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O Tronco do Ipê/I/IV

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O caráter de Mário tinha aquela singularidade, que frisara perfeitamente a comparação rústica da Eufrosina.

Esse menino frio, de poucas palavras, movimentos graduados, que parecia querer tomar uns ares ridículos de homem sério; essa natureza de ordinário inerte ou pelo menos tolhida, tinha intermitências incompreensíveis, durante as quais se operavam as expansões enérgicas e vigorosas de seu organismo.

Era o gamo, condenado por muito tempo à imobilidade, que uma vez solto, arroja-se por despenhadeiros e precipícios. Nada o detinha então; arrostava o perigo e vencia o obstáculo com agilidade e impavidez admiráveis. Havia nesse corpo uma superabundância de seiva, que precisava desperdiçar, para não ficar sufocado. Depois voltava à sua habitual calma e sisudez.

Embora essas alternativas fossem o efeito de uma idiossincrasia moral, filha da natureza e também da educação, contudo Mário já governava seu caráter; o que prometia para mais tarde o homem de boa têmpera, capaz de grandes cometimentos.

Assim o menino podia conter por muito tempo, como já havia sucedido, as expansões de seu organismo, perseverando, à força de vontade, na sua habitual frieza e desdém, apesar das tentações que o provocavam, e do viço infantil que o impelia.

Mas sucedia naturalmente que, depois de uma dessas abstinências, não havia uma expansão, e sim uma explosão. Era como se o menino tivesse encerrado no corpo um fluido elétrico, que procurasse desprender-se por sucessivas descargas.

Depois de uma ginástica desesperada sobre os mais finos galhos das árvores, Mário, para rematar esse primeiro ato da sua representação acrobática, lançou-se da grimpa do jambeiro e desceu às cambalhotas, suspendendo-se ora nas mãos, ora nos pés.

Afinal puseram-se as meninas de novo a caminho.

Adélia, conservando ainda uma ligeira palidez do susto que lhe causara a descida de Mário, voltou-se para o menino com uma expressão de gentil severidade, que dava a seu belo rosto de criança muito encanto:

— Quando Alice corria no jardim, você não achou bom.

— Oh! ele sempre acha ruim o que eu faço, acudiu Alice com o seu doce e franco sorriso.

— Vamos, diga!

— Não me lembro, respondeu Mário com indiferença.

— Ora não se lembra; e há bocadinho, quando ela quis trepar na goiabeira?... Você também ralhou com ela; e depois fez muito pior. Daquela altura pendurou-se em risco de morrer.

— Nada se perdia! disse Mário com desdém.

— Mas então você não pode falar de Alice.

— Ela é rica, tem seu pai e sua mãe, que haviam de chorar muito se qualquer cousa lhe acontecesse; há de ter uma vida feliz. Mas eu!... Um pobrezinho, que já não tem pai e vive à custa dos outros, que faz neste mundo?

— Mário! disse Alice com exprobração.

— E sua mãe? interrogou Adélia.

— Minha mãe, coitada, pouco tem de viver: bem ouvi o médico dizer. Por ela já tinha ido reunir-se a meu pai no céu; é por mim só, que se resigna a estar ainda separada dele. Quando eu me lembro disto... O melhor é não falar nestas cousas.

— Vamos conversar sobre o casamento de D. Elisa com o Sr. Oscar, e do baile que há de haver, sim? disse Felícia.

— Quando será o casamento? perguntou Adélia sorrindo.

— Amanhã, sem falta.

— Eu também sou convidada? perguntou a Felícia.

— Está entendido.

— Há de ser uma festa! exclamou Alice, batendo palmas.

— A noiva é bonita, já se sabe, disse a mucama.

— Muito, e tão mimosa!... Como Adélia!

— Como você, Alice, ela tem os olhos azuis!

— Não se fala da cor dos olhos, mas da graça e das maneiras. D. Elisa é uma moça da corte, que anda no rigor da moda; parece que chegou de Paris. Tão faceira!

— E você não é, Alice?...

— Não tenho de que, Adélia.

— Ande lá, e esse rostinho de anjo? disse a amiguinha cingindo-lhe a cabeça loura com o lindo braço, e beijando-a na face.

Alice corou e retribuiu a carícia.

— Mas gentes, o noivo? Ainda não se disse uma palavra do noivo; que ingratidão!

— Bonito moço! E tem talento, como Mário, respondeu Alice.

— Gostaria mais que ele se chamasse Fernando.

— Oh! Adélia, Oscar é um lindo nome.

— Fernando é mais lindo: Ó mio Fernando! como mamã canta.

Nessa conversação Mário não tomou a mínima parte. Tendo chegado ao fim do pomar, e descoberto um ninho de anum, escondido na folhagem de um jequiá, operou segunda ascensão em busca dos lindos ovos azuis.

Ao descer sucedeu-lhe um fracasso; prendeu-se uma ponta de galho seco à manga do jaleco e abriu-a ao meio, pondo-o à moda do tempo de D. João II.

— Aí está em que dão as travessuras! disse Adélia.

— Não faz mal, redarguiu o menino enrolando a manga rasgada.

— Se faz! observou a Felícia. O senhor ainda agora disse que era pobre: quem é pobre não estraga a roupa assim. Depois mamãe é que tem o trabalho.

— Não é ela que paga; é o sr. barão.

— Por isso mesmo; deve poupar para que ele não faça muita despesa.

Mário sorriu de um modo singular:

— Oh! ele gosta que eu estrague, para mostrar a sua generosidade!

— É porque papai estima a você como um filho!... disse Alice fitando nele os grandes olhos azuis, com uma expressão de terno ressentimento.

— Eu cá sei!

— Ah! que lindos! disse Adélia admirando os ovos de anuns.

— Não é verdade, Adélia?

— O quê?

— Papai não estima a Mário como a um filho?

— Meu padrinho sempre diz.

— Está bom, está bom, soltem-me, disse Mário sôfrego.

Esta intimação era feita a Alice que desenrolara a manga rasgada e procurava arranjá-la com alfinetes.

Nesta ocasião chegou ainda açodada, e a todo o pano, a parda Eufrosina. Quando o Martinho viu-lhe a gaforinha despontar ao longe, lançou em torno de si um olhar para estudar o terreno, e tomar posição que facilitasse a retirada honrosa; porque o pajem sabia por experiência que em tais circunstâncias, a parda servia de batedor ao tio Leandro ou à comadre Vicência, ilustres progenitores do pimpolho.

Desta vez porém se iludira. A Eufrosina vinha só; chegando junto ao grupo, tomou uma atitude importante, própria do caso, e disse:

— Sinhá mandou dizer que volte tudo para casa e já. Acabou-se o passeio.

Diante da ordem tão peremptória, ficaram todos passados, até Adélia e sua mucama que embora não mostrassem antes grande entusiasmo pelo passeio, eram agora excitadas pela contrariedade. Só Mário protestou uma desobediência positiva:

— Eu hei de voltar quando quiser!

— Sinhá D. Francisca está chamando vosmecê.

— Não ouço, disse Mário escarnecendo.

— Ela mandou chamar por mim!

— Não me contes histórias!

— Mas, Eufrosina; mamãe me deu licença para ir ver vovó preta, que está doente.

— Não sei disso, nhanhã; eu obedeço ao que me mandam.

— Como foi que mamãe disse?

A parda titubeou:

— Peta!... gritou Mário. Ela não passou do jardim, e vem com estas invenções para ver se alguém fica com medo!

— É verdade!... Esta Eufrosina escorrega como que!... observou o pajem.

— Vem, vem te meter, safadinho!

O Martinho recuou diante das cinco unhas, que ele tinha a honra de conhecer.

— Ih!... Está danada! Foi apanhada com a boca na botija!

— Quando chegares à casa hás de ver.

— Mentira só!...

— Mas então em que ficamos? perguntou Adélia.

Alice hesitou:

— Se mamãe mandou!...

— Não mandou nada, nhanhã; acudiu o pajem.

— Fica por minha conta, disse Mário. Vamos; em frente, dobrado, marcha. Rufa tambor.

O Martinho não se fez esperar; fazendo tambor de um embrulho que trazia embaixo do braço, e vaquetas dos dedos, rompeu a marcha:

— Ru! tru! Rato na casaca, camundongo no chapéu! Ru! tru! Rato na casaca, camundongo no chapéu.

Mário seguiu comandando a fileira que se compunha das duas meninas e da Felícia. Ao mesmo tempo fazia ele as vezes de pífaro, que imitava perfeitamente com o assobio.

Quanto a Eufrosina, ficou atrás como bagagem pesada. A mucama de estimação da baronesa estava em dia de caiporismo. Depois do grotesco acidente da pomada de jaca, tudo lhe corria mal.

Tendo partido como uma fúria para queixar-se à senhora das artes do nhonhô Mário e desaforos do pajem; resolvida a obter reparação completa ou a pedir venda, a Eufrosina pela preocupação em que estava, não viu uma pedra no caminho, e deu uma formidável topada.

Não há nada para chamar à terra um espírito que paira nas mais altas regiões, como seja uma topada. A Eufrosina sentou-se sem querer, e apertando o dedo com a mão direita absorveu-se nessa dor de unha machucada, que representa na escala da dor o papel do dó sustenido do famoso Tamberlick, na solfa musical.

Quando pôde andar, a parda com o pé afogueado, mas por isso mesmo com a cabeça mais calma, refletiu que no fim de contas o mais prudente era esquecer a aventura. Primeiramente ela comparara o menino a um cabritinho; e o barão, sabedor do caso, não havia de gostar dessa licença poética. Depois o negócio da jaca era tão ridículo, que em vez de ralharem com o menino e castigarem o pajem, eram capazes de rir à custa dela.

Por estas razões, assentou de retroceder; inventando porém a mentira que sabemos, como um pretexto para voltar e tomar ao mesmo tempo uma desforra. Depois de lavar no tanque próximo a cabeça e o pé, tomou na direção em que viera.

Sua intenção era, quando as meninas contrariadas pela ordem já viessem de volta, ela triunfante e generosa conceder o perdão; e consentir que continuassem o passeio.

Mas a esperteza de Mário desconcertou-lhe o plano, colocando-a de novo em posição ridícula.

Já se vê pois que a Eufrosina tinha razão de estar maçada.