O Sono (Álvaro de Campos)
Aspeto
- O sono que desce sobre mim,
- O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
- O sono universal que desce individualmente sobre mim —
- Esse sono
- Parecerá aos outros o sono de dormir,
- O sono da vontade de dormir,
- O sono de ser sono.
- Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
- E o sono da soma de todas as desilusões,
- É o sono da síntese de todas as desesperanças,
- É o sono de haver mundo comigo lá dentro
- Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.
- O sono que desce sobre mim
- É contudo como todos os sonos.
- O cansaço tem ao menos brandura,
- O abatimento tem ao menos sossego,
- A rendição é ao menos o fim do esforço,
- O fim é ao menos o já não haver que esperar.
- Há um som de abrir uma janela,
- Viro indiferente a cabeça para a esquerda
- Por sobre o ombro que a sente,
- Olho pela janela entreaberta:
- A rapariga do segundo andar de defronte
- Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
- De quem?,
- Pergunta a minha indiferença.
- E tudo isso é sono.
- Meu Deus, tanto sono!...