O Sertanejo/II/XVII

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Depois dos acontecimentos que na véspera à tarde haviam perturbado o sossêgo da Oiticica, era natural que seus moradores prolongassem um tanto pela manhã o repouso da noite.

Arnaldo apenas restituira Flor à casa, partiu no Corisco em seguimento do capitão-mór, que só encontrou a três léguas de distância, já de volta.

A notícia que levava-lhe o seu vaqueiro o encheu de tamanha alegria, que êle esqueceu-se a ponto de abraçar a mulher diante de toda a gente, e fez o mesmo ao rapaz.

Chegando à casa, depois das efusões do contentamento de ver a filha, entrou com o sobrinho e o capelão em conferência acêrca das ocorrências extraordinárias que se acabavam de passar; na ausência do Agrela, foi o padre Teles incumbido de escrever duas cartas aos parentes de Russas e Aracatí, chamando-os a toda pressa com a gente que pudessem juntar.Leandro Barbalho partiria no dia seguinte para reunir uma bandeira no ouricurí; enquanto o Arnaldo seria incumbido de avisar todos os moradores espalhados pelos campos de Quixeramobim até à serra do Baturité.

O Campelo tinha jurado por suas barbas que havia de castigar o Fragoso ainda que fosse preciso arrasar todo o Inhamuns.

— Hei de trazê-lo à Oiticica amarrado como um negro fugido; e depois de bem surrado, o padre Teles o casará com a negra mais cambaia da fazenda.

Depois da conferência recolheu-se o fazendeiro, mas a-pesar-das fadigas e comoção da véspera, ao romper do dia já estava de pé e saíu fora ao terreiro. Ainda todos dormiam; pela primeira vez deixara-se de ouvir na fazenda o toque de alvorada à hora costumada.

Viu o capitão-mór esvoaçar um bando de urubús à beira da mata e pousar no campo. Embora seja êsse um acidente muito comum nas fazendas de criar, desperta sempre a atenção do dono e de seus vaqueiros.

Caminhou Campelo até o fim do terreiro; e daí pôde confusamente avistar os pedaços de carniça, espalhados pelo chão, e que atraíam os abutres. Atinou que eram os corpos dos dois sequazes mortos na véspera pelo tiro de seu bacamarte, e despedaçados pelas patas dos cavalos, quando corriam atrás de Corrimboque.

O capitão-mór não era sanguinário; mas nessa ocasião experimentou um esquisito prazer com aquele espetáculo, e sentiu que não estivessem estendidos no campo todos os sequazes do Fragoso, para que êle os esmagasse sob as patas de seu ruço.

Com pouco apareceu Leandro Barbalho, que j-á vinha em hábitos de viagem, e só esperava para pôr-se a caminho, que o pagem lhe trouxesse a cavalgadura.

O sobrinho do capitão-mór, filho dos Carirís, onde residiam seus pais antes de mudarem-se para o outro lado da serra do Araripe, era mancebo de trinta anos, de baixa estatura, mas robusto, com ombros largos e a cabeça chata, tipo mais comum do sertanejo cearense e que o distingue de seus vizinhos das províncias limítrofes. Tinha o parecer franco e jovial.

— Pronto, sobrinho? disse Campelo ao avistá-lo.

Barbalho beijou a mão do capitão-mór com respeito filial e respondeu:

— Já podia estar em caminho, se não fosse a demora do pagem.

— Assim foi bom, porque ontem não tivemos tempo de falar sôbre um particular. Sabe por que o mandámos chamar, sobrinho?

— O senhor dirá, meu tio.

— Nós o escolhemos para marido de nossa filha D. Flor.

— Como for de sua vontade, senhor meu tio.

— Vá buscar a gente para ensinarmos ao atrevido do Fragoso, e na volta cuidaremos do noivado.

Ouvindo o galope de um cavalo, o capitão-mór voltou-se, e viu Arnaldo que subia o tombador a toda a carreira do Corisco. Chegando ao terreiro, sem dar-se ao trabalho de parar o animal, o rapaz saltou da sela e caminhou para o fazendeiro.

Depois dos últimos acontecimentos, a súbita vinda do sertanejo àquela hora, sua brusca parada e a inquietação de seu gesto, eram de natureza a dar rebate de novos perigos.

Não obstante, o capitão-mór esperou sem nenhuma alteração a notícia, que lhe trazia o rapaz.

— O Fragoso aí vem, sr. capitão-mór.

— Pois atreveu-se?

— E traz muita gente.

— Melhor; não é preciso fazer pontaria.

Tocou-me alarma na Oiticica e imediatamente começaram os preparativos para receber o inimigo. A posição da fazenda oferecia todas as condições favoráveis à defesa; e a construção do edifício principal fôra de algum modo copiada das casas fortes, fortes, em que então muitos fazendeiros ricos eram obrigados por segurança a ter sua moradia.

Uma hora depois do aviso de Arnaldo, avistou-se uma grande nuvem de poeira. Era o Marcos Fragoso com sua bandeira.

O Daniel Ferro chegara de Inhamuns naquela madrugada com sua gente; e o Fragoso, irritado com o malôgro da véspera, resolveu marchar para a Oiticica sem mais demora. Tinha êle então às suas ordens cêrca de quatrocentos homens, que dividiu em três bandeiras, tomando uma para si, e dando as outras ao Daniel Ferro e João Correia.

Arnaldo, que seguira durante a noite o rasto da escolta do Onofre, lá pela madrugada encontrou-se com o Aleixo Vargas, que vinha adiante como explorador. Percebendo a presença do sertanejo, o Moirão escondeu-se; mas conhecendo que já estava descoberto, marchou direito ao rapaz.

— Estimei encontrá-lo, amigo Arnaldo.

— Também eu, Aleixo Vargas. lembra-se do que lhe disse vai para um mês? Que se o achasse a uma légua da Oiticica...

— A que vem isso agora?

— Pelo jeito parece que você está em caminho para lá; e então pergunto-lhe, se já encomendou sua alma a Deus?

— A coisa não é como pensa, Arnaldo; sou eu quem lhe avisa, como seu amigo, que não torne mais à Oiticica, senão está perdido. Tome outro rumo, rapaz.

— Mas então o que está para acontecer?

O Moirão pôs o sertanejo ao corrente do que se havia passado, e da expedição que marchava naquele instante para a fazenda do capitão-mór.

— Obrigado pelo aviso, amigo Aleixo Vargas. Eu não carecia dele, tornou Arnaldo, mostrando o vulto de Jó que aparecera entre a ramagem. Mas sempre lhe digo que veja o que faz; eu só tenho uma palavra.

O vaqueiro dirigiu-se ao velho que lhe disse rapidamente em voz baixa:

— Quatrocentos.

O velho chegava naquele instante de uma excursão. Havia entre essas duas almas, a do solitário e a do sertanejo, tão íntima comunicação, que muitas vezes não careciam falar, para entenderem-se entre si e transmitirem-se os seus pensamentos.

Leve mudança de fisionomia, rápido toque de gesto, ou relance d’olhos, eram sinais imperceptíveis para estranhos; mas para êles caracteres vivos, em que liam tão correntemente como em um livro aberto.

O algarismo quatrocentos, que o velho acabava de murmurar não era senão a conclusão do diálogo quase instantâneo, que o seu olhar trocara com o de Arnaldo. O semblante do velho anunciara a chegada do inimigo, e o vaqueiro o interrogara sôbre a fôrça que ameaçava a Oiticica.

Nesse momento recordou-se Arnaldo da viagem de Jó, sôbre a qual ainda não tivera ocasião de trocar uma palavra:

— E Anhamum? perguntou Arnaldo.

— Quando partí, êle convocava seus guerreiros.

Foi então que Arnaldo, depois que deixou o velho Jó em segurança na caverna, correu à Oiticica para levar a notícia ao capitão-mór.

As três bandeiras do Marcos Fragoso tomaram posição em volta as casarias da fazenda e estabeleceram um cêrco em regra, a fim de cortar toda a comunicação exterior, e evitar que o capitão-mór mandasse aviso à numerosa parentela de Russas, que logo acudiria em seu auxílio.

Quando Campelo viu o poder de gente com que vinha o Marcos Fragoso, e reconheceu que não tinha fôrças para sair-lhe imediatamente ao encontro e castigar aquela ousadia, o seu orgulho rugiu-lhe n’alma como um tigre na jaula.

Êle que nunca até êsse momento, em uma vida de cincoenta anos, sofrera um insulto em face, nem encontrara resistência à sua vontade, ser de repente assim afrontado, e não poder esmagar o insolente que o provocava!

Nas circunstâncias em que achava-se, com sua bandeira reduzida pela expedição do Agrela à Barbalha, uma sortida seria um ato de desespêro, que sacrificaria o melhor de sua gente e entregaria a casa e os moradores aos assaltantes.

Não tinha remédio, pois, senão recalcar o seu ímpeto, e aproveitar os recursos que lhe oferecia a Oiticica para uma defesa tenaz, enquanto podia mandar um emissário a seu cunhado Gameiro em Russas.

Concentrou-se, porém, tão profundamente aquela soberba, que desde a chegada do Fragoso às terras da Oiticica não proferiu mais uma palavra e em pé no meio do terreiro esperou o ataque iminente.

Tinha à mão, no ombro dos pagens, seus três famosos bacamartes. O primeiro, conhecido por Jacaré, nome tirado da enorme bôca; o segundo, chamado Trovão por causa de seu formidável ribombo; e o terceiro, Farol, porque ao disparar levantava um clarão medonho. Todos eram de grosso calibre, que mais parecia de canhão.

Leandro Barbalho ficava-lhe à direita, Arnaldo à esquerda, e toda a gente estava a postos. D. Genoveva com Flor e Alina, a-pesar-de transidas de susto, já tinham voltado da capela, onde foram pedir a proteção divina; e tomaram todas as providências para socorrer os combatentes e munições, e de pronto curativo no caso de serem feridos.

Depois de longa espera, em que o capitão-mór não via senão um ardil paramais tarde caírem de surpresa, apareceu uma pequena escolta, que vinha do campo inimigo, e dirigia-se à Oiticica, parando a trechos e agitando uma grande bandeira branca.

— É um parlamentário que nos enviam, disse Leandro Barbalho.

O capitão-mór sem quebrar o silêncio levantou o braço e apontou o bacamarte. Leandro mediu o alcance da ação, mas não se atreveu a opor-se. Foi Arnaldo, que sem hesitar, lançou a mão ao cano da arma a tempo de evitar o tiro.

Voltou-se Campelo com terrível expressão. O rapaz encostara ao peito a bôca do bacamarte:

— Atire em mim, sr. capitão-mór, porém não mate sua mulher e sua filha que estão lá dentro fiadas na prudência, ainda mais do que na coragem de vossa senhoria.

Sentiu o fazendeiro a justeza daquela observação, que fizera calar em seu espírito o rasgo do intrépido vaqueiro, expondo o seu peito à carga do bacamarte.

— Carecemos antes de tudo ganhar tempo, continuou o sertanejo. Nossa posição agora é má; porém esta noite, amanhã ou depois, a sorte pode mudar de repente.

O Manuel Abreu foi ao encontro do parlamentário. Êste não era outro senão o licenciado Ourém, que vinha pôr à prova a sua diplomacia em uma negociação cuja dificuldade e risco êle bem previa.

Não havia no campo do Fragoso pessoa mais apta para o delicado mister, e nestas circunstâncias entendeu o licenciado que faltaria a seu dever de cristão e de parente, se não oferecesse os seus serviços de medianeiro para evitar um rompimento funesto a ambas as partes.

Leandro Barbalho adiantou-se para receber no terreiro o parlamentário, e o levou à presença do capitão-mór na sala. Trocada a saudação, afável e insinuante da parte do Ourém, muda e arrogante da parte do capitão-mór; quando aquele dispunha-se a entrar no assunto, foi atalhado pelo fazendeiro:

— O senhor licenciado veio como parlamentário, e com esta segurança foi recebido. Mas veja como fala, porque, se faltar com o respeito que deve ao capitão-mór Gonçalo Pires Campelo, não respondemos por nós. Fique prevenido.

Ourém acudiu logo com pressurosa cortesia:

— Como posso eu faltar com o respeito devido ao sr. capitão-mór Gonçalo Pires Campelo, quando não trago outro encargo senão o de assegurar-lhe o grande acatamento em que o tem meu primo, o capitão Marcos Fragoso, e do seu vivo desejo de continuar as boas relações de vizinhança em que está com o dono da Oiticica?

— Foi para mostra dêsse desejo que êle armou toda essa ralé de bandoleiros, e veio pôr cêrco à fazenda? observou Leandro Barbalho em tom de chasco.

— O séquito numeroso que trouxe o capitão Marcos Fragoso não foi para ameaçar, e menos ainda para atacar o dono da Oiticica; mas, ao contrário, com êste alardo quis meu primo dar a conhecer as fôrças de que dispõe, e com que êle se empregará sempre e da melhor vontade no serviço de seua senhoria, se...

O Ourém rebuçou esta conjunção com um sorriso dos mais açucarados:

— Se o sr. capitão-mór, como espera, aceder ao pedido que me incumbiu de fazer em seu nome, e que é ainda uma prova, e a mais significativa, da veneração, que vota à sua pessoa.

O capitão-mór não pestanejou, e permaneceu impassível no aspecto, mas interiormente rugia uma cólera que ameaçava a cada instante fazer irrupção.

— Sabe vossa senhoria que outrora usavam os cavalheiros, quando iam a algum torneio, apresentar-se na côrte com uma grande comitiva, não por afrontar, mas só para merecer a atenção. A mesma bizarria teve meu primo Marcos Fragoso vindo pedir ao sr. capitão-mór, como agora o faz por meu intermédio, a mão de sua formosa filha D. Flor, que se o é no nome, excede-lhe nas prendas.

Campelo ficou mudo. O Ourém, tendo esperado debalde a resposta, insistiu:

— O sr. capitão-mór ouviu o pedido; que decisão devo eu levar a meu primo Marcos Fragoso, que a espera ansioso?

— A mesma que lhe dei a primeira vez, respondeu Campelo.

— As circunstâncias mudaram depois disso.

— Pode ser; mas não mudou a nossa vontade.

— Talvez que vossa senhoria deseje algum tempo para melhor refletir?

— Já decidimos.

— Então a resposta do sr. capitão-mór é?...

— Não!

— Atenda vossa senhoria à posição difícil em que vai ficar meu primo Marcos Fragoso, assim desconsiderado, e lembre-se que nem sempre somos senhores de nossas paixões. Êste casamento poupará talvez grandes calamidades...

— Não! Não! Não!...

O capitão-mór erguera-se, e atirando ao licenciado aquelas três negativas, cortejou-o com arrogância, intimando assim que estava terminada a conferência.

Ourém compreendeu que, naquela ocasião pelo menos, nada mais tinha alí a fazer, e que sua missão conciliadora podia tornar-se em provocação, se com sua insistência exacerbasse a ira do capitão-mór.

Despediu-se, e tornou ao campo do Fragoso.

Já era então ao declinar do dia. O capitão-mór voltou a ocupar o seu pôsto no terreiro, acompanhado de três pagens que seguravam os bacamartes já carregados e as munições para carregá-los de novo.

Arnaldo e Leandro Barbalho colocaram-se junto dele, à espera do assalto, que não podia demorar-se depois da maneira rude por que o capitão-mór despedira o parlamentário.

Ao cair da noite anunciou-se novo emissário, portador de uma carta do capitão Marcos Fragoso para o dono da Oiticica.