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Poesias posthumas do Dr. Aureliano José Lessa/O Sol

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O SOL


Elle é o rei da luz, enthronisado
Na cupola dos céos;
Talvez anjo revel incendiado
Pelo sôpro de Deus.

No palacio do tempo elle calcula
Do movimento a idade;
Fiel ministro os seculos açula
Ao mar da eternidade.

Povos e mundos a seus pés baqueiam,
Do tempo na voragem;
Mas seus louros cabellos não branqueiam,
São do infinito a imagem.

Que ôlho d’homem jámais fitar podéra
Nessa fronte de Rei,
Se até seus mandos só de longe impera
Dos cometas a grei?


Astro, tu és a imagem da virdude
Tranquilla na desgraça,
Que espanca as trévas do caminho rude
Por onde o justo passa.

Em vão sacode o mar a espumea clina
Para manchar-te, ó Sol;
Em vão peneira o céo turva neblina
Em pallido lençol.

Em vão! surris do mar á iniqua ira,
A nuvem te encobre;
Ri da inveja a virtude; ella transpira
Dos andrajos do pobre.

Sossobra o mar erguidos hemispherios,
Tomba o rijo penedo;
O anjo da destruïção varre os imperios,
Mas o sol está quêdo.

E’ a urna, que a luz eterna espêlha!
E do raio, que encerra,
Descosido em milhões, cada scentelha
Verte um dia na terra.

Quando entre as nuvens hybernaes reflecte
Seus calidos fulgores,
Verdeja o prado, a neve se derrete,
Desabrocham as flôres.


Aquece o orphão nú; elle é a imagem
Da eterna providencia;
Pharol que indica o porto da viagem
Nos mares da existencia.

Quem póde olhar-te, ó sol, sem ter desejos
De lêr-te a augusta sina?
Quem póde lêl-a sem visar lampejos
De uma glória divina?

Quando elevas a face soberana
Entre as nuvens da aurora,
Sorri-se a terra, e a familia indiana
Prosternada te adora.

E quantos mundos, cuja vida o brilho
De um teu olhar produz!
E quantos gyram em perenne trilho
Em tôrno á tua luz!

Ah! que, se Deus dos homens esquecido,
Te fechasse na mão,
Fôra um tumulo o orbe, submergido
Em gêlo e escuridão!…

E quem sabe se um tumulo inflammado
Pelo fogo do inferno,
E das almas dos reprobos fechado
Por cadeado eterno?!


Quem sabe? Tu és como a consciencia
Ardente do perverso;
Ella não dorme, e abrasa a existencia,
—Tu ardes no Universo!

Oh! tu, lettra de fogo a mais brilhante
Do poema celeste!
Fonte do movimento, e que um instante
Inda não te moveste!

Um dia, quando o Eterno alçando o braço
N’um pavoroso brado
Basta, disser, estalarás no espaço
Extincto, aniquilado!

O cáhos ha de sorver-te, o seio abrindo
Com horrido fragor…
Depois… silencio! e após hosanna infindo
Dos anjos ao Senhor…

Ôlho do céo, insana consciencia
De toda a creação,
Quem és, brilhante enigma? O’ Providencia,
Quanto é fraca a razão!