O Sertanejo/II/XIX
Ia alta a noite.
Na casa da Oiticica reinava o silêncio. A família recolhera-se a tomar algum repouso e o capitão-mór acompanhou a mulher para mais sossegá-la, contando voltar depois para seu pôsto.
No terreiro também os homens da escolta e mais gente acomodaram-se por baixo da oiticica, ao longo da calçada; e dormiam ao relento, com a cabeça encostada ao braço, e a espingarda segura entre os joelhos.
Os vigias, colocados ao correr do muro, investigavam os corredores, para dar rebate ao menor movimento suspeito do inimigo; e Leandro Barbalho embalançava-se na rede que mandara armar nos ramos da oiticica.
A capela estava aberta; e pelo vão da porta via-se à luz mortiça de uma candeia padre Teles que alí andava dispondo os paramentos e cuidando de outros arranjos para a próxima cerimônia, no que era ajudado por um rapazinho, filho do Abreu, e que lhe servia de sacristão.
Arnaldo, que observava aqueles movimentos com uma ânsia cruel, decidiu-se afinal; e atravessando o terreiro, aproximou-se da rede do Leandro Barbalho.
— Tenho um particular com o senhor, disse-lhe o sertanejo.
— Pode falar, Arnaldo.
— Há de ser em lugar onde ninguém possa ouvir-nos.
— Onde quiser.
O sobrinho do capitão-mór seguiu o sertanejo até a extremidade do terreiro, onde já começavam as encostas da serra. Passava alí o muro do quintal, que vinha do canto da casa e galgava pelos alcantís. Por baixo ficava uma quebrada onde passava um córrego.
Arnaldo escolhera de propósito aquele sítio escuro, onde dois homens podiam bater-se a gôsto, sem temer vistas indiscretas. O que sucumbisse rolaria pelo barranco; e não deixaria vestígios que denunciassem a luta.
O sertanejo não demorou a explicação.
— O capitão-mór não tem fôrça para resistir a um assalto; só há um meio de salvá-lo.
— Qual é? perguntou Barbalho.
— Ficar D. Flor solteira.
Arnaldo era sincero. Nauqele instante de angústia que passara, êle tinha jurado não salvar a Oiticica e seus moradores, senão por aquele preço.
— Êsse meio, Arnaldo, meu tio não o afeita.
— O sr. capitão-mór tem seu orgulho; mas o senhor é que não deve consentir em um casamento que será a destruição de toda a família.
— Não tenho que ver nisso, respondeu o mancebo placidamente.
— Assim não lhe importa a desgraça de seus parentes?
— Meu tio Campelo ordenou-me e eu obedeço. Se êle me dissesse «Barbalho, vai agora mesmo àquela canalha do Fragoso, e mete-lhe o rêlho», eu iria direito ao cabra, e a primeira lambada ninguém lhe a tirava do pêlo. O que sucedia era coserem-se alí às facadas; mas o homem nasceu para morrer. Ora, meu tio quer que me case com Flor; é o mesmo, devo fazer-lhe a vontade.
Arnaldo olhou admirado e comovido para o homem que lhe falava com aquela simplicidade heróica.
— Pelo meu gôsto ficaria solteiro. Não tenho jeito para aturar mulheres; demais não é nada agradável andar um homem com a morte atrás de si, porque êsse Fragoso, quando mesmo escapássemos desta, não descansaria enquanto não me despachasse. Mas devo desafrontar as barbas de meu tio Campelo, e se fosse preciso, eu me casaria até com o diabo em pessoa.
Como o sertanejo não respondesse ainda, o mancebo concluiu:
— Portanto, amigo Arnaldo, se não há outro meio de salvar-nos, vamos dormir, que êste não serve.
Quando o sobrinho do capitão-mór afastava-se, Arnaldo, preso de uma comoção profunda, murmurou:
— Eu não posso matar êste home. Mas Flor?...
O sertanejo saltou o barranco; e rodeando o tombador até à levada por onde passara no princípio da noite, de novo atravessou o cêrco, mas desta vez para dirigir-se à caverna de Jó.
O velho dormia; despertando ao rumor dos passos de Arnaldo, viu ao tênue vislumbre que entrava pelas fendas o vulto do mancebo.
— Arnaldo!
— Preciso de ti, Jó.
— E por quem ainda ando eu, alma penada, por êste mundo, filho?
Arnaldo contou ao velho o que sucedera aquela noite na Oiticica.
— Anhamum chegou.
— Ouví os seus passos.
— Êle possue um veneno que mata, e outro que faz dormir apenas.
— Conheço.
— Tu lhe pedirás uma seta ervada que faça dormir um homem.
— E um arco.
— Sabes atirar com êle?
— Outrora eu flechava as andorinhas no ar.
— Posso contar contigo?
— Conta com Deus, filho, se êle quiser abençoar-te.
— Não te demores.
— O teu pé não tem a asa de teu desejo, como a terá o meu que é velho e cansado.
Arnaldo tornou à casa. Começava a empalidecer o horizonte. Na habitação e em tôrno dela reinava o mesmo silêncio. No acampamento do Fragoso, os bandeiristas, fatigados talvez da vigília noturna, entregaram-se ao repouso da madrugada.
Apareceu no patamar o capitão-mór Campelo que desceu ao terreiro, passou revista à sua gente, visitou os postos que se tinham estabelecido em vários pontos que se tinham estabelecido em vários pontos mais próprios para a resistência e mandou fazer nova distribuição dos cartuchos fabricados naquela noite.
Depois de ter provido à defesa, o senhor da Oiticica chamou o capelão com quem teveuma breve prática. Azoado com as ordens que recebia, o capelão redarguiu:
— Êle não sofrerá, sr. capitão-mór?
— Que remédio tem senão sofrer?
— E as consequências?
— Tem mêdo, reverendo?
— Se me desem um bacamarte, mostraria que um padre é um homem; porém assim de braços cruzados, como um criminoso que vai a fuzilar...
— Temos dito, padre Teles; trate de cumprir as nossas ordens.
O capelão chamou alguns agregados à capela, donde êsses homens conduziram para a frente do terreiro, adiante da oiticica, vários objetos cuja natureza não se podia bem distinguir por causa do escuro que ainda fazia.
À claridade da alvorada que raiava, pôde-se então divisar um altar já vestido de rica toalha de labirinto e renda, desfraldada sôbre o frontal de brocado carmesim. Na peanha erguia-se a cruz de pau-santo, com a imagem de Cristo lavrada em prata; dos lados estavam as serpentinas igualmente de prata.
Foi grande a surpresa no campo do Fragoso, quando alí deram com a novidade que ia pelo terreiro da Oiticica.
Uma alvorada de cornetas chamou a atenção de todos, cujas vistas voltaram-se para aquele ponto, e fitaram-se cheias de curiosidade no espetáculo, que se lhes apresentava.
A escolta do capitão-mór formava em duas alas de um e outro lado do terreiro, a partir dos cantos de casa, figurando as naves do altar, que ficava no centro. O menino, que servia de sacristão, acendia com o gancho as velas da serpentina, cuja flama ainda luzia na fôsca palidez do crepúsculo.
Ourém, que fôra um dos primeiros a acudir ao toque da alvorada, estava conjeturando sôbre a significação da quela cena estranha, e ouvia as observações de João Correia e Daniel Ferro:
— É alguma ladainha que vão rezar para pedir a intercessão divina, opinara o último.
— Ou talvez queiram ouvir missa, para que o Espírito-Santo inspire ao Campelo uma boa resolução. E não passe de lembrança da mulher, a D. Genoveva.
— E da filha. Que pensa? Ela já estava rendida à ternura do nosso Fragoso, e por seu gôsto as coisas tomariam outro jeito.
— Mas, senhores meus, acudiu Ourém, ladainha ou missa, não tinham êles a capela da fazenda, que lé está aberta?
— É que não caberiam dentro.
— Não é gente da fazenda que lá vem descendo? atalhou o licenciado, apontando para o Nicácio que nesse momento deixava o terreiro em busca do acampamento do Fragoso.
— Espere!... E traz carta, acrescentou Daniel Ferro, afirmando a vista.
Fragoso apareceu então. Embora tivesse acordado antes, e ouvisse o toque das cornetas, não quis mostrar-se em desalinho, e primeiro cuidou de compor-se com o apuro do costume, que não dispensava em nenhuma circunstância, quanto mais nesta em que achava-se à vista de D. Flor e podia a cada momento ser chamado à sua gentil presença.
— Então que novidades temos, primo Ourém? perguntouo capitão.
O licenciado respondeu apontando o portador que aproximava-se, e declamando com ênfase os versos que abrem um dos cantos dos Lusíadas:
Depois de procelosa tempestade, Noturna sombra e sibilante vento, Traz a manhã serena claridade, Esperança de amor e casamento.
— Digo amor e casamento, que para o nosso caso vale tanto como pôrto e salvamento; pois, que melhor pôrto para o coração batido pelo mar proceloso das paixões do que o afeto sereno da espôsa; e que melhor salvamento para as calamidades de uma guerra de família, do que transformá-la em festa de bodas, e fazer dos inimigos parentes?
Fragoso, alvoroçado com as palavras do Ourém, e com a vista do emissário que parecia confirmá-las, recebia satisfeito essa alvíçaras; mas como acontece quando se alcança a realização de um desejo muitas vezes frustrado, o mancebo ainda vacilava emacreditar na sua felicidade.
— Quem lhe diz, primo Ourém, que essa carta do capitão-mór nos trará tão boa nova?
— Diz-me aquele altar que lá está armado, primo Fragoso. O capitão-mór é soberbo e também desconfiado, cede à intimação porque não tem outro remédio; mas quer fazer as coisas de modo que pareça que é êle quem ordena, guardando-se ao mesmo tempo de alguma futura logração.
— Cuida então que êle vai exigir de mim a condição de casar-me sem mais demora com a filha? tornou Fragoso a rir.
— Tenho-o como certo. Aquela carta é uma ordem, ou como diríamos em linguagem forense, um mandado cominatório para o capitão Marcos Antônio Fragoso comparecer incontinenti na oiticica a fim de receber-se em matrimônio com a sr. D. Flor Pires Campelo, sob pena de, não o fazendo, ser tido e havido por desleal, indigno, etc.
— Boa maneira de sair-se da entalação! observou João Correia.
— Assim fica parecendo que é êle quem obriga o primo Marcos Fragoso a casar, e não ao contrário; mas, como chegamos ao mesmo fim por êste ou aquele modo, que mal nos faz o velho rabugento?
— Eu é que não o admitia, se fosse comigo, exclamou Daniel Ferro.
— Em verdade êsse desfecho não me parece muito conforme, primo Ourém, disse Fragoso, abalado pela opinião de seu parente de Inhamuns.
— Não nos venha cá embrulhar o caso, com as suas arrancadas de touro bravo, Daniel Ferro; isto não é vaquejada; trata-se de caça mais fina. E você, primo Fragoso, lembre-se que no fim de contas o capitão-mór Campelo é seu futuro sogro.
Nesse momento o Nicácio que ainda vinha a uns cincoenta passos de distância, fincou no chão uma vara que trazia, e tornou atrás, deixando a carta pegada na ponta da estaca.
Marcos Fragoso e Daniel Ferro trocaram entre si um olhar significativo; e voltaram-se à uma para o licenciado de quem esperavam a explicação de tão singular procedimento.
O Ourém, um tanto enfiado com aquele excesso de prudência, que por certo não indicava mensagem pacífica e amistosa, adiantou-se ao encontro do João Correia, que tinha ido em busca da carta.
— Então, primo Ourém, é assim que se usa intimar os mandados lá no su fôro? disse Fragoso em tom de mofa.
— Vamos a ver! respondeu o licenciado, abrindo a carta que lhe entregara o joão Correia.
Os quatro amigos leram a um tempo estas poucas palavras escritas em bastardo no meio da fôlha de papel:
«O capitão-mór de Quixeramobim, Gonçalo Pires Campelo, vai mostrar, ao nascer do sol, o caso que faz das ameaças de um bandoleiro atrevido».
Não se tinha dissipado ainda o pasmo produzido por êste repto insolente, quando o sino da capela começou a tanger uns repiques festivos.
Todos os olhares voltaram-se para a casa; e fitaram-se atônitos na cena que alí se desdobrava naquele instante.