O Subterrâneo do Morro do Castelo/Quarta-feira, 24 de maio de 1905

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Os Subterrâneos do Rio de Janeiro[editar]

As Galerias do Castelo[editar]

O caso do dia que ainda preocupa a atenção do povo é incontestavelmente o das galerias do Morro do Castelo.

Tenazmente a picareta dos trabalhadores da Avenida, sob a hábil direção do ativo engenheiro Dr. Dutra de Carvalho, vai desvendando os mistérios das galerias.

Ontem à tarde foi encontrado um crucifixo, que se supõe ser de ouro e que mede cerca de oito centímetros.

Também foi encontrada uma imagem de madeira do Senhor dos Passos.

A galeria, que segue em sentido ascendente do morro, bifurca-se, como dissemos ontem, em duas galerias: uma em sentido reto e outra em direção ao convento dos Capuchinhos.

A primeira interrompe o seu trajeto por uma laje, presumindo-se que seja uma porta falsa, o que em breve saberemos com o prosseguimento das explorações.

Como se vê, o morro do Castelo ainda por muito tempo fornecerá aos curiosos novas notícias.

D. Garça[editar]

III[editar]

A Vingança do Jesuíta[editar]

Demandando os índios Goianases, cujas mulheres, segundo a fabulosa narração do Anhangüera, traziam como enfeites palhetas de ouro virgem, o jesuíta parte do Colégio de S. Paulo. Voga rio abaixo. A montaria desliza mansamente ao sabor da corrente.

Quatro carajás, ainda dos que vieram meninos no resgate de Pires de Campos, remam vagarosos e sem esforço. A velocidade das águas arrasta a tosca embarcação; e é bastante aproveitar-lhe o ímpeto para navegar célere.

À popa, o padre e o coadjutor se estreitam. Pequenos fardos de alimentos repousam aos seus pés e também na proa; é pouca coisa... Deus dará o resto para a viagem toda!...

O antigo marquês olha as margens.

Aqui, uma praiazita alva, límpida, ondula em graciosa curva. A canoa a descer é como um lápis a traçá-la.

De repente, dois pavorosos blocos negros de pedra avançam pelas duas margens. O rio se adelgaça e a correnteza aumenta. Seguem-se barrancos de dois lados.

O fio d’água escorre entre dois diques abruptos. A mata vem até às margens. As últimas árvores se inclinam e as lianas pendentes rasam à superfície prateada, oscilando ao impulso da água que corre.

Chega a noite. Os quatro remeiros, em língua indiática onde se misturam vagas sonâncias portuguesas, entoam uma melopéia nostálgica. Os padres rezam; e as árvores da margem a que se dirigem, estremecem e farfalham ao sopro da brisa.

Abicados em lugar propício, armam uma tenda passageira; e passada a sombria noite, povoada de gênios e duendes, seguem caminho.

Assim dias e dias: e às vezes a chuva, moléstia, o cansaço retardam a rota sem termo preciso. Mais do que uma noite, demoram-se no ligeiro acampamento.

Os índios pescam e caçam pelos arredores com as suas primitivas armas. Não há mosquetes, nem espingardas. Uma missão não as usa. Conseguem dessa maneira refazer as escassas provisões. Pouco se falam. Cada qual, ante a augusta presença do deserto, recolhe-se dentro de sua alma.

Padre João medita e relembra o passado.

Recorda sua mocidade. Que grandeza não ameaçava ela! A chegada em Paris... a sua primeira tragédia representada!...

Os elogios e as saudações que recebeu prometiam-lhe um destino seguro, feliz e alto.

Depois encontrou a condessa Alda, esposa do velho embaixador de Florença, o Conde Ruffo de Lambertini. Era uma maravilha de mocidade, de beleza e de graça.

Foi em Versailles que a viu pela primeira vez e logo se apaixonou. Duclerc, por esse tempo, chegou também à corte. O almirante Touville apresentou-o como um dos bravos da batalha do cabo de São Vicente que acabava de ganhar. Tanto ele como Duclerc cortejavam a condessa, que parecia hesitar entre dois amores.

Mas, ai! que foi ele próprio quem a desviou para o rival...

Um duelo cruel e injusto com o marinheiro atraiu-lhe a animosidade de Alda. Aos poucos, o escândalo que ele levantou, fez-lhe perder o valimento. Os amigos fugiam-lhe; o rei não o recebia mais.

Desgostoso, não encontrando saída para aquele angustioso momento, procurou a Ordem. Em breve preencheu os quatro votos...

A tarde vinha. Agora, subindo o rio mais largo, a canoa se move com dificuldade. Cava na superfície das águas um sulco profundo.

O jesuíta professo continuava agitando nas recordações.

Lembrava-se agora da entrevista que tivera com o Geral, em Roma.

— Que vos fez entrar para a Ordem, Marquês? perguntou-lhe o superior da Companhia.

— O amor, Eminência. O amor...

— Desanimaste dele?

— Sim; sou padre.

E em seguida relatou-lhe todo o seu sofrimento, a sua angústia e o seu desespero. Descreveu-lhe o nome, a posição e a beleza do objeto do seu amor.

O Geral ouviu complacentemente a sua narração e, ao retirar-se ele, lhe disse:

— Vossa Reverência vai para Lisboa. Esperará e verá então o quanto pode a Companhia.

Na capital do reino luso esperou. Dentro de um ano a condessa chegava em um navio da Companhia, que a resgatara aos piratas de Argel, dos quais fora prisioneira na embarcação a cujo bordo voltara de França em busca de sua terra. A tripulação trucidada e passageiros também, só ela escapara cativa.

Trazida secretamente do galeão Santo Inácio, da Ordem, desembarcava em São Sebastião figurando como esposa de Martim Gonçalves Albernaz, criatura da Companhia e despachado por El-Rei, almoxarife do paiol da Alfândega...

— Olá, meu padre, por aqui, falou uma voz da margem da qual se aproximaram.

O jesuíta e os companheiros ficaram surpreendidos. Naquelas alturas, tão boa linguagem portuguesa era para admirar.

Investigaram a margem. Em pé com a espingarda descansada no solo e inclinada a braço frouxo, havia um homem alto coberto de um largo chapéu. Era o chefe de uma bandeira, talvez. Saindo de moitas, um a um, foram-lhe aparecendo os companheiros. O jesuíta não tivera notícia daquela entrada. Por aquelas épocas era assim; um punhado de homens se juntavam e um belo dia seguidos de alguns índios e negros, partiam discretamente para o interior encantado. De algumas dessas correrias os povos guardavam memória, de poucas a história conservou o resultado, mas da maioria, nem os alvadios casos da sua gente, pelos tempos em fora, ficaram marcando nos valedos a grandeza do seu esforço. Apagaram-se.

O jesuíta estava em frente a uma dessas. Era pequena: quatorze paulistas e alguns índios e negros.

— Pois não, irmão, retrucou o padre ao bandeirante, vou em busca de almas para o purgatório. De que vos admirais?

— Padre, as cidades estão cheias de almas precisadas de vosso socorro. Deixai-nos os sertões; quando eles se tornarem vilas, então sim, padre, obrai.

A lógica do jesuíta não foi suficiente para demover aqueles rudes. De manhã, no dia seguinte, logo ao romper d’alva o chefe veio ao padre:

— Voltai, reverendo, voltai sobre os vossos passos. E a intimação feita a berros pelo ajuntamento todo foi tão peremptória e enérgica que o jesuíta no dia seguinte retomava o caminho pelo qual jornadeara quatro longos meses.

A volta durou mais da metade que a ida. Foi penosa, mas, de esforço em esforço, a missão chegou afinal ao ponto de partida.

O alvoroço da invasão do Rio enchia a vila. Apesar de já se ter dado há meses, as notícias não eram seguras.

Padre Jouquières recolheu-se ao Colégio, onde dias depois recebeu um dos estudantes do Colégio do Rio que tomara parte nos encontros.

— Onde foi o desembarque? indagava um outro jesuíta ao rapaz.

— Na Guaratiba. Marchou oito dias; e eu me gabo de haver sido um dos primeiros a atacá-lo.

— Onde?

— Na lagoa da Sentinela, com Bento do Amaral Gurgel. É bravo o Bento, meus padres! Com dois deles não haveria franceses capazes.

— E não o combatestes mais? interrogou o padre Jouquières.

— O francês desceu por Mata-Cavalos, frei Meneses o atacou no Desterro e nós, com o Bento, esperamo-lo pelas ruas...

— Não se deteve Duclerc em parte alguma? continuou a interrogar o jesuíta francês.

— Qual, padre, vinha que nem um raio. Na Rua d’Ajuda parou...

— Em que lugar?

— Numa casa, onde entrou...

— Que casa?

— Não me recorda agora...

Espere... Foi na casa do Almoxarife Albernaz, casa essa que foi destruída por uma bala do Castelo.

— E o almoxarife e a mulher onde param?

— Albernaz morreu na explosão do paiol da Alfândega e...

— E a mulher?

— A mulher foi morar na Rua do Vaz Viçoso, próximo à casa do tenente Gomes da Silva, onde hoje habita Duclerc.

O antigo marquês fez-se pálido, depois rubro. A custo continha a cólera. Compreendeu o modo por que os dois lhe ludibriavam; e antes que os seus interlocutores percebessem o seu estado d’alma, disse pausadamente:

— Amanhã irei para S. Sebastião. Padre, fazei preparar as malas para a madrugada.