O Tronco do Ipê/II/XIII
Estavam todos reunidos à espera do jantar, quando entraram Alice e Adélia.
O vigário, que da janela espreitava essa ocasião solene, promoveu dois passos até o meio da sala; colocando-se em frente da porta onde assomavam as duas moças, aí as fez parar com um gesto amplo, e bateu palmas para concitar o silêncio e a atenção geral.
Afinada a garganta e preparada a posição pindárica, o vate fluminense, erguendo a mão rochonchuda, com o polegar e o índice apertados, foi desfiando o seu verso:
Entre as florinhas mimosas
Que brilham neste jardim,
São tidas por mais formosas
Este cravo, este alecrim.
— Bravo! bravo! gritaram de todos os lados.
O Sr. Domingos Pais que tinha preparado essa ovação para entrar nas boas graças do vigário, fez um barulho infernal, pois tanto batia palmas com as mãos, como pateava com os pés; e por fim, não contente com o estrépito que produzia, tocava piano por um modo original. Sentava-se no teclado e erguia-se à semelhança de um deputado neutro, que desejando estar bem com o deus-governo, e com o diabo-oposição, procura resolver com as ancas o que não comporta a cachola: o difícil problema de votar por um e outro, a contento de ambas as partes.
Ao toque da sineta, que o Martinho tangia com verdadeiro brio, o rumor não se aplacou, mas rolando como o ribombo de uma salva, foi perder-se na sala de jantar, onde os convidados já começavam a rodear uma longa mesa de cinquenta talheres carregada das iguarias mais finas da cozinha brasileira.
O vigário, enfunado como um peru de roda foi-se repimpando na cadeira de honra à esquerda da baronesa que tinha à sua direita o conselheiro, eclipsado nesse dia pelo triunfo poético do nosso reverendo. Mas o Cícero paraibano não se deixava abater com qualquer revés; e nesse momento mesmo ruminava o discurso de uma saúde com que procurava desbancar em prosa o verso rançoso do árcade vassourense.
O lugar habitual de Mário era entre Alice e Adélia. Como porém ele a pretexto de passeio faltasse duas vezes nos últimos dias, o Lúcio e o Frederico, aproveitando-se daquela sinalefa, encartavam-se à maneira de vírgula.
Fazendo-se de desentendido o Frederico já se apoderava da cadeira reservada quando Alice observou-lhe:
— Este lugar é de Mário.
— Ah! é verdade; como estava distraído! acudiu o moço levantando-se.
— Mário!... disse Alice com uma doce exprobração no olhar.
Mário já se tinha sentado à esquerda de Adélia:
— É uma ordem? perguntou o moço gracejando.
Mas dentro do sorriso que envolvia sua fineza, sentiu Alice o dardo de uma ironia cruel.
Não respondeu.
— Então!... disse o Frederico preparando-se para tomar a posse embargada.
— Perdão! atalhou Alice. Senhor Domingos Pais?
— Pronto! exclamou o compadre com a pontualidade da disciplina militar.
A voz porém era surda porque rompia a custo entre a massa compacta a que já estava reduzida na boca do cometa, uma meia dúzia de azeitonas com duas colheres de farinha, e a moela torrada de um frango. O compadre conhecia o valor do tempo, sobretudo na mesa, e por isso ia debicando nas próximas terrinas para dissipar uns agastamentos de estômago produzidos por flatos, que se exacerbavam com o vácuo.
— Faça favor de sentar-se aqui para trinchar o pato! disse Alice. Esse lugar fica para o Sr. Frederico.
O pato a que se aludira estava bem distante; mas o Martinho a um aceno da nhanhã foi buscá-lo e o substituiu à torta colocada em frente do lugar primeiramente destinado para Mário. Depois, por uma evolução hábil, Alice aproveitando-se da confusão, passou Adélia para sua direita, e colocou o Sr. Domingos Pais à sua esquerda. Assim não ficava ela ao lado de Mário, mas também não o deixava junto de Adélia.
O compadre sentou-se, lançando um olhar fulminante ao pato frio, que trescalava diante dele no prato de travessa. Condenado a trinchar em todos os banquetes esse palmípede; o Sr. Domingos Pais suava pelo topete antes de acertar com as juntas da asa ou da coxa. Em sua opinião, mais adiantada que Buffon e Cuvier, o pato era um animal inteiriço, feito de um só osso.
Sucedia quase sempre algum desastre no trincho da ave; ou era o molho que se entornava pela toalha e salpicava o vestido de alguma senhora, ou eram copos e garrafas quebradas pelo safanão do garfo, ou finalmente alguma tremenda cotovelada no nariz do vizinho.
Provinha daí o rancor profundo que o Sr. Domingos Pais votava à raça dos patos. Ele não via um desses malditos palmípedes que não se possuísse de furor; e sem dúvida mataria o infeliz, se não o horrorizasse a só ideia de que seria talvez condenado ao suplício de trinchar o cadáver de sua vítima.
Não deixava, por isso, o Sr. Domingos Pais de enterrar-se no pato, quando achava ocasião; ao contrário, tinha um prazer indizível em devorar as carnes do inimigo e trincar-lhe as entranhas. O compadre começava sempre arrecadando como privilégio seu, o coração, a moela e o fígado da ave, que o cozinheiro pregava na titela com um palito de rosetas, reunindo o útil ao agradável; bocado saboroso que era considerado pelo trinchante como uma espécie de propina do ofício.
Entretanto, os convivas depois da primeira investida ao banquete, começavam a moderar o ardor e denodo. Até então, entre o tinir dos pratos, o trincar dos garfos e facas e o resmoer dos dentes, não se ouvia mais do que a garrulice das moças, e as breves exclamações com que os gastrônomos costumam adubar as iguarias. Agora porém a conversa já rolava ao redor da mesa, embora ainda lenta e mastigada de envolta com os últimos bocados.
O assunto geral em vários pontos da mesa, era o elogio póstumo das viandas já saboreadas, e os louvores antecipados das mais lindas peças da segunda coberta. O conselheiro fez um discurso enciclopédico a respeito da arte culinária, comparando entre si as maneiras de preparar os manjares usados pelas diversas nações; e no meio de um frouxo de erudição, que deixou embasbacados os roceiros, referiu diversos fatos históricos, e entre outros o de D. João VI, que durante a sua residência na Corte no Rio de Janeiro gastava com a ucharia apenas a migalha de um conto de réis por dia.
Ouviu-se um suspiro abafado. Era do Sr. Domingos Pais, que lamentava não ter nascido vinte anos antes para ser compadre do mordomo-mor de um rei, que tão sabiamente compreendia este mundo.
O juiz municipal, sentado defronte de Mário, tinha travado conversação com ele; e saltando de um a outro assunto, dizia-lhe naquele momento:
— O doutor naturalmente volta para a Corte?
— Não sei ainda, respondeu Mário.
— Com seu talento e seus conhecimentos não deve enterrar-se na roça. Seria estragar um belo futuro.
— Então à saúde do futuro! exclamou o Sr. Domingos Pais erguendo a cabeça e virando o copo. É aqui o da D. Adélia? Sr. Vigário, ao belo futuro!
— Está muito saído! acudiu Adélia corando. Pode beber quantos copos quiser; não precisa de pretexto...
— Desculpe; eu cuidei... balbuciou o compadre percebendo que fizera um trocadilho, ou antes um disparate.
— Qual futuro? perguntou o vigário.
— O futuro passado! disse Lúcio apontando para o compadre, saudado com uma gargalhada geral dos rapazes.
— Na Corte, continuou o juiz, atando o fio ao diálogo, não lhe faltarão empregos, sobretudo agora que o nosso governo está tratando seriamente dos melhoramentos materiais.
— Os empregos são difíceis; e além disso não os pretendo.
— O Senhor Mário gosta mais da fazenda! insinuou Adélia com um sorriso malicioso.
— Não é esta a razão, D. Adélia. Aqueles que já não têm família para lhes prender a alma a algum canto de terra, vivem bem em qualquer parte que lhes determina o dever ou mesmo o interesse.
— Eu sou assim! observou o Domingos Pais, aproveitando o intervalo da mudança do talher. Passo tão bem aqui na fazenda, como na vila em casa do compadre barão!
Alice receou que as interrupções do compadre lhe impedissem de ouvir as palavras de Mário.
— Faça favor de trinchar o pato, Sr. Domingos Pais, disse ela.
— Ah! é verdade. Mas falta o trinchante.
— O senhor naturalmente sem querer o escondeu embaixo da toalha! disse Adélia.
— Ora que distração!
O compadre, empunhando a faca e o garfo, de senho torvo e gesto fero, ergueu-se nas pontas dos pés e traspassou de lado a lado o ventre recheado do gordo pato.
— Então, dizia o juiz admirado; não se pertence? Está gracejando!...
— Sua dúvida é que me parece um gracejo. Pois há neste lugar quem ignore isso? Um homem que desde o berço viveu e educou-se à custo de outro, representa um capital alheio; é o título e a garantia de uma dívida.
— Não diga isso, Mário! atalhou Alice ressentida.
— Se é verdade! O dono do papel em que se escreveu, pode julgar-se autor do livro? Que somos nós ao nascer, que era eu principalmente, eu, pobre órfão, senão uma página em branco? Algum valor que porventura eu tenha hoje, e que não teria se me abandonassem, pertence a quem me deu os meios de o adquirir.
— Mas ninguém decerto aqui pretende esse direito, Mário! exclamou Alice. Posso assegurar-lhe que todos ao contrário o respeitam.
— Não impede essa generosidade que eu cumpra meu dever. Considero-me preso a esta casa e à vontade de seu dono, pelo vínculo de uma dívida. Não poderia retirar-me daqui por meu alvitre sem espoliar a outrem de sua propriedade.
O moço fitou o olhar em Alice e continuou articulando friamente as palavras:
— O que me pertence, unicamente, exclusivamente, o que não contraiu compromisso algum, e está livre ainda como Deus a criou, é aquela parte do nosso ser, que não se submete nem à própria razão; é a alma com suas afeições. Esta sim, posso enviá-la onde me aprouver, embora o corpo permaneça aqui ou além.
Para todas as pessoas que o ouviam, as palavras do mancebo não eram mais do que um tema da conversação, aproveitado por ele para mostrar o seu modo elegante de falar. Mas para Alice essas palavras tinham um sentido bem claro; e não foi debalde que seu delicado seio sublevou-se, e as lágrimas lhe aljofraram os longos cílios.
Levou a menina rapidamente as mãos ao rosto para esconder as lágrimas e ao mesmo tempo de sufocar o soluço.
Sem dúvida esse movimento seria reparado, ao menos pelas pessoas mais próximas, se não interviesse bruscamente um dos lances habituais da cena do trinchamento do palmípede. Desta vez o Sr. Domingos Pais, resolvido a espatifar o inimigo do primeiro assalto, mudou de tática; tendo cravado o garfo no peito da ave, fez com a faca ponto de apoio na asa e começou a torcer desesperadamente o corpo do pato, com esperança de esnocar a junta.
Sucedeu que em um dos ímpetos, a asa escapou da faca e a mão esquerda resvalando no ar com o impulso, atirou o cadáver do pato à cabeça do conselheiro. O subdelegado com a resolução pronta que pedia o caso, levantou-se, e com um guardanapo fez desaparecer os efeitos da catástrofe limpando das trunfas do orador o molho e as rodas de cebolas que tinham acompanhado o pato. Tão rápido foi o movimento, que o conselheiro não pôde impedi-lo; e quando levou as mãos à cabeça, só achou o crânio liso, pois o chinó lá ia para a cozinha no guardanapo, que o Martinho levava a correr, pensando que tinha dentro o pato.
Felizmente um primo do barão, que se considerava a língua de prata do lugar, tinha-se levantado na outra ponta da mesa para propor a saúde de seu nobre parente; e na forma do costume desfiava imperturbável a própria biografia, como exórdio obrigado da apologia do chefe e protetor de toda a parentela.
Foi um excelente pretexto para que os circunstantes fingissem não perceber o desastre do conselheiro e sua retirada, ou antes evasão.