórica, passou a mostrar que, sendo preciso, também exercitava-se nas lides de Marte, embora preferisse as de Calíope e Mercúrio.
Ao estrondo da fuzilaria, houve no terreiro da Oiticica uma percussão geral, como era de prever; mas o capitão-mór, erguendo-se de um ímpeto e perfilando a corpulenta estatura, bradou com uma voz formidável:
— Ao fogo, os da escolta. Ninguém mais se mova. Padre, acabe a cerimônia.
Padre Teles compreendeu que sendo êle, não o agente, mas o instrumento da provocação imaginada pelo capitão-mór, devia tornar-se o alvo principal dos tiros do Fragoso empenhado sobretudo em impedir o casamento.
O nosso capelão fazendo êste raciocínio sentiu um ligeiro arrepio, e encolheu-se um tanto dentro da casula como um jabutí no seu casco, lançando de esguelha um olhar para o campo inimigo. Mas continuou a oficiar como se estivesse na capela entre grossas paredes.
D. Flor, absorta em seus pensamentos, ergueu a fronte ao estampido da fuzilaria, e fitando com sublime expressão a imagem do Cristo suspensa ao crucifixo, seu rosto iluminou-se de um sorriso angélico.
Talvez nesse instante ela entrevisse o martírio com um sentimento de bem-aventurança e pedisse a Jesús a sorte da Mãe Santíssima, espôsa e virgem, espôsa para desafrontar o orgulho paterno e a sua dignidade, virgem para voar ao céu imaculada como de lá descera sua alma.
Leandro Barbalho teve um ímpeto de impaciência. Queria-se já unido a D. Flor e desembaraçado a cerimônia religiosa para correr ao combate, e desfechar sôbre o inimigo os assomos belicosos, que o estremeciam de raiva.
— De-pressa, padre!
— Cuida êle que estou aquí num regabofe?
D. Genoveva ajoelhada junto de Flor, estremeceu com a descarga; seu primeiro movimento foi adiantar-se para cobrí-la com seu corpo, sentindo não ser-lhe dado repartir-se em duas, uma que alí ficase, e outra que seguisse o marido.
Do resto das mulheres, todas tiveram mêdo; mas quem ousaria fugir, quando o capitão-mór expunha sua própria mulher e filha ao maior perigo? Alina, quase desmaiada, caíu sôbre os joelhos; e Justa, trêmula de susto, foi colocar-se perto de D. Genoveva, para morrer ao lado de sua filha de criação.
Intimando a sua ordem, o capitão-mór com a gente da escolta acudiu a postos; e travou o combate com os assaltantes. As descargas sucediamse com rapidez de um e outro lado, cruzando um fogo rolante, que tornava-se cada vez mais mortífero à proporção que diminuia a distância entre os dois bandos.
O capitão-mór Campelo, em pé em cima do muro, disparava um após outro os três famosos bacamartes que os seus pagens carregavam logo depois do tiro, e ainda assim não bastavam ao seu braço infatigável. A violenta repercussão das armas de tão grosso calibre não abalava o porte dêsse homem possante, que formava êle só uma bateria de três bôcas de fogo.
Porisso em frente do lugar, onde se postava, abria-se um rombo na linha inimiga. Se o Fragoso, ou algum de seus capitães de bandeiras, juntava sua gente em coluna e investia contra a casa, o capitão-mór corria-lhe ao encontro; os três bacamartes vomitavam uma chuva de balas e metralhas, diante da qual o inimigo destroçado rebolcava-se para trás.
Quando os cabras do Onofre viam a bôca medonha do Jacaré, ou o clarão vermelho do Farol, e ouviam o estampido do Trovão, diziam baixinho: — ave-maria! e apalpavam-se para conhecer se tinham algum estilhaço na pele.
Mais rude e terrível combate era o que nesse instante dava-se nalma de Arnaldo.
Crivado ao solo como um poste, no meio das balas que zuniam-lhe aos ouvidos, os olhos saltando de D. Flor a Leandro Barbalho e remontando ansiosos à copa da oiticica, êle estava alí como um homem atado ao potro, e dilacerado pelo bárbaro suplício. Uma parte de sua alma, D. Flor a levava após, e debalde êle a chamava a si; outra, o horror do que via a arrancava dalí e a arrojava para longe.
Entretanto no meio do fogo rolante, o Campelo ao abaixar o bacamarte fumegante, lançava um olhar rápido para o altar e bradava em tom imperioso:
— Prossiga, padre!
O capelão não carecia de ser instigado; êle compreendia a grande vantagem que havia para todos, começando por si, em terminar brevemente a cerimônia, já que não a pudera evitar como aconselhara e era mais prudente.
Rolos espessos de fumo da pólvora, tangidos pela viração da manhã, se foram condensar no ponto do terreiro onde erguia-se o altar, e envolviam de uma bruma sinistra o grupo formado pelo sacerdote e pelas pessoas ajoelhadas a seus pés.
Essa névoa pardacenta era às vezes iluminada pelos clarões purpúreos dos tiros mais próximos ou pelas balas vermelhas que passavam sibilando e iam perder-se além, ou cravar-se no tronco da oiticica.
A-pesar-da resistência deseperada do capitão-mór e de seua escolta valente com as armas, não podia êsse punhado de homens repelir por mais tempo o assalto bem dirigido das três bandeiras do Fragoso, cada uma delas mais numerosa do que a pequena fôrça dos sitiados.
Assim Campelo já não cuidava senão de dar tempo a que se acabasse de celebrar o casamento para morrer defendendo sua família, e lavando no sangue o insulto que sofrera. A cada tiro que dava, ouvia-se sua voz retumbante gritar:
— Acabe, padre!
Nesse momento o sacerdote estendeu a ponta da estola, sôbre a qual é do rito católico unir as mãos dos noivos, no momento de proferirem as palavras sacramentais.
Ouviu-se então um frêmito de terror e a voz de Arnaldo que bradou em um grito de angústia:
— Jó...