O Tronco do Ipê/II/XV

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Do jardim, onde passavam a tarde a família e seus hóspedes, Alice afastando-se com o pretexto de ver uma muda de flor, ganhou o fim da cerca.

Daí avistava-se por entre as árvores uma das janelas do quarto de Mário. Nesse momento o moço recostado, com os braços deitados no parapeito e a cabeça vergada, pareceria adormecido, se de vez em quando não erguesse o rosto para olhar o céu, onde cintilavam já as primeiras estrelas. Nessa ocasião notavam-se em sua fisionomia traços de angústia, que ele buscava dissipar com a contemplação do céu, essa fonte inexaurível da luz e orvalhos d'alma.

Alice desta vez sentiu-se arrebatada por uma atração irresistível. Era forçoso que falasse a Mário; que lhe arrancasse o segredo daquela angústia; e o consolasse, embora tivesse para isso de renunciar a ele. Custar-lhe-ia a vida o sacrifício; mas sentia-se com a coragem de tentá-lo. Se teria forças para realizá-lo, só Deus o podia saber; ela receava que não.

Já tinha um pretexto para aproximar-se de Mário; desde o jantar que o achara. Correu à alcova; tirou uma caixinha, e chamando a Eufrosina para que a acompanhasse, dirigiu-se ao quarto do moço.

Mário, ouvindo a voz da menina que o chamava, correu à porta:

— É você, Alice?

— Está melhor, Mário? perguntou a menina fitando um olhar ansioso no semblante do engenheiro.

— Ficou inquieta por meu respeito? Obrigado, Alice. Não tenho mais nada, já passou.

— De todo?

— De todo, respondeu o moço compreendendo o pensamento da menina.

— Mas pode voltar!

Um triste sorriso fugiu pelos lábios do mancebo, cujos olhos se abaixaram para não verem o semblante inquieto da menina.

Estava aberta a dois passos a porta de uma saleta desocupada; era um terreno neutro onde ela podia entrar sem o vexame que a impedira de transpor o limiar do quarto de Mário, depois que o moço o habitava.

— Escute, Mário, disse a menina conduzindo-o para a saleta. Desde sua chegada estou para restituir-lhe o depósito que me foi confiado, e faltava-me o ânimo. Hoje não sei por que, pareceu-me que não devia conservar por mais tempo este objeto em meu poder. Talvez seja um consolo!...Tome.

A mão trêmula de Alice apresentou a Mário uma caixinha que trouxera oculta sob o mantelete de seu vestido de cassa.

O mancebo em extremo comovido não viu o sinal de uma lágrima que umedecera a capa de marroquim verde. Ele tinha reconhecido logo uma espécie de estojo, onde sua mãe nos últimos anos costumava guardar seus objetos de maior valor; os poucos e mesquinhos que lhe permitia a pobreza.

Havia dentro da caixa um cordão de ouro com um coração de coralina, primeiro presente de José Figueira à noiva; umas argolas esmaltadas, o relógio que Alice dera a Mário havia sete anos; brincos, o colar de vidrilho preto; finalmente um anel de cabelos.

Foi este último, que primeiro feriu os olhos do mancebo. Levando-o aos lábios e beijando-o com respeitosa ternura, Mário fitou um olhar repassado de gratidão no semblante de Alice, cuja mão adivinhara nessa delicada lembrança.

— Ela lhe queria muito bem, Mário, disse a menina com voz doce como um canto celeste. E a mim também!...

Mário não disse palavra; mas seus olhos embebidos nos lábios da menina pareciam pedir-lhe que falasse, que lhe derramasse n'alma a suavidade angélica de suas palavras.

— Ela chamava-me sua filha; e beijava-me e abraçava-me para matar as saudades que tinha de você. Quando recebia cartas suas, lia-as uma e muitas vezes para que eu as ouvisse; e por uma semana não se falava em outra cousa, até chegar outra carta, que era a única novidade da nossa solidão. Como ficava orgulhosa, quando vinha notícia dos progressos que você fazia nos estudos! Então achava um prazer extraordinário em descrever o que seu querido Mário havia de ser; e não se enganava!...

— Ela lhe chamava sua filha, Alice? disse Mário repetindo como um eco as primeiras palavras da moça. Pobre mãe!

E o moço fitou os olhos na penumbra do aposento, como se ali vira surgir a imagem daquela que nesse momento ele evocava do fundo do coração.

— Nos últimos tempos, continuou Alice trêmula e com a voz balba, nos últimos tempos, Mário, quando ela pressentia-se que não havia de o ver mais neste mundo, quantas vezes não dizia abraçando-me: — Eu morreria feliz, e iria contente encontrar no céu meu marido, se tivesse a certeza de uma cousa. E como eu lhe perguntava...

— Acabe, Alice, instou Mário comovido pelo tremor que embargara a voz da menina.

— Ela me respondia: “É um segredo” e mo dizia baixinho ao ouvido. Coitada! Depois arrependia-se tanto, vendo que me afligia essa ideia de que ela não havia de ver sua volta e nos abraçar a ambos como fazia antigamente. E tinha razão; o coração lhe adivinhava!

— Mas o segredo, Alice?... o segredo que ela dizia-lhe ao ouvido e que a faria morrer feliz!

Alice hesitou um momento; depois tornou-se lívida como uma estátua de alabastro e sua voz pulsou como um arquejo:

— Era que você, Mário, me quisesse tanto bem como ela sabia que eu lhe...

A voz estalou como a corda de um instrumento, vibrada com demasiada força, e a menina apoiou-se para não cair na borda do consolo, de frente ao qual passava a cena.

— Boa mãe!... exclamou o mancebo erguendo ao céu as mãos trançadas. Como ela deve ser feliz então no seio de Deus!...

Alice involuntariamente reunira as mãos súplices no seio, sem compreender o sentimento que a levava a imitar o gesto do mancebo. Um eflúvio de bem-aventurança derramou-se por sua fisionomia, que lembrava naquele momento a face do anjo do amor banhada pelo olhar de Deus.

Quando ela e ele voltaram desse enlevo, seus olhos tímidos se encontraram um momento e fugiram; tinham-se queimado no rubor que abrasava o rosto de ambos. O amor, o verdadeiro e puro amor, é sempre assim, cheio de recato e pudor. O outro, o fragueiro Cupido da mitologia, que nasceu de Vênus, a deusa da beleza e da sedução, chama-se desejo.

Involuntariamente, Alice, procurando um disfarce para seu enleio, começou a examinar os objetos contidos na caixa. Mário acompanhou-lhe o movimento; e seus dedos tocaram-se muitas vezes. Sentiam nisso um encanto indefinível; parecia-lhe que a alma da terna mãe, despedida deste mundo, os envolvia a ambos, e unia suas mãos pelo vínculo daquelas relíquias.

Nesse brinquedo, Mário descobriu um papel dobrado, que parecia servir de calço ao cordão de ouro. As letras cercadas de uma orla amarela, indicavam que o escrito era antigo, e apagado em alguns lugares por nódoas lívidas que talvez fossem traços de lágrimas.

O olhar de Mário fitando-se no papel desdobrado, tornou-se fulvo. Cobria-lhe o rosto a máscara do escárnio que ele costumava trazer nos últimos tempos. Mas desta vez, o ódio borbulhava de seus lábios com o assomo da ira.

Transida com a rápida e incompreensível transformação, Alice lançou um olhar ansioso sobre o escrito que encerrava sem dúvida algum terrível mistério. Mas o mancebo prevenindo seu movimento fechara o papel na mão, e dirigia-se à porta.

— Mário! exclamou a menina querendo impedir-lhe a saída.

— Deixe-me! disse o mancebo com um timbre de voz surda. Neste momento não me pertenço, mas àqueles que já não são deste mundo!

Alice, que não se animara a retê-lo, ouviu-lhe os passos precipitados que ressoavam pelo corredor. Quando o ruído cessou de todo no fim da escada, a menina levou a mão ao seio, que uma dor lancinante traspassava. Era um pressentimento de que desta vez Mário separava-se dela para sempre. A fatalidade, essa fatalidade misteriosa de que falava o mancebo, acabava de romper o elo que os prendia a ambos; suas almas estavam decepadas uma da outra.

Desde esse dia, com efeito, Mário isolou-se ainda mais; as raras vezes que tomava parte nas reuniões da Casa Grande, era para dar expansão ao sarcasmo, e ostentar frio desdém pela filha do barão.

Parecia que ele achava esquisito prazer em provocar da parte da menina os sinais da afeição mais delicada, para responder com as provas de um desprezo esmagador.

Felizmente para Alice, os hóspedes começaram a retirar-se. Restituída ao sossego da família, mas não à placidez de sua vida de outros tempos, a menina sentia-se mais forte contra a desventura e queria habituar-se a ela; ver Mário, ou quando o não visse, tê-lo perto de si, era uma consolação.

Não escapavam ao barão as vicissitudes por que passara a alma da filha na última semana. Ele rastreava em seu rosto com ardente solicitude o traço das lágrimas que fanava-lhe o brilho dos olhos azuis, e a palidez que a vigília deixava impressa nas faces tão frescas sempre e tão rosadas.

Talvez por isso o barão esperava com impaciência que os hóspedes se retirassem. Nos anos anteriores era ele quem instava para ficarem o mais tempo possível; naquela ocasião porém a companhia o incomodava; e cada dia de demora trazia-lhe uma contrariedade.

Imagine-se pois, quanto devia impacientá-lo a chuva torrencial que durante dois dias caiu em toda aquela zona da Serra do Mar. A inundação do Paraíba que é sempre a consequência desses aluviões, impediu a partida dos hóspedes.

Para distrair a sofreguidão, apenas estiou, saiu o barão a cavalo acompanhado do administrador, para ver os estragos da inundação. Eram como de costume árvores arrancadas, fossos obstruídos pelo enxurro, e regos profundos cavados pela torrente das águas.

Próximo à cabana do pai Benedito, o barão estremeceu, avistando de repente ao longe a sombria face do boqueirão.

— Que é isto? perguntou com a voz trôpega e o rosto lívido.

— A enxurrada levou o muro. Era um poder d'água como V. Ex.a não imagina!...

— D' água!... murmurou o barão com um sorriso estranho.

— Agora há de ser preciso levantar outra vez o muro?

— Sim... sim... respondeu com impaciência, fustigando o animal para afastar-se mais depressa.