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O Tronco do Ipê/I/XIX

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Enquanto se faziam os últimos preparativos, Alice foi à sala buscar o Sr. Domingos Pais.

Este curioso personagem ocupava na casa do Barão da Espera o emprego de compadre. Muitas pessoas talvez ignorem a natureza e importância deste cargo, que existe em quase todas as casas de ricos fazendeiros.

Um compadre não é parente, nem hóspede, nem criado; mas participa dessas três posições; é um ente maleável que se presta a todas as feições e toma o aspecto que apraz ao dono da casa; é um apêndice da família da qual ele se incumbe de suprir quaisquer lacunas, e de apregoar as grandezas.

Há na casa outros compadres, mas são conhecidos por seu nome: o compadre por excelência, o compadre da família, aquele que não precisa de outro qualificativo é ele, o homem de todas as ocasiões, o comensal efetivo, pronto sempre para conversar, andar, jogar e comer, conforme a veneta do protetor a quem anexou-se.

O compadre, além da família a que se agrega, tem uma família própria, mas esta só lhe serve para formar os pimpolhos que dão lugar ao compadresco, e para exercitar a paciência indispensável ao bom desempenho de seu emprego. Como chefe da família, sua missão pois não é criar filhos, mas unicamente fabricar afilhados.

Nenhum compadre acumulou jamais tão várias e importantes funções como o Sr. Domingos Pais. Era recado vivo para os vizinhos, e bilhete de convite para as festas ou banquetes. Servia de parceiro do solo, sendo preciso; fazia de carrancho no voltarete; jogava o gamão com a baronesa, e o burro com as crianças que não terminavam sem deitar-lhe duas orelhas de papel. Fazia dançar as velhas e feias que não achavam par; estava sempre disponível para padrinho das crias da fazenda; ajudava à missa; e finalmente, além de muitas outras incumbências, paroquiava as bonecas de Alice, isto é, celebrava os batizados e casamentos de brinquedo.

Fora para exercer esta última função, e unir em laços matrimoniais D. Elisa e o Dr. Oscar, que Alice o foi buscar à sala. Quando voltava com ele pela mão, parou na porta empalidecendo.

O Martinho, durante a ausência da filha do barão, tinha entrado na saleta:

— Eh! nhô Mário anda muito por cima hoje.

— Por quê?

— Não sabe? Lá está seu lugar na cabeceira da mesa, junto de nhanhã Alice, todo enfeitado. Flor muita; fita também. Não vê que nhô Mário é o rei da festa? e nhanhã Alice a rainha. Hih!... Banquete de estouro! Champanha está fervendo.

Foi por ouvir estas palavras e perceber a impressão estranha produzida no semblante de Mário, que Alice descorou:

— Martinho! exclamou ela com severidade.

— Não disse nada, não, nhanhã!

— Se papai soubesse!...

Alice conhecia instintivamente o caráter de seu companheiro de infância e receava muito da influência que teria a revelação do pajem no gênio desconfiado e caprichoso de Mário. A cerimônia do casamento, cujos preliminares eram determinados com toda a gravidade pelo Sr. Domingos Pais, a distraiu.

O ilustre pároco das bonecas benzeu a água, paramentou-se com uma toalha passada pelos ombros, e ia pronunciar o conjugo vobis, quando se deu pelo desaparecimento de Mário. Faltava o padrinho; procurou-se o menino por toda a casa: trabalho inútil.

Lúcio de novo ofereceu-se para padrinho, mas Alice zangada mandou tirar todas as bonecas e brinquedos, protestando que não queria mais saber deles.

Assim desfez-se o casamento do Dr. Oscar e D. Elisa com bastante mágoa dos convidados.

À hora de jantar ainda não se tinha encontrado Mário, o que muito contrariou o barão, e entristeceu Alice. O fazendeiro desejava fazer uma pública e solene consagração de seu reconhecimento. Na cabeceira da mesa do banquete, sobre um estrado com dossel forrado de sedas escarlates e enfeitado com grinaldas de flores, estavam colocadas as cadeiras destinadas aos dois meninos.

O Conselheiro Lopes devia comemorar em um discurso arrebatador o acontecimento, que dera motivo à festa. O vigário preparara um soneto e umas quadrinhas, para recitar na sobremesa, quando se fizesse a saúde do herói. O Sr. Domingos Pais fora incumbido de começar com força os hips que de ordinário os convivas por acanhamento não se animavam a soltar, senão depois de eletrizados.

A ausência de Mário diminuiu o prazer e alegria da festa, mas não transtornou o programa. Principiou o banquete e prolongou-se até à noite ao som da banda de música dos pretos da fazenda, que tocava quadrilhas e valsas. Afinal chegou a ocasião das saúdes, discursos e versos; o entusiasmo era tal que ninguém talvez, à exceção de D. Francisca e Alice, lembrou-se de Mário nessa ocasião.

Só muito depois de terminado o banquete, é que Mário, ainda um tanto arisco, foi-se aproximando da casa.

O menino, desde que salvara Alice, achava-se coacto com a gratidão do fazendeiro, e a consideração que adquirira na família. Essa nova situação o incomodava; muitas vezes chegava ao ponto de irritá-lo. Preferia a má vontade ou indiferença com que o tratavam anteriormente. Essa luta incessante contra os que o cercavam, correspondia melhor à sua índole, às tendências de seu coração. Enquanto o repreendiam a cada instante e o maltratavam, ele tinha o direito de odiá-los com todas as forças de sua alma. Mas agora que se mostravam bons, sentia-se constrangido.

Praticando o seu ato de heroísmo, cuidara esmagar o barão sob o despeito de lhe dever, a ele um coitadinho, a vida de sua filha. Entretanto era o barão que o esmagava com sua nobre e suntuosa generosidade.

Pesava tanto a Mário a gratidão criada pela salvação de Alice, que chegou a arrepender-se de seu impulso. Aceitou pois com fervor uma ocasião que se ofereceu para escapar à incômoda posição. Tratando-se do projeto de concluir os preparatórios na Corte, pediu ele para partir imediatamente, ao que a mãe e o barão acederam, enxergando nisso ardor pelo estudo.

Não se enganavam de todo; Mário era também movido por esse estímulo nobre. Havia em seu espírito a ardente curiosidade de saber, que revela as energias de uma inteligência precoce. O segredo das grandes vontades, como dos grandes talentos, não é outro senão a intuição da incógnita. Quando o espírito tem consciência de sua ignorância, ele sente a necessidade de a debelar.

Apenas duas pessoas se aperceberam do aparecimento de Mário; porque o esperavam com ansiedade. Foram D. Francisca e Alice; nenhuma aludiu à sua ausência durante o jantar; por uma delicadeza espontânea calaram-se a este respeito.

O baile começara. As quadrilhas formadas se entrelaçavam. Lúcio tinha alcançado um lugar para ele e Adélia, seu par; valeu-lhes o Sr. Domingos Pais que serviu de vis-à-vis, tendo por par a sogra do administrador. Dessa noite em diante o velho acumulou mais este importante emprego aos outros que já exercia na fazenda.

Alice, aproveitando o momento em que a contradança atraía a atenção geral, trocou algumas palavras em segredo com o pai, e tirando-lhe do bolso da casaca uma caixinha oval de tartaruga, aproximou-se de Mário, que estava de pé apoiado no recosto da cadeira de D. Francisca.

Com os olhos baixos e a voz trêmula de emoção, mas com um sorriso nos lábios, a menina apresentou a caixinha a seu companheiro de infância.

— Tome, Mário; quando olhar para ele, lembre-se de mim. Para contar os instantes que você passará longe de nós, não preciso dele; tenho meu coração: basta pôr a mão aqui.

— Que é isto? perguntou Mário bruscamente.

— Veja, respondeu Alice.

O menino apertou a mola da caixa de tartaruga e viu dentro um lindo relógio de senhora, com tampa esmaltada de verde, e a firma de Alice – A. F. – cravada em diamantes. Ao aro estava preso um cordão feito dos cabelos da menina.

Não havendo tempo de mandarem ir da Corte um presente, que fosse do agrado de Alice, combinou ela com seu pai dar a Mário como lembrança, na véspera da sua partida, aquela joia. O barão acedeu, fazendo tenção de encomendar para a filha outro relógio mais rico.

Lançando um olhar rápido e cheio de prevenções ao interior da caixa, Mário exclamou com ar de mofa:

— Tinha que ver! Andar eu com um reloginho de mulher!

— Mário! exclamou D. Francisca penalizada em extremo.

A boa senhora disfarçou como pôde o arrebatamento do filho. Tomando a caixa do colo, onde o haviam deixado as mãos dos dois meninos retraindo-se, ela obrigou afetuosamente o filho a admirar a delicadeza do trabalho. À força de carícias e de ternuras conseguiu que Mário apertasse a mão de Alice em sinal de agradecimento e de despedida.

Alice não proferiu uma queixa; mas seu coração fora magoado pelo frio desdém.

Quando o toque d'alvorada, no sino da fazenda, a despertou, seu alvo travesseiro estava molhado de lágrimas. A menina ergueu-se de manso, e vestindo-se ligeiramente encostou a fronte ao caixilho da janela de sua alcova. Os primeiros albores da luz empalideciam as trevas do horizonte.

No pátio se distinguiam os rumores que anunciam o despertar de um estabelecimento rural. Na estrebaria especialmente, o tropel dos cavalos ou mulas e o resmoer do milho nos embornais, indicavam próxima jornada.

O primeiro arrebol dourava as nuvens quando Mário montou a cavalo em companhia do capataz que devia conduzi-lo à Corte.

Vendo sumir-se na volta do caminho o vulto de seu companheiro de infância, a menina levou a mão ao seio, que arfou com um longo suspiro.

Era o pungir da primeira saudade.