O Tronco do Ipê/I/VII

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A palhoça do marido da tia Chica era bem antiga e tinha antes dele pertencido a outro.

Esse primeiro dono foi um negro cambaio, que ali viveu desde tempos remotos, quando a fazenda não passava de uma roça à toa com um velho casebre e alguma plantação de mandioca e milho.

O aspecto disforme do negro, e o isolamento em que vivia naquele sítio agreste em meio de ásperos rochedos, incutiram no espírito da gente da vizinhança a crença de que o pai Inácio era feiticeiro. Realmente ele tinha todos os traços que a superstição popular costuma atribuir aos bruxos.

Desde então nenhuma catástrofe se deu por aquela redondeza, nenhum transtorno ocorreu, que não fosse lançado à conta da mandinga do negro. Se um roceiro caía do cavalo e quebrava a perna; se alguma dona de casa se queimava no tacho de melado ou no forno a fazer beiju; se dava a peste nas galinhas ou chochava o grão na espiga do milheiral, não tinha que ver: era feitiço; e as vozes se uniam em uma só praga e esconjuro contra o bruxo do inferno que encafifava a todos e a tudo.

Era porém especialmente ao boqueirão que, segundo as beatas do lugar, presidia o pai Inácio; colocado pelo inimigo de propósito naquele sítio, para enganar os viajantes e atirá-los no redemoinho. Cada alma que o feiticeiro assim entregava em pecado mortal e sem confissão ao inferno, eram mais dez anos de vida que o diabo lhe deixava; por isso já andava ele seguramente pelos cento e vinte, senão mais; pois a parteira que passava por ser a pessoa mais velha do lugar, o tinha visto em pequena já assim como ele estava de cabeça ruça.

Quem não se achasse em estado de graça, bem confessado e comungado, não devia pois arriscar-se nas proximidades do boqueirão; porque com certeza lá ficava embaixo d'água por uma vez. Não havia santo, nem oração, que o salvasse das manhas do bruxo, fino como um azougue e capaz de enganar ao próprio diabo, seu mestre dele.

Ou porque o feiticeiro não achasse mais alma penada para à custa dela ganhar um suplemento de vida, ou porque se aborrecesse deste mundo; o caso é que um dia desapareceu e ninguém mais soube novas dele.

Já então havia a roça, desde anos, passado para outro dono, que fez dela uma bonita fazenda.

Esse novo proprietário, que era Figueira, a avô de Mário, trouxera vários escravos e entre eles um molecote de nome Benedito, colaço e pajem do filho José. Pelo tempo adiante o mancebo casou-se e retirou-se da fazenda, agastado com o pai; Benedito, que já tinha mais de quarenta anos, era cativo; não pôde acompanhar o senhor moço, como lhe pedia o coração.

A casa onde vivera feliz, tornou-se para ele insuportável; começou a ausentar-se da senzala para onde o tinham mandado, e a faltar ao trabalho. Sucedendo ficar sem dono a cabana do rochedo, pediu ao senhor que o deixasse morar ali, no que não houve dificuldade.

Com a palhoça, Benedito herdou a reputação de feiticeiro do pai Inácio; sobretudo depois que novos desastres se deram no boqueirão. Embora não tivesse o novo habitante a fealdade característica da profissão, a gente do lugar estava tão acostumada a contar com um mandingueiro para explicar as desgraças e reveses, que não podia dispensar esse personagem importante de suas histórias da carocha.

E pois, como Benedito era um bonito negro, de elevada estatura e fisionomia agradável, as beatas inventaram outro Benedito à sua feição. A dar-se crédito à palrice das tais velhas, aquele preto bem apessoado, em sendo meia-noite virava anão com uma cabeça enorme, os pés zambros, uma corcunda nas costas, vesgo de um olho e torto do pescoço.

Era o pacto que tinha com seu mestre, de não parecer de dia qual era à noite.

Segundo outros, esse Benedito não era senão o mesmo pai Inácio, ou para melhor dizer, um rebotalho do inferno que tomara figura de negro para tentar a gente cá na terra. Embora objetassem alguns que antes do preto velho desaparecer, já o outro existia na fazenda, onde fora visto ainda molecote; acudiam as comadres que o inimigo sabia fazer as cousas; sumira o pajem antes de tomar-lhe a figura. A prova era que Benedito, sempre tido como bom cativo, dera ultimamente em ruim e até fujão.

Em face de razões tão peremptórias, ficou o Benedito tido e havido por feiticeiro. Todos se temiam dele; mas não faltava também quem recorresse a seu poder sobrenatural para cura de certas enfermidades, para descobrimento de cousas perdidas, e realização de ocultos desejos.

Por mais que se escusasse, força lhe foi recorrer ao arsenal de bruxarias deixado pelo pai Inácio, e satisfazer aos rogos dos parceiros. Algumas cousas que disse, aconteceu saírem certas, e tanto bastou para aumentar a fé na sua mandinga.

Pai Benedito, porém, era um feiticeiro de bom coração. Em vez de usar de seu poder para soprar intrigas e desavenças, ao contrário, servia de conciliador em todas as brigas que se davam entre os pretos da fazenda; aconselhava os parceiros nos casos de aperto por alguma falta; e apadrinhava o fujão perante o antigo senhor que o tinha em grande estima e muitas vezes o ia visitar na sua cabana. Quanto ao novo, não o tratava com a mesma amizade; mas rara vez lhe recusava o que pedia.

Esse último dono da fazenda trouxera tia Chica, ama que fora da mulher. Benedito agradou-se dela; e casaram-se.

Desde então viviam os dois na palhoça muito satisfeitos um do outro. Tia Chica depressa conformou-se às feitiçarias do marido; assim como pai Benedito se acostumou ao reumatismo da mulher. As únicas rezingas que havia entre eles eram a propósito de Mário e Alice.

Ambos se desvaneciam de serem um tanto ascendentes de seus prediletos. Benedito, como fora pajem grande do pai de Mário em criança, considerava-se até certo ponto avô do menino. Da mesma forma tia Chica, que tinha criado a mãe de Alice, olhava para esta como se fosse em parte sua netinha.

Cada um exaltava o seu ídolo, com entusiasmo ardente e exclusivo; daí nasciam as zangas e as brigas; porque nenhum queria admitir que houvesse quem se pudesse comparar, quanto mais exceder, ao objeto de suas candongas.

Tinham decorrido alguns instantes depois das palavras proferidas por Benedito a respeito de seu falecido senhor moço. Ninguém se animava a quebrar o silêncio que deixara a voz grave e triste do preto, quando Eufrosina lembrou-se que era tempo de voltar à Casa Grande e exclamou percorrendo o aposento com um olhar inquieto:

— Gentes! Quedê nhanhã Alice?

— Está vendo as galinhas, respondeu tranquilamente Chica.

— Há tanto tempo!

— Nhanhã!... Nhanhã Alice! gritou Eufrosina para o interior.

Alice não respondeu.

— Entra, Eufrosina! disse Chica vendo que a mucama hesitava.

A cabana tinha além do primeiro repartimento mais três divisões, a última das quais abria para um terreiro fechado entre paredes de rocha viva. De um lado havia uns degraus que iam ter à margem do rio; do lado oposto via-se uma fenda que dava passagem para a lagoa, e parecia antes uma grota do que uma saída.

No fundo, uma cerca de varas formava um pequeno galinheiro, bem provido; o que depunha a favor dos talentos caseiros de tia Chica.

Em curto momento percorreu a Eufrosina o terreiro e o resto da cabana, chamando pela menina. Voltou assustada ao último ponto.

— Não está no terreiro!

— Há de estar aí dentro mesmo.

— Corri tudo.

— Mas se ela não saiu ainda?

— Querem ver que nhanhã se escondeu para meter susto à gente! observou o Martinho.

— Nhanhã Alice! Eu não gosto destas graças! dizia a Eufrosina procurando.

Pai Benedito, sentado a um canto com a fronte apoiada sobre os joelhos, na posição de um ídolo africano, e absorvido em profunda cogitação, conservara-se inteiramente alheio ao que passava na cabana. Mas afinal a agitação produzida pela ausência incompreensível de Alice chamou-lhe a atenção.

— O que é?

— Nhanhã Alice que não aparece.

— Foi lá no terreiro ver a galinha dela, e agora ninguém sabe onde está, disse a Chica trêmula de inquietação, mas fazendo um esforço para erguer-se da cama.

— Lá no terreiro?... perguntou o preto velho com a voz lenta e surda.

— Sim!

O talhe elevado do negro foi-se desdobrando vagarosamente até erigir toda a estatura. Seus lábios murmuravam palavras entrecortadas, impossíveis de entender. Rezava ou fazia uma imprecação a algum espírito invisível.

Nesse momento derramou-se na cabana um som que podia ser gemido, ou talvez exclamação de surpresa a que o eco tivesse repassado de certa modulação plangente.

Chica, já de pé e apoiada à um bordão para ir ela mesma procurar sua querida nhanhã, caiu como fulminada sobre o leito. Os outros ficaram atados pelo terror, incapazes de uma resolução.

Só Benedito arrojou-se com ímpeto ao terreiro da cabana.