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O Tronco do Ipê/I/V

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O sítio em que estavam agora as crianças era de uma beleza agreste, porém majestosa.

Abria-se ali uma pequena várzea que de um lado o rio cingia como um braço, e do outro a floresta sombreava, como verde pálio cobrindo a linda espádua de uma ninfa. Algumas árvores, que se tinham separado da mata, errantes e solitárias, erguiam-se aqui e ali pela várzea.

O sol, derramando torrentes de luz sobre o descampado, dava ao esmalte da relva ondulações de ouro e fazia reverberar as águas do Paraíba, como borbotões de fogo.

Entre os solitários da várzea, destacava um frondoso ipê. Monarca da floresta, alçando com soberba a régia coroa de esmeralda, parecia preceder a selva, que o rodeava como sua corte submissa e respeitosa. Não era então o tronco decepado que vi muito depois; estava em todo vigor, embora se notasse já, na cruz onde se abriam as ramas, uma caverna feita pela carcoma.

No fim da planície corria uma cadeia de penhascos, que descia verticalmente das altas colinas e submergia-se no leito do rio. O mais saliente desses penhascos sustentava na encosta uma cabana de sapé. De longe e visto de perfil, o rochedo parecia um tropeiro, derreado sobre o pescoço da mula e carregando às costas sua maca de viagem.

Nas abas dessas colinas de granito, do lado oposto à margem do rio, notava-se a vegetação especial, que revela a existência das águas dormentes e profundas. Talvez para os outros, os nenúfares e as plantas que vivem à borda dos lagos, não tenham como para mim, uma expressão melancólica e absorta. O mesmo sucede com os pássaros aquáticos; todos eles são taciturnos e graves.

Essa vaga tristeza é congênita das profundidades. Encontra-se nos abismos da terra, assim como nos abismos da alma. Um espírito concentrado e recôndito tem pensamentos e sorrisos que bóiam à superfície como essas ninfeias, cobrindo de flores magníficas um pego de aflição e martírio.

Tudo indicava que ali nas fraldas do rochedo havia uma lagoa; mas não se podia chegar às margens nem ver as águas porque um muro de pedra seca, já coberto de musgo e orquídeas, impedia a passagem do lado por onde as fragas do rochedo permitiriam o acesso. Muito zelo tinha daquele sítio seu proprietário; pois além do valo, havia um duplo renque de espinheiros, enleados de cipós, cujo fim era proteger o muro contra qualquer projeto de escalada, e até escondê-lo à vista.

O improvisado pelotão de Mário entrou galhardamente pela várzea, com rufo de caixa, mas reduzido apenas ao comandante e ao tambor. Adélia arrependera-se logo da condescendência, imprópria de uma mocinha do tom; a mucama não quis ficar atrás. Quanto a Alice, a sua natureza de colibri não a deixava sujeitar-se a esses brinquedos estudados. A travessura da linda menina era uma inspiração, um adejo gracioso.

— Alto frente! Apresentar armas! gritou Mário.

O Martinho, fino na manobra, transformou-se imediatamente de tambor em soldado de fileira. Levantou verticalmente o braço esquerdo como se fosse cano da espingarda, e estendeu a mão direita na altura da suposta coronha.

— Tarara-ram! Tarara-ram! Tarara-ram, tram!...

E ei-los a tocar o hino nacional com acompanhamento de zabumba e trombone.

O importante personagem, honrado com essa continência militar, era um preto, que assomara à porta da cabana de palha, trazido naturalmente pelo rufo da caixa e pelo gazeio dos meninos.

Quando ele viu quem se aproximava, voltou-se e disse para dentro:

— Olha, mãe; é nhanhã que vem visitar a você!

— Bendito sejas, meu Menino Jesus! respondeu uma voz doce e arrastada.

Entretanto prosseguia a continência:

— Viva papai Benedito! gritou Mário.

— Viva!... berrou o Martinho dando no ar uma cambalhota.

— Viva o rei do Congo!

— Viva! responderam todos.

— Obrigado, meu branco, obrigado.

Isto dizia o preto descendo a ladeira e parando a cada passo para curvar-se, abrindo os braços e beijando as duas mãos em sinal de agradecimento.

— Este meu nhonhô quer zombar de seu negro velho!... Zomba, zomba, não faz mal! Eu gosto de ver você contente, contente, rindo com a camaradinha!

E o bom preto expandia-se de júbilo, mostrando duas linhas de dentes alvos como jaspe. Ser motivo de alegria para esse menino que ele adorava, não podia ter maior satisfação a alma rude, mas dedicada do africano.

A meio da ladeira, encontrou-se pai Benedito com Mário, que saltou-lhe ao pescoço.

— Assim, meu nhonhô, abraça seu negro. Mais!... dizia Benedito suspendendo nos braços o menino.

— Eu trouxe uma cousa para você, Benedito! murmurou-lhe Mário ao ouvido.

— Da cá, nhonhô, exclamou o preto ajoelhando para receber o presente.

— Logo! disse rápido o menino lançando um olhar desconfiado para as companheiras que se aproximavam.

Benedito compreendeu:

— E sinhá D. Francisca, está melhor, meu nhonhô? perguntou o preto com interesse.

— Ela diz que está; mas...

O olhar triste do menino acabou a frase.

Alice chegava com Adélia e as mucamas:

— Adeus, papai Benedito; como vai vovó?

— Chocando, chocando, nhanhã! Enquanto não tirar aquela cafifa do corpo, não fica boa!

A cafifa da tia era um reumatismo crônico, mas de acessos periódicos, que a punham de cama e tolhida por muitos dias.

— Eu vim visitar a ela. Mamãe mandou.

— Deus lhe pague, nhanhã. Vai; ela há de ficar muito contente.

A linguagem dos pretos, como das crianças, oferece uma anomalia muito frequente. É a variação constante da pessoa em que fala o verbo; passam com extrema facilidade do ele ao tu. Se corrigíssemos essa irregularidade, apagaríamos um dos tons mais vivos e originais dessa frase singela.

Quando as meninas entraram na cabana, Mário que as acompanhara com o olhar, tirou do seio um pequeno embrulho enrolado em um lenço. Dentro havia uma moedinha de prata de cunho antigo que valia uma pataca, e um pequeno registro de São Benedito.

O preto recebeu o mimo de joelhos, e como se fosse uma relíquia sagrada. Não é possível pintar a efusão de seu contentamento nem contar os beijos que deu nas mãos de Mário e nos presentes, ou as ternuras que na sua meia língua disse ao santo e à moeda.

Cumpre advertir que pai Benedito não era desses pretos, que suspiram pelo vintém de fumo; ele gozava de certa abastança, devida a seu gênio laborioso, e às franquezas que lhe deixava o senhor. Seu reconhecimento não tinha pois mescla de interesse; era puro gozo de saber-se lembrado e querido pelo menino.

De seu lado Mário gozava também daquele prazer que ele causara, e que por uma espécie de refração comunicava com sua alma. A expressão terna que se derramava agora na sua fisionomia, era muito rara. Para trazer ao preto aquele insignificante presente, ele fizera o sacrifício de muitas dessas ambições infantis, que sonham com uma caixa de soldadinhos de chumbo, ou com uma carta de bichas; ambições tão ardentes, porém menos funestas, do que a dos meninos de cabelos brancos pelos soldadinhos de chumbo que se chamam correios de ministros, e pelas bichas que se chamam salvas de artilharia.

Pai Benedito era um preto alto e robusto. Ordinariamente grave e tristonho, a idade que já andava pelos sessenta, o natural temperamento, e especialmente sua qualidade de feiticeiro, o dispunham ao recolhimento e constante preocupação.

Mas havia uma força bastante poderosa para arrancar ao seu natural essa alma robusta; era a afeição de Mário. Nada mais interessante, do que ver o negro atlético dobrar-se ao aceno de um menino; lembrando um desses enormes cães da Terra-Nova, que se deixam pacientemente fustigar por uma criança, mas estrangulariam o homem que os irritasse.

Entrando na cabana, Mário achou Alice e Adélia sentadas à cabeceira de tia Chica.

— Benza-a Deus! Cada vez mais bonita! dizia a preta. Eufrosina, você tenha muito cuidado com minha nhanhã.

— Bonita, vovó, é esta carinha! Não dá vontade de beijar? disse Alice passando a mão por baixo do rosto de Adélia e atraindo-o a si para imprimir-lhe os lábios.

— Me deixe, Alice. — É mesmo um amor de bonita! Mas minha nhanhã!...

— Ambas são muito bonitas, não é, tia Chica? disse Eufrosina.

— São duas flores; o lírio e a rosa, acudiu a espevitada da Felícia.

— É verdade; bonitas que não têm mais para onde! Mas esta mocinha é a afilhada de meu senhor, não é, nhanhã?

— É Adélia, é!

— Como está crescida!

— Veio passar estes tempos conosco, porque o pai tem andado doente.

— Adeus, vovó; está melhor? disse Mário adiantando-se.

— Melhorzinha, nhonhô Mário, parece que Nosso Senhor ainda não me quer.

— Há de ficar boa logo; eu já rezei a Nossa Senhora! exclamou Alice.

— Reza, reza nhanhã. Deus lhe há de pagar.

Dizendo isto, a tia Chica descobriu o marido em pé na porta da cabana.

— Olha, calunga; você ainda não viu o presente que nhanhã me trouxe. Como eu vou ficar chibante, hein!

Enquanto Benedito examinava gabando o vestido e o xale de lã bem como um adereço de miçangas azuis, que Alice trouxera para sua vovó preta, Chica pela terceira ou quarta vez julgou-se obrigada a abraçar a menina e beijá-la com efusão:

— Está com inveja, calunga? disse a preta sorrindo para o marido.

— Também eu tive quem se lembrasse de mim; não foi você só.

— Ah! deixa ver!

— Não se mostra.

Mário agradeceu ao preto com um olhar aquela reserva.

— Não é capaz de ser tão rico nem tão bonito como o meu! replicou a tia Chica.

— Mais!...

— Não, Benedito, você não tem razão. Eu sou pobre; não posso dar presentes ricos, como a filha de um barão!

— Mário, vovó não quis dizer isto! Estava brincando!

— Mas, nhonhô Mário... eu...

— Está o que sucede, mãe; não era melhor ficar aí com sua língua bem sossegada, observou Benedito acompanhando o menino que saíra bruscamente.

Chica ficara atordoada. Sua intenção fora apenas meter o marido em brios para mostrar o presente que recebera e satisfazer-lhe assim a curiosidade. O efeito imprevisto de suas palavras a surpreendeu dolorosamente.