O Sertanejo/II/XVIII
Fechara-se a noite.
D. Genoveva sentada à cabeceira da mesa de jantar presidia a trabalhos bem estranhos às habituais lidas caseiras. Ajudada de suas escravas enchia de pólvora e bala os cartuchos que enrolava a mão mimosa de D. Flor, com o auxílio da Justa.
Alina e a mãe na outra ponta da mesa faziam fios e rezavam baixinho a magnífica.
O capitão-mór deixando a sua gente de guarda no terreiro, foi ao camarim com padre Teles e Leandro Barbalho para tomar conhecimento da carta do Fragoso.
Padre Teles rompeu o fêcho e deu a seguinte leitura:
Ilm. sr. capitão-mór Gonçalo Pires Campelo
Aos 5 de janeiro do ano de 1765
Prezadíssimo senhor
Peço vênia a vossa senhoria para não tomar por última e definitiva a resposta de que foi portador meu primo Ourém.
Ainda espero que, pesando em sua consumada prudência os males que podem afligir a duas famílias importantes e que sempre viveram em boa vizinhança, há de tornar de seu primeiro alvitre.
Se vossa senhoria julga-se ofendido em seus brios, não posso oferecer-lhe mais cabal reparação do que essa de beijar-lhe a mão como filho. Não espero senão o seu agrado para ir pessoalmente render-lhe êsse preito de minha submissão.
Resolví aguardar três dias para dar tempo a que vossa senhoria delibere com toda calma. Se expirado êste prazo, não tiver eu satisfação de meu pedido, só então, e muito a meu pesar, serei levado à última extremidade; porque também tenho que dar contas de mim aos parentes e amigos, defendendo-me de tão dura afronta.
Guarde Deus a vossa senhoria por muitos anos. Dêste seu servidor, pronto sempre às suas ordens
Marcos Antônio Fragoso
Era fácil de reconhecer no estilo da carta a mão diplomática de Ourém. O Fragoso não tinha paciência nem retórica para arredondar êsses períodos em que, sob os rendimentos de uma cortesia respeitosa, fazia-se ao fazendeiro a intimação formal de entregar a filha a título de noiva no prazo de três dias, se não queria sujeitar-se a lhe ser arrancada à fôrça.
Êsse excesso de deferência com que o licenciado procurou atenuar a cominação, pungiu mais o orgulho do capitão-mór do que uma linguagem grosseira e desabrida. A impossibilidade em que se achava o fazendeiro de repelir a agressão, se insinuava nas frases mais polidas da carta, uma ironia que não estava no pensamento do escritor, nem nas intenções do signatário.
Assim ao terminar Padre Teles a leitura, Campelo tirou-lhe das mãos o papel, e rasgou-o ao meio. Leandro Barbalho, porém, levantou as duas bandas, e o capelão recordou-se naquela posição estreita de seu caráter sagrado de ministro da religião.
— Vossa senhoria, senhor capitão-mór, não me levará a mal que eu, ministro do Senhor e capelão desta casa, faça ouvir neste momento a voz da religião.
Empenhou então o reverendo toda a sua loquela em demonstrar ao fazendeiro a necessidade de ceder por essa vez, a fim de salvar a sua família e a si das desgraças que o ameaçavam. Que valia resistir, se afinal tinha de sofrer a lei do vencedor, como não era lícito duvidar, quando viam-se reduzidos ao minguado número de cincoenta homens contra quatrocentos?
Depois entrou o padre em copiosa argumentação para convencer ao capitão-mór que, no fim das contas, o Fragoso, bem longe de insultá-lo, ao contrário rendia-lhe preito, como êle próprio confessava em sua carta; e se o fervor com que o mancebo procurava êsse casamento era uma culpa, atenuava-se com a formosura de D. Flor, que lhe inspirara tão viva paixão.
Leandro Barbalho ouviu em silêncio as ponderações do capelão, e de algum modo aderiu a elas fazendo ao capitão-mór esta declaração:
— O senhor sabe, meu tio, que eu não sirvo de embaraço à sua resolução. Obedecí-lhe aceitando a mão de minha prima; da mesma sorte lhe obedecerei não pensando mais nisso.
O capitão-mór atravessou o aposento e chegando ao corredor, chamou a filha em voz alta:
— Flor!
A donzela acudiu logo. Nas condições em que se achava a fazenda, cada acidente devia sobressaltar, como núncio de novas complicações. A filha do capitão-mór, porém, sabia dominar-se, e quando entrou no camarim, foi com um olhar sereno que ela interrogou a fisionomia das pessoas alí presentes.
— Leia a carta, padre Teles, disse o capitão-mór, significando à filha com um gesto que atendesse.
O capelão reuniu as duas bandas de papel, e obedeceu à ordem do capitão-mór. Finda a leitura, o pai coltou-se para a filha:
— Ouça agora os conselhos do nosso capelão. Fale, padre Teles.
O sacerdote repetiu o que havia dito pouco antes, insistindo, porém, nas razões mais próprias para mover o ânimo da donzela.
— Ouviu Flor? Agora que responde a esta carta?
— Sua filha, meu pai, a filha do capitão-mór Campelo nunca seria espôsa do homem que uma vez a insultou, ainda quando êle não se atrevesse a ameaçar-nos como o faz.
Campelo cerrou a filha ao peito:
— Aquí tem a resposta desta carta insolente. Mas nós queremos dá-la de um modo que fique para memória.
O capitão-mór reassumira de repente o gesto imperioso que êle tinha habitualmente e era a expressão de sua índole soberba, mas que ficara como atônito, desde o momento em que reconhecera a impossibilidade de desafrontar-se.
— Êle marcou três dias; nãp careço de tanto. Amanhã Flor será mulher de Leandro Barbalho.
Arnaldo assomara à porta, ainda a tempo de ouvir estas palavras; uma palidez mortal derramou-se pelo semblante, que nenhum perigo turbava. Quando êle saíu da vertigem que o assaltara, seus olhos fitaram-se na donzela.
Flor abaixou as pálpebras para não ver êsse olhar, e respondeu ao pai com uma voz calma, ainda que tocada de leve aspereza:
— Amanhã ou neste momento, meu pai, quando mo ordenar, receberei por espôso meu primo Leandro Barbalho.
O sertanejo levou a mão ao seio para suster o coração que lhe desfalecia, e fugiu dalí com a morte nalma.
Entretanto êle vinha cheio de esperança trazer a paz e a alegria àquela casa, onde lhe estava guardada a dôr mais pungente que podiam inflingir à sua alma.
Quando o capitão-mór se recolhera ao camarim para ler a carta, Arnaldo fôra sentar-se embaixo da oiticica onde estavam o Manuel Abreu e alguns dos agregados.
À distância de quinhentos passos, avistava-se uma linha escura que cingia o centro da fazenda, como um arco do qual a serra de Santa Maria figurava a corda. Nessa faixa somrbia luziam, aquí e alí, pequenos fogos vermelhos, que derramavam pelo espaço um clarão intermitente.
Eram as redes, que movidas ao compassado balanço, ocultavam às vezes o foco da luz e logo o descobriam, fazendo correr pelo campo umas sombras vagas, trêmulas e esguias, que lembravam os fantasmas e espectros das lendas populares.
Manuel Abreu e seus companheiros observavam atentos a linha, que indicava o acampamento das bandeiras do Fragoso e o cêrco pôsto à casa da Oiticica. No prolongamento do arco e ligação dos postos entre si, ciam êles o empenho de impedir a comunicação com o exterior.
O dono da Oiticica não podia contar senão com seus próprios recursos, e devia abandonar a esperança de obter socorro de for; pois antes que êste chegasse, o inimigo teria levado de assalto a casa.
— Não ouve um tremor? perguntou Arnaldo de repente ao feitor. Talvez tenham esperado pela noite para atacar-nos.
— Mas se agora mesmo veio uma carta do homem! disse o Abreu.
— Que tem isso? acudiu o Nicácio. É manha o cabra. Então aquele Onofre que é da pelo do cão.
— Não há que fiar! observou João Coité!
A-pesar-de suas dúvidas, Manuel Abreu conhecia bem a perspicácia do sertanejo para desprezar o seu aviso. Adiantou-se até o parapeito do terreiro e os companheiros o seguiram para verificar, se com efeito alguma partida se aproximava.
Quando tornaram aos bancos, Arnaldo havia desaparecido. Os outros suspeitaram que êle havia-se divertido à custa do Abreu; e porisso afastara-se dalí, para outro ponto do terreiro.
Enganavam-se. Apenas tinham êles voltado s costas, Arnaldo com uma agilidade, que em outro seria para admirar, mas era nele comezinha, de um salto suspendera-se a um ramo da Oiticica, e sumira-se por entre a espêssa folhagem.
Ganhando o tronco, despiu a roupa, que estendeu pelos galhos, e resvalou pela broca da árvore até a cava subterrânea, e gatinhando às vezes como um cão, ou rojando como um réptil, foi sair na bôca do fôsso.
Daí em diante corria uma levada cheia pelo inverno e que atravessava a linha de cêrco estendida pelo inimigo. O sertnaejo aproveitou-se do córrego, como de um caminho coberto, para transpor o acampamento.
Seguiu por dentro sutilmente, com água até os olhos. Quando chegou perto das barracas e tendas, os cães latiram, e acudiu logo uma das rondas ligeiras que os capitães das bandeiras tinham estabelecido para melhor guardar os passos entre os postos, e mais apertar o cêrco.
Arnaldo, porém, mergulhara, e caminhando por baixo dágua como a lontra ou a capivara, foi surdir muito aicica, e de que serviu-se para distrair a atenção do Manuel Abreu e sua gente.
Continuou no rumo dessa repercussão da terra, que lhe indicava a marcha de uma multidão. A certa distância êle soltou o berro da jibóia que era o grito de guerra de Anhamum. Outro berro lhe respondeu e o tropel dos passos cessou.
Momentos depois os dois amigos encontravam-se na espessura da floresta.
— Anhamum recebeu sua flecha que tu lhe mandaste, chefe dos tapijaras; e soprou o boré para convocar os seus guerreiros. Êle veio pelo rasto dos inimigos.
— Tu és um amigo fiel, chefe dos Jucás; teus guerreiros terão muitos inimigos a combater, e muitas armas e roupas para levar à sua taba.
Arnaldo sabia quanto os índios eram ávidos daqueles objetos, principalmente dos veludos e sêdas de côres vivas, com que se enfeitavam; porisso, embora tivesse confiança na dedicação do chefe, quis por êsse modo estimular a gana dos selvagens.
Combinou o sertanejo com o chefe um plano de ataque.
Os selvagens ficariam ocultos na mata, de espreita ao inimigo. No momento de assalto à casa, e a um sinal convencionado, Anhamum cairia sôbre as bandeiras do Fragoso, e as meteria entre dois fogos.
Despachou-se também imediatamente um guerreiro para ir ao encontro do Agrela, que Arnaldo supunha já estar àquela hora de volta da Barbalha; pois não era muito que, avisado como fôra, desse conta da expedição em oito dias, tanto mais quanto ao chegar a seu destino conheceria a mentira da suposta viúva.
O mensageiro devia prevenir o ajudante do cêrco pôsto à Oiticica; e recomendar-lhe da parte de Arnaldo que aguardasse a ocasião do assalto para dar também sôbre o inimigo, e cortar-lhe a retirada.
Tomadas estas disposições, tornou o sertanejo pelo mesmo caminho.
Tinha a sorte do Fragoso em sua mão; e ia oferecer ao capitão-mór a maior satisfação que êle podia experimentar nesse momento: a de castigar a insolência do rapazola que se atrevera a afrontar seu poder.
Maior, porém, era o seu júbilo de arredar para sempre daquele sítio o homem que tinha ousado erguer os olhos para D. Flor e cobiçar a sua beleza.
Imagine-se, pois, do golpe que o trespassou quando, entrendo pressuroso no camarim do capitão-mór, ouviu aquelas palavras em que a donzela, conformando-se ao desejo do pai, dava-se por espôsa a Leandro Barbalho.
Fugindo, seu primeiro ímpeto foi correr ao terreiro, apanhar as armas que alí estavam de prontidão, dispará-las umas após outras contra a gente do Fragoso, empenhar o combate, e assim provocar a morte.
Mas terminada a luta, ou o capitão-mór vencia, como era de esperar depois das providências tomadas, e Flor se casaria do mesmo modo com o primo, ou o Fragosos lograria seu intento e levaria a espôsa que viera tomar à mão armada.
— Não; eu não posso morrer. O capitão-mór vencerá; mas Leandro Barbalho não há de ser marido de Flor.