Saltar para o conteúdo

O Tronco do Ipê/I/XV

Wikisource, a biblioteca livre

Com o arremesso do salto, o corpo de Mário retalhara a onda e submergira-se profundamente.

Houve um longo momento de ansiedade para as pessoas que esperavam, tomadas de espanto, o resultado do terrível sinistro. A água fechara a voragem, polindo de novo a face muda e gelada. Parecia que o abismo tinha dito sua última palavra: o consumatum est dos grandes desastres.

Afinal alguma cousa rompeu esfrolando a tona do lago. Seria um peixe que viera beijar a flor d'água, ou algum silfo de asas transparentes que frisara no seu voo a límpida veia?

A trêmula ondulação foi-se estendendo; e deixou ver distinta a sombra do objeto que a produzia. Era o botim de Mário, cujo corpo verticalmente submergido, não se percebia ainda. A agitação constante do pé do menino, e os esforços violentos que fazia para subir à superfície, revelavam uma luta desesperada.

Com efeito, o intrépido nadador, descendo a prumo ao fundo do abismo, tivera a felicidade de encontrar ao alcance da mão o corpo de Alice, arrebatada pelo torvelinho. Enlaçando-lhe com o braço o colo e a espádua e estreitando-a ao seio, procurou surdir; mas, além do ímpeto do remoinho, o peso dos vestidos alagados e da própria roupa que não tivera tempo de tirar, tornavam a empresa talvez superior às suas forças.

Mário havia afrontado o abismo; mas só, com os dois braços livres, sem roupa que o tolhesse. Era muito diferente agora que só tinha um braço livre, e esse único, para esforço triplo.

Não obstante ele continuava a lutar. Achava-se justamente no lugar mais estreito do remoinho, no que se poderia bem chamar a faringe do abismo. Era aí o foco do turbilhão; era aí que a onda angustiada pela rocha, se precipitava com ímpetos medonhos nas profundezas da caverna.

Mário passara. Embora Alice quase lhe escapasse do braço, arrebatada pela correnteza, conseguiu ele estreitar de novo ao seio a espádua da menina; quando porém tentou arrancar a vítima do eixo do torvelinho para subir com ela à superfície, pareceu-lhe que jamais o alcançaria. Todos os seus esforços foram baldados; em vão procurou ele com um dos pés o apoio do rochedo, para arcar com o remoinho; o abismo não largava a presa.

Entretanto a fadiga invadia o corpo do menino; o longo fôlego já por tanto tempo sustido, ia-se extinguindo; em pouco tempo seria asfixiado pela água, a menos que não subisse à superfície para renovar o ar dos pulmões. Vir à tona, não o podia, sem largar o corpo de Alice, e abandoná-la à morte que a disputava.

O terrível problema desenhou-se pois bem claro no espírito de Mário: ou restituir a vítima ao abismo, ou morrer com ela.

A solução não podia ser duvidosa. Se de um lado o instinto poderoso da conservação falava no coração do menino, do outro lado a antipatia que lhe inspirava a filha do barão devia afastar-lhe a ideia de qualquer sacrifício; já não era pequeno o perigo corrido até àquele momento.

Era essa a lógica do coração; mas o orgulho de Mário e o seu desdém pela vida, apresentavam-lhe as cousas por outro prisma. Arrancar Alice ao remoinho, não era para ele rasgo de generosidade ou ato de filantropia; não, era pura e simplesmente uma satisfação de amor-próprio, uma questão de brio.

No seu pundonor infantil, ele se consideraria um covarde, cedendo ao remoinho; ficaria humilhado se não domasse dessa vez ainda o abismo, arrancando-lhe do bojo a vítima, já quase devorada. Pouco lhe importava o nome da vítima; no instante daquele supremo transe talvez nem se lembrou que objeto, que fardo, era esse tão estreitamente unido a seu peito. Fosse, em vez da menina, um cão, lutaria da mesma forma.

De quem se recordou de relance, foi do barão; e recordou-se pensando no imenso prazer que teria se o esmagasse com seu triunfo e seu desprezo. Afigurava-se a Mário que o exemplo de heroísmo e abnegação dado por ele havia de ser para o rico fazendeiro um motivo de sofrimento e despeito. Por que motivo? Não poderia explicar; era um vago pressentimento.

Pode-se bem avaliar quanto deviam ser rápidas, quase instantâneas, as resoluções e os movimentos do menino naquela crise extrema.

Agarrando as tranças louras de Alice e enrolando nelas a mão para mais segurança, o menino veio à tona d'água e respirou com força. As pessoas que rodeavam o lago, viram surdir apenas um meio perfil e submergir-se imediatamente:

— Nhô Mário!... exclamou a voz ansiosa de Martinho.

Mário, renovado o ar dos pulmões, voltou a tempo de travar de novo da espádua de Alice. A evolução das águas, depois de o aprofundar, elevara o corpo da menina para arremessá-lo à garganta que devia sorvê-lo. Aproveitando-se do incidente o menino pôde voltar à superfície e elevar acima dela a parte superior do rosto.

— Benedito! gritou ele.

O preto, depois que tombara ferido pela dor, rolando como um madeiro sobre as fragas do rochedo, ficara algum tempo alheio ao que se passava. Chamado a si pelos golpes que as farpas da pedra lhe abriram nas carnes, e admirando-se de não estar ainda submergido pelo boqueirão, quis atirar-se.

— Não! murmurou dentro d'alma. Quem há de enterrar a eles?... Depois, Benedito!... Sempre é tempo para a gente deixar este cativeiro!

Quando ouviu a voz de Martinho, o preto velho ergueu a cabeça atônito. Seria possível que o menino vivesse ainda! Que o pajem o tivesse visto?

Benedito não o podia acreditar. Mas a voz de Mário, forte, clara e distinta, acabava de pronunciar seu nome; não havia duvidar: o menino vivia. Então o corpo robusto do africano vibrou estremecendo, como o canhão depois da descarga. Com as mãos seguras a dois ramos do arbusto, o seu talhe projetou-se fora do rochedo sobre o lago; parecia o toro de um crocodilo negro, arremessando o bote à presa.

Os olhos dilatados, saltando-lhe das órbitas, pareciam absorver em si a Mário, arrancando-o às águas do lago. Não tinha voz para falar; os borbotões desse imenso resfôlego de um coração quase asfixiado pela angústia, e que enfim torna à vida, não davam passagem à palavra.

Entretanto, quando seus lábios se moveram, articulando sons, nada se ouviu, é verdade, mas sentiu-se que uma alma se derramava pela superfície do lago, e que essa alma se prostrava aos pés de Mário, como uma adoração e ao mesmo tempo uma abnegação. Adoração por vê-lo vivo ainda; abnegação para o salvar morrendo se preciso fosse.

— Uma corda, Benedito; um pau!...

A mão do menino sobrenadando completou seu pensamento. Os dedos crispados fortemente estavam reclamando um apoio à flor d'água, um ponto onde se firmasse a alavanca humana para suspender o corpo de Alice.

Mário mergulhara quatro vezes.

Benedito, na posição em que estava, lançou um olhar de desespero ao lago, à rocha, ao céu. Ali, embutido como um tronco naquela penedia bronca, pairando sobre o abismo no qual o menor movimento podia precipitá-lo; cercado apenas de pedras e sarças encarquilhadas, como podia ele achar prontamente, ao alcance do braço, o esteio de que necessitava o corajoso nadador, para salvar-se e à menina?

O preto sentia a urgência do socorro. A luta heroica de Mário não podia prolongar-se; naqueles transes, contam-se os acontecimentos por ápices de instante. Se o mergulhador voltando à tona d’água não achasse aí o ponto de apoio necessário, sumir-se-ia para sempre. E Mário não tardava; o negro media o tempo pela sua respiração.

Martinho e Eufrosina tinham, é verdade, corrido à cata do objeto indicado. Mas onde o iriam buscar? E chegariam a tempo, sendo tão grande a distância para a estreiteza da ocasião?

Não havia pois esperança alguma?

Uma vida pronta a sacrificar-se; a cega dedicação, capaz de todos os sacrifícios, nada podia contra a fatalidade.

O impossível, esse frio escárnio da natureza contra a arrogância do homem; esse epitáfio de todas as ambições, como de todas as esperanças, ali estava sorrindo da angústia, como do heroísmo, do coração.

A flor d'água turbou-se. Mário voltava: era o momento supremo. Seu olhar límpido, que já atravessava a onda transparente, se não fosse a primeira esperança do triunfo seria... o último desengano e o último adeus!

E nada!... nem uma corda, nem um madeiro!...

Mas havia um corpo humano. Benedito, escorregando pelas abas do rochedo, chegara quase ao nível do lago; e daí, estendendo-se por baixo da ramagem dos arbustos, foi prolongando-se sobre as águas. Chegado à extremidade da folhagem, o negro, não obstante, continuou a avançar, esticando os braços e forçando os galhos retorcidos a se dobrarem com o peso de seu corpo.

Assim ajudado por sua grande estatura e pela elasticidade dos braços, como dos ramos do espinheiro, conseguiu Benedito manter-se horizontalmente suspenso sobre a bacia do lago, com a cabeça tão completamente derreada sobre os ombros que de longe se diria um corpo estrangulado. Nessa posição o negro quase roçava com a nuca a flor d'água.

Era tempo. Mário remontara; sua mão convulsa enleou-se nos cabelos grisalhos do negro; e valendo-se desse ponto de apoio, esforçou para atrair o corpo da menina. Mas ainda essa vez o abismo disputou a presa; os vestidos de Alice pesavam como uma mortalha de chumbo.

Depois de repetidos arrancos, Mário reconheceu que não obteria resultado algum. Mudando então prontamente de plano, travou os pés no pescoço de Benedito, e segurando com ambas as mãos os braços de Alice, arcou de novo contra a correnteza.

O corpo do negro, inteiriçado sobre o abismo, escorrendo sangue das feridas, brandia, aos repetidos abalos que lhe imprimiam as arremessas de Mário, como um vergão de ferro. Com o esforço, os artelhos do menino cerrando-se quase estrangulavam o pescoço do velho africano, cujos olhos injetados e narinas dilatadas, indicavam asfixia iminente.

O menino estorcia-se dentro d'água. Seu corpo parecia romper-se, como o dorso da serpe quando se dilata para estringir a presa. A luta estava indecisa. Às vezes acreditava-se que Mário ia triunfar, arrebatando a vítima ao boqueirão; outras vezes o menino perdia a vantagem adquirida e submergia-se ainda mais.

Como era sublime essa cadeia humana que se estendia desde a aba do rochedo até às profundezas do lago, com uma ponta presa à vida, e outra já soldada à morte! Esses corações que se faziam elos de uma corrente, grilhados pelo heroísmo, essa âncora animada, sustendo uma existência prestes a naufragar, devia encher de admiração e orgulho a criatura.

Foi essa peripécia do horrível drama que se desenhou aos olhos do barão, quando ele chegava à margem do lago. Não teve necessidade de interrogar, de ouvir alguma voz, nem de examinar a cena.

Do primeiro relance compreendera tudo. A vítima era Alice; o herói, Mário; o instrumento, Benedito.

Os joelhos curvaram-se; e aquele homem forte caiu sucumbido e opresso de encontro ao parapeito de pedra. Um brado de ânsia rompeu-lhe do seio; mas com o ofego da respiração, os lábios não exalaram mais do que um surdo gemido.

A esse gemido respondera um grito de triunfo. Mário acabava, por um impulso desesperado, de levantar acima d'água o corpo inanimado de Alice.

— A mão, Benedito, a mão!... exclamou o menino ofegante.

Um dos braços do negro desprendeu-se dos ramos, e volvendo hirto e rijo como a verga de uma máquina sobre o gonzo de ferro, travou do corpo de Alice e descansou-o no largo peito. Já Mário a nado tinha galgado o rochedo e aliviava o negro daquele peso.

Um instante mais e Benedito, sufocado pelos artelhos de Mário, se despenharia no precipício, arrastando consigo a última esperança.

O barão, depois que recebeu de Mário o corpo inanimado da filha, correu à cabana para prestar-lhe os primeiros e urgentes socorros. Quem sabe se já são inúteis? Se o que ele estreita ao seio, não é mais o corpo, porém unicamente o cadáver de Alice?

As outras testemunhas da catástrofe acompanharam o barão; só ficaram o negro e o menino.

Mário, apenas conseguira por cima da pedra passar ao barão o corpo de Alice, recostou-se ao rochedo completamente extenuado; ali ficou alguns momentos recobrando o fôlego. Entretanto Benedito, retraindo-se lentamente, aproximavase da falda da penedia, até que afinal levantou direito o porte robusto.

Mário cingiu-lhe o pescoço com os braços e beijou-lhe as cãs. O negro, apertando-o ao peito, soluçava como uma criança.

Ali ficaram absorvidos na ardente expansão dos sentimentos que lhes tumultuavam no seio. Os outros os tinham esquecido; ninguém veio perturbar a transfusão de suas almas com uma solicitude importuna.

Mas de repente foram despertados por um grande choro que saía da cabana. Era fácil adivinhar o motivo dessas lamentações, tanto mais quanto no meio do pranto se distinguiram perfeitamente estas palavras:

— Morta!... Morreu!...

Mário subiu apressado à cabana; Benedito o seguiu.