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O Tronco do Ipê/II/XIV

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A esquivança de Mário por Alice e a sua assiduidade com Adélia, continuou.

A menina sofria com isso; mas não era o ciúme que a afligia. Passada a primeira impressão ela compreendeu que da parte de Mário não havia afeição, nem mesmo capricho.

Na calma um tanto inflexível de que se revestia o semblante do mancebo quando conversava com Adélia, percebia-se o esforço da vontade e não o impulso de um sentimento.

Alice acreditava que o procedimento de Mário era calculado para a desenganar. As ilusões que deixara em seu coração a intimidade dos primeiros dias, o mancebo queria desvanecê-las logo de todo, a fim de que nenhuma esperança viesse ateá-las de novo.

Não se enganava ela nessas conjeturas; porém seu olhar não podia perscrutar todos os refolhos d'alma do amigo de infância. Havia, além daqueles motivos, um, contra o qual a própria consciência do mancebo se revoltava. Ele sentia um prazer cruel fazendo sofrer essa gentil menina.

Não era ela a fibra mais sensível d'alma do barão, o único ponto do coração em que ele podia ferir a esse homem rico, feliz e estimado?

Algumas vezes tão mesquinha vingança revelava-se ao espírito lúcido do mancebo em toda sua odiosa nudez; e então ele indignava-se contra si mesmo. Mas um pensamento vinha atenuar a vergonha que essa revelação lhe inspirava. Também ele sofria, e mais do que ela; porque sofria por ambos.

— Eu não a amo decerto, dizia ele consigo; mas sinto que a amaria, se não fosse esta horrível suspeita!...

Entre aquelas duas almas jovens, ricas e generosas, que o amor atraía e a fatalidade separava, não era decerto a de Alice a mais provada pela desgraça. Ver murchar a esperança que nosso coração afagou desde a infância, é triste sem dúvida, mas não se compara com os transes da subversão que dilacera uma alma, como o terremoto revolve o solo.

Quando Mário se lembrava dos muitos benefícios que devia ao barão, tinha assomos de desespero; parecia-lhe que aceitando aquela generosidade, ele se tornara cúmplice do crime de que fora vítima seu pai.

Que não daria então, para repelir de si quanto recebera daquele homem? Ficaria reduzido a um labrego sem educação; e vingar-se-ia como costuma gente dessa condição, com um tiro ou uma facada.

Mas não era essa a única, nem a maior humilhação. As palavras que na noite de Ano-Bom o barão dirigira a Alice, constantemente soavam a seus ouvidos. Não fora a ele Mário, que o fazendeiro se tinha esmerado em educar, e sim ao noivo de sua filha. Esse casamento ia ser uma expiação; e podia ele sujeitar-se a servir de pretexto ao delinquente para aplacar-lhe o remorso de um crime?

Se porém não fosse verdadeira a terrível suspeita que se infiltrava em seu espírito desde a infância, devia recusar a esse homem a única retribuição possível de sua generosidade? Com que direito esmagaria o coração de um pai extremoso e de uma inocente menina que o amava, a ele?

Um dia Alice vendo-o pensativo na sala, revestiu-se de coragem e aproximou-se:

— Anda tão triste, Mário?

Essa doce voz entrou n'alma do mancebo como um bálsamo.

A linda menina esquecia-se de si, para ocupar-se dele unicamente:

— Não sou eu só, Alice! disse o moço tomando-lhe a mão afetuosamente. Vim perturbar a serenidade de sua alma e fanar as flores da existência que lhe corria tão feliz aqui neste retiro, no seio de sua família.

Duas vezes o mancebo passou a mão pela fronte, como se tentasse arrancar uma obsessão que lhe constringia o cérebro e murmurou:

— Fatal destino o meu! Trazer consigo o anátema de suas mais caras esperanças! Revoltar-se contra a felicidade que lhe sorri, como o anjo decaído contra a luz que o cingia! Ser o espírito do mal para aqueles a quem se ama!...

— Porém, Mário!...

— Não, Alice; esqueça o que ouviu!

E o moço afastou-se precipitadamente, com receio de ceder à emoção que dele se apoderava, e à maga influência do olhar terno e melancólico de Alice.

Havia momentos em que ele se considerava presa de uma cruel alucinação, e comparava o seu procedimento com a perversa malignidade de um louco, deleitando-se em afligir uma criatura inocente, cujo crime único era a muita afeição e desvelo que por ele tivesse! Nestas ocasiões, Mário fugia da menina; não só por certo pejo, como pelo temor de cair-lhe aos pés e pedir-lhe perdão.

Na manhã em que teve lugar o incidente referido, Mário pretextou um incômodo para ficar no seu aposento. Queria evitar por essa forma um segundo encontro, no qual ele bem sentia que lhe faltaria a coragem para resistir às queixas da menina.

Vendo Mário fugir dela, comovido e precipitado, Alice tomada pela estranheza das palavras que ouvira, não cuidou logo em seguir o engenheiro para interrogá-lo; quando se lembrou de o fazer, já ele tinha entrado em seu quarto.

Aquela retirada súbita, a menina bem a pressentiu; era uma reticência, que talvez a voz não pudesse guardar. O mancebo, temendo que sua palavra mau grado lhe rompesse dos lábios e revelasse o segredo que ele se esforçava por sufocar, apartara-se para não ser ouvido, nem mesmo pressentido. Sem dúvida ele receava-se até de sua fisionomia, que lhe traísse o mistério.

Mas esse mistério lhe pertencia a ela também, porque pesava fatalmente sobre sua existência e lhe arrebatava a felicidade tão sonhada. Ela se julgava com direito de penetrar na consciência de Mário; desvendar o arcano; e disputar a esse inimigo ignoto a afeição de seu companheiro de infância, do escolhido de seu coração.

Para isso não recuaria diante de qualquer perigo, e contudo parou indecisa ao limiar da porta, que não se animava a transpor. Se a morte guardasse aquela porta, não recuaria; mas era o pudor. A menina retrocedeu depois de longa hesitação, contrariada pela ideia que mais tarde Mário restabelecido da comoção, nada revelaria.

Nas horas que decorreram até o jantar, Alice inventou vários pretextos de arranjos domésticos para passar e repassar diante da porta de Mário. Uma vez parou trêmula, como se quisesse entrar, mas fugiu logo; outra chamou o mancebo, mas com a voz tão soturna que ele não podia ouvir; finalmente animou-se a bater devagarinho, mas correu assustada do que fizera.

O jantar foi triste.

A ausência de Mário anuviou ainda mais o lindo semblante de Alice, que era a alegria daquelas reuniões de família. O barão desde muitos dias que andava preocupado, seu olhar ungido de profunda piedade e acendido no pranto derramado durante a insônia; seu olhar inquieto interrogava a miúdo o semblante da filha querida; depois como se retraía ao íntimo, para derramar aí nos seios d'alma a lágrima que a vergonha não lhe deixava cair das pálpebras, em face dos estranhos.

A baronesa, apesar de sua habitual impassibilidade, não se podia esquivar ao contágio da tristeza que a cercava. Não conhecendo embora as causas da mudança, parecia-lhe que uma desgraça ameaçava a família.

O conselheiro, depois da catástrofe do chinó, andava acabrunhado, e resolvera recolher imediatamente à Corte, projeto que matou as esperanças de Adélia e de seus apaixonados, Lúcio e Frederico. Quanto a D. Luíza e D. Alina, contrariadas pelo jeito que iam tomando as cousas, e receosas de ver gorados os seus projetos matrimoniais, estavam de uma impertinência que o próprio Sr. Domingos Pais, o mais pachorrento de todos os compadres feitos e por fazer, não suportava.

É verdade que o homem também naquele dia tinha posto as candeias às avessas para ver se descobria lá por dentro algum expediente que o salvasse. Desde o dia do salto mortal do maldito pato, que o Sr. Domingos Pais não sabia onde se metesse; é desses casos em que um homem desejaria aplicar a si uma figura gramatical, a fazer uma elipse de sua pessoa, para não ser visto, ficando apenas subentendido no almoço, no jantar e na ceia. Todas as vezes que seus olhos caíam sobre o respeitável chinó, este fazia-lhe o efeito da cabeça de Medusa: petrificava-o.

O compadre comia, e talvez mais do que de costume; porém isso mesmo era uma prova das tribulações por que havia passado. A tristeza produzia-lhe uma grande excitação nervosa.

— Senhor Vigário, disse o compadre levantando a cabeça de repente: sabe V. Rev.ma uma cousa?

— Saberei.

— Estou quase pedindo-lhe para me benzer.

— Por que, homem?

— Não ando bom, não. V. Rev.ma vê que tudo que eu faço, sai torto; aqui andam artes do maligno!

Foi interrompido pela voz do barão:

— Estão todos tão calados? Que é isto, meus senhores. Compadre Domingos Pais, vamos lá, uma saúde cantada!...

As palavras do barão, truncadas na pronúncia, saíam-lhe dos lábios por uma reação nervosa. Percebendo uma lágrima que despontava nos olhos de Alice, fizera um esforço para arrancar a filha às cismas dolorosas em que se absorvia, e sufocando a própria tristeza procurou despertar o rumor e a alegria nos convivas.

O Sr. Domingos Pais, apesar da sua hipocondria, encheu até às bordas de vinho do Porto um copo d'água, e começou com um denodo admirável:


Nossa carne seca
Que vem do sertão,
Os paios, presuntos
Melhores não são!


Depois de repetir duas ou três vezes essa cantiga nacional que lhe ensinara um paulista, o compadre proclamou o brinde:

— À saúde do Sr. Major Tavares e do Sr. Comendador Matos, ilustres pais de seus filhos!...

Estrondosa gargalhada acolheu o brinde. O desejo do barão não podia ser melhor satisfeito, ninguém se pôde conter; só o Sr. Domingos Pais ficou imperturbável no meio daquela hilaridade prolongada, procurando lembrar-se dos nomes dos filhos dos dois personagens.

Entretanto o major e o comendador, cada um de seu lado, riam-se para não parecerem que davam o cavaco; mas estavam furiosos porque entendiam lá de si para si que o brejeiro do compadre quisera por aquele meio alcunhar a um de “carne seca” e a outro de “paio”.

Os cochichos, os risinhos sumidos, os olhares trocados, puseram as orelhas dos dois personagens e de seus filhos a arder; de modo que o Sr, Domingos Pais levantou-se da mesa com quatro inimigos.

O compadre decidiu fazer-se exorcizar essa mesma noite, e caso o vigário não se prestasse à cerimônia, punha-se de molho na pia dacapela.