O Sono (Cruz e Sousa, grafia de 2008)

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Ceux qui rêvent éveillés ont connaissance de mille choses qui échappent à ceux qui ne rêvent qu'endormis. Dans leurs brumeuses visions, ils attrapent des échapées de I'éternité et frissonent, en se réveillant, de voir qu'ils ont été un instant sur le bord du grand Secret.


EDGARD POE, Eleonora


A tua voz! a tua voz! Clamo em vão pela tua voz, procuro-a como por uma ave maravilhosa e a tua voz está estranhamente adormecida no sono...

Está adormecida no sono, muda, calada de gorjear, de cantar na tua garganta e na tua boca, aquela voz que eu sonhara filtrada dos raios do sol, tecida dos raios do sol, de uma prodigiosa essência etérea na qual radiasse o sol, todo o esplendor do sol.

Tu estás nostalgicamente dormindo, e esse sono em tão profundo e misterioso Além te imergiu, que pareces de mármore. E é, assim, em vão que clamo, trêmulo e desvairado, pelo brilho quente dos teus olhos, pela vida da tua voz, que me sacia de vida, que me afoga, que me embriaga de vida.

Acorda! acorda! acorda! acorda os olhos e a voz, e mergulha-me na vida que se derrama deles: quero sentir os teus olhos olharem, a tua boca palpitar de voz, como um rio transbordante, perenal, que chamejasse, ondulando em gorgolões e vertigens.

Esse sono frio, hirto, que me aflige, que me dilacera, lembra uma esperança que dorme perpetuamente, um desejo, uma alegria que não acorda mais e dorme, dorme para sempre nos gelos infinitos.

Os meus ciúmes, bravos leões acordados, instigam-se, açulam-se com a tua mudez, feridos de penetrante susceptibilidade por não sentirem os frêmitos, o alvoroço nervoso da tua voz.

Eu quero toda a fremência, toda a palpitação da tua voz, acordada em músicas, em sinfonias de beijos, atordoando a dor da minh'alma, como harmonioso e estonteante carinho, como extasiante licor renano, vivendo na intensidade, nos turbilhões do movimento, do ar...

Quero a sensibilidade, a flexibilidade voluptuosa da tua voz alvorecida do sono como de uma noite polar, ressurgida, lavada do caos, clara, imaculada de som.

Quero a tua voz, ágil, dúctil, aflante como asas e como asas abrindo e fechando em tépidos e alvoroçados véus...

Acorda! fala! fala! No teu sono pairam neblinas glaciais, as primeiras névoas do esquecimento... As auréolas místicas, os nimbos cintilantes do Sonho, as miragens e os íris, circulam a tua bela e imaginativa cabeça; e hordas invisíveis de resplandecentes arcanjos, vibrando citaras, alaúdes, harpas e violinos, numa inefável surdina, guardam, velam de ritmos vaporosos o teu sono seráfico...

Eu não sei que sentimentos estão agora em curiosa gênese dentro de mim, que na minha alucinação e superexcitação nervosa apalpo ansioso o vácuo, que o sono em que mergulhas encheu de segredos cabalísticos, e procuro, procuro em vão as formas, as formas, as fugitivas formas intangíveis, extremas, ondeantes, sutis, as formas de perfume, as formas de luz e as formas de som da tua voz, que o emoliente sono levou não sei para que necrópoles vazias, não sei para que geladas estepes de egoísticas e mortais indiferenças.

Ver-te assim, dormindo, esmaiada, branca e lânguida, nesse abandono de delíquio, num aspecto e espasmo sonhador de lua morta, faz-me experimentar a mais dolorosa ansiedade, como que a sensação flagelante de esquecer-te, uma angústia, uma agonia de sensibilidade tal, que os meus nervos quase se despedaçam, tão grande, tão profunda é a tensibilidade deles quando te apercebem dormindo, e que os teus olhos, fechados por longas e pesadas trevas, não deixam ver os recônditos deslumbramentos; e que a tua boca, muda, calada, encerrando em cárcere misterioso a tua voz virginal, não deixa sentir a alada harmonia das formas e dos aromas!

Oh! acorda! fala! fala!

Vivamente acordada, que sejas, em flama ardente de vida, nesse hosana triunfante da imortal beleza, eu agito-me, estremeço, vibro e desvairo, para beber insaciavelmente todos os encantos delicados e ignotos da tua voz, todas as ciciantes carícias e luxúrias.

E só com a martirizante lembrança de que talvez esse sono seja eterno e eu não ouça, não sinta jamais, nunca mais! as vibrações e as chamas da tua voz, percorrem-me o corpo todo estranhos calafrios, letais pesadelos alucinadores me sufocam...

E eu clamo, clamo, num tremor convulso, pela tua voz: procuro-a transfigurado, pergunto inquietamente ao Vago em que mistério a escondeu, em que abismo infernal de trevoso horror rolou, voou e extinguiu-se, apagou-se, desapareceu, como a alma original dos ventos e da luz, a tua colorida e chamejante voz!

Invade-me a ânsia de te sentir a voz fluir, borbotar dos lábios, acesa na paixão de existir, de viver, de sensacionalmente viver.

A ânsia, o desejo sedento de ver a tua boca febrilmente, frementemente palpitar com o meu nome, dizê-lo, repeti-lo, repeti-lo sempre, sempre, ungi-lo e acariciá-lo na voz, perpetuá-lo com amor, com compaixão, com misericórdia, com volúpia, com febre, com essa emoção e agitação de sentimento que impele, arrebata a alma aos êxtases da Eternidade!

Dormindo, no nebuloso e mago sono, onde a mórbida flor das melancolias e desdéns amargos murcha e outonalmente desfolha, e onde esvoaçam em torvelinhos magnéticos as borboletas translúcidas e multicoloridas da Quimera, o carinho e a piedade maior, mais intensa, mais viva, dos teus olhos e da tua voz, deixam-me desamparado, só, num deserto de silêncio e de frio, tiritando de pavor e desespero, envelhecendo cego, tateando de abandono, de desolamento...