O Tronco do Ipê/II/XVIII
Caíra a noite.
Um luar baço, coado pelos vapores que deixara o dia mormacento, lastrava de branco as escarpas do rochedo, e ruçava a coma das árvores.
Essa lua mortiça é triste como a pálido clarão de um círio, e reflete n'alma a sua lividez.
Caminhando para a cabana, com o passo rápido e impaciente, Benedito pensava naquela noite fatal de 15 de janeiro de 1839, em que José Figueira se afogara no boqueirão; e lembrava-se que fazia então um luar semelhante a esse que os roceiros chamam – lua de queimadas.
Pela manhã, chegando à Casa Grande, aí achou a notícia da partida de Mário. Nem Alice nem o barão haviam dito palavra a este respeito; mas o escravo tem o instinto do cão de caça para farejar o segredo do senhor e as novidades da família. Ainda a baronesa e D. Alina ignoravam o acontecimento, que já ele era discutido na cozinha e corria a senzala.
Depois de ter falado com o senhor no gabinete, Benedito saiu com uma lata a tiracolo, e pôs-se. a caminho. Alcançar Mário, falar-lhe e persuadi-lo a voltar, era seu único pensamento. O mancebo partira a pé na direção da vila; não podia ir longe.
Sua diligência porém foi inútil; e sabe-se a razão.
Enquanto ele procurava pela vila e arredores, Mário cansava de esperá-lo na cabana. Desenganado de encontrar o moço na vizinhança, o preto preparava-se a ir longe, até o Rio de Janeiro se preciso fosse, quando lhe acudiu uma ideia.
Talvez Mário tivesse, mudando de resolução, voltado à Casa Grande, e talvez que sempre decidido a deixar a fazenda, se fosse despedir dos sítios tão queridos na infância, e rezar aí por alma de seu pai, no dia do aniversário de sua morte.
Foi então que o preto se dirigiu para a cabana. Ao entrar no vale, avistou ele por entre os juncos, a água tranquila e dormente do lago, que ao pálido reflexo da lua parecia a alva cândida e pura de um leito, prestes a transformar-se em sudário.
A inundação dos dias passados varrera o muro que o barão fizera construir em torno, e do qual só restavam destroços na parte contígua ao rochedo. Ficara portanto o boqueirão inteiramente a descoberto do lado da estrada.
Vendo aquele quadro, ao morno palor da lua, o preto sentiu percutir-lhe o corpo um frio terror; e voltando o rosto apressou ainda mais o passo.
Na cabana havia luz. Sentada na sua tarimba com a almofada ao colo Chica tangia os bilros à luz da candeia, impaciente por acabar a tarefa. Pelo Natal começara uma renda larga de dois palmos, que destinava para a anágua do casamento de sua nhanhã, o qual não podia tardar.
Naquele momento a preta, embora ignorasse o que tinha ocorrido, cismava na tristeza de Mário e no seu afastamento da Casa Grande para onde ele não se dispunha a voltar.
Nisso Benedito assomou à porta e abrangendo a casa de um olhar perguntou:
— Ele está aqui?...
— Nhonhô Mário?... Saiu agora mesmo; parece que foi lá dentro.
A preta levantou-se para ir em procura do moço. Benedito a deteve com a palavra e o gesto:
— Deixa!
Advertido por misterioso pressentimento, o preto penetrou no interior, e sem hesitação desceu à Lapa, onde ele esperava encontrar Mário. A claridade da lua cobria de um branco lençol a superfície do lago, deixando imerso na sombra o recanto da penha coberto pela abóbada do rochedo.
Apesar da obscuridade, Benedito percebeu, debruçado sobre o rescaldo da rocha, em atitude pensativa, o vulto de Mário, que voltou-se com o rumor de passos.
— Eu te esperava, disse o mancebo pousando-lhe a mão no ombro. Não quis deixar estes lugares... talvez para sempre, sem dizer-te adeus, sem abraçar-te!...
Hirto e imóvel, o negro velho deixou-se abraçar por Mário, que o estreitou ao peito com efusão.
— Não! não! balbuciaram os lábios trêmulos do velho.
— Não queres que te abrace?...
— Não quero que você vá embora!
— É preciso, Benedito!
— E nhanhã D. Alice?
— Não me fales dela! disse Mário recalcando o peito sublevado por um soluço.
— Mas Deus quer!
— Benedito! exclamou o mancebo com severidade. Tu blasfemas! Deus amaldiçoaria semelhante união! Podia eu nunca amar a filha do assassino de meu pai?
— Assassino!... Quem disse?
— Eu o sei!
— Não é verdade!
— Pretendes negar ainda?
— Não; não é verdade! Eu conto tudo. Vi com estes olhos! Por alma de meu defunto senhor, juro que não lhe engano.
— Fala; quero saber tudo; não me ocultes a menor circunstância, dizia Mário palpitante de esperança, mas ainda traspassado de dúvida.
— A última noite que o meu defunto senhor moço veio ver o velho, seu amigo dele Sr. Joaquim de Freitas, que nem pensava ainda de ser barão e meu senhor, ficou esperando a ele aqui na Lapa aonde nós estamos.
“Agora carece saber porque Sr. Joaquim de Freitas ficou aqui esperando; e a história é muito comprida porque o velho levou uma noite inteira contando; mas a gente já não se lembra de muita cousa.
“Essa D. Alina, que sempre foi uma branca arrenegada, fez que o velho ficasse mal com o filho; e então o velho para lhe fazer a vontade, que era não deixar nem um fiapo a meu senhor moço, começou a dever mundos e fundos a seus amigos dele...
— O Comendador Alves Ferreira, o Major Mendonça...
— Isso mesmo! mas era de mentira e só no papel, para tomarem o que o velho deixasse, e depois darem às escondidas à tal mulherzinha da carepa, que tinha arranjado toda a tramoia; mas saiu a cousa às avessas, porque o velho arrependeu-se, fazendo as pazes com meu senhor moço, e tomou tanta birra da espevitada que até desconfiou que o filho dela, esse boneco do Lúcio, não era filho dele; e não houve quem lhe tirasse mais isso do juízo.
“Foi então que se lembrou de passar todos aqueles papéis das dívidas de mentira... E passou todos, dos outros, para Sr. Joaquim de Freitas, porque como ele era muito amigo, unha com carne, de meu senhor moço, a cousa ficava segura. Mas o velho que não cochilava, quis sempre que ele escrevesse no papel, para a todo o tempo se saber.
“Tudo isto foi naquela noite, no quarto do velho, quando chegou Sr. Joaquim de Freitas que depois saiu comigo para vir esperar aqui meu defunto senhor moço José Figueira; e eu me lembro bem que já estava na porta, da banda de fora, quando enxerguei o velho entregar a ele o papel, e Sr. Joaquim de Freitas, que também enxergou.
“Já estava tarde muito; e eu que queria ver meu senhor moço quando voltasse para lhe tomar a bênção, e fazer festa a ele como costumava, deitei-me ali em cima na pedra do quintal, donde se avista o caminho; e estava assim pescando, como quando a gente nem acorda nem dorme e vai caindo no sono, mas fica que nem anzol em cima d'água.
“Era à moda de presepe. A gente via o boqueirão como uma pintura, e a lua assim cinzenta como está agora.
“Então enxerguei meu senhor moço, que vinha a cavalo, e o cavalo entrou n'água, e caminhava, caminhava, e ele com a cabeça baixa, pensando, não dava fé! De repente cavalo sumiu-se; e corpo de meu senhor moço rodou no remoinho.
“Eu estava em pé lá em cima, arrancando as pedras com as mãos, de desespero, e não podia gritar. O Sr. Joaquim de Freitas estava aqui e viu quando passava o corpo e estendeu o braço para segurar. Meu senhor então agarrou a mão dele, e babatou para alcançar esta pedra. Mas ele...”
Um soluço afogara a voz trêmula do negro velho.
— Que fez, Benedito? exclamou o mancebo com angústia. Não me ocultes.
— Ele arrancou a mão!
— Miserável!...
— Aquele dedo que ele tem quebrado...
— Compreendo. Ficou-lhe como o estigma de seu crime.
— Então ele desapareceu para sempre, lá no fundo; e o grito que estava preso aqui no peito, saiu.
Calou-se o preto horrorizado ante aquela recordação, e espavorido pelo efeito que ela produziria no moço.
Submergido nas profundezas de sua alma revolta, Mário repassava toda sua existência, para deleitar-se no desprezo que tantas vezes sentira pelo barão. Parecia-lhe que só nesses momentos de ódio tinha ele vivido; o resto de sua vida fora um pesadelo.
Entanto o negro velho continuara:
— Tudo que o boqueirão engole, vomita depois... Tem uma grota lá da outra banda... foi pai Inácio que ensinou. Eu esperei meu senhor até que no outro dia apareceu; ainda tinha o papel no bolso, mas todo apagado.
— Eu não me enganei! É ele que está enterrado no tronco do ipê?
O velho travou as mãos súplices:
— Mas não o leve daí! Meu senhor era ele... só.
Mário abraçou o negro, e durante alguns instantes confundiram ambos suas lágrimas. Depois, o mancebo arredou-se para outra vez submergir-se em seus pensamentos.
— Sr. Freitas... dizia Benedito; nunca ele soube que eu tinha visto, mas desconfiava, até que um dia...
“Era de tarde; nhanhã Alice estava brincando com seu carrinho dela, e veio nhonhô e tomou o carrinho. Nhanhã pôs-se a chorar e foi fazer queixa ao pai. Então eu disse: “E ela não tomou tudo que tinha de ser dele?” Senhor entendeu: “O que é de um é de outro: eu prometi a Deus fazer esse casamento, Benedito!”
Mário interrompeu arrebatadamente o preto:
— Lembra-te bem; interroga tua memória!... Cuidas tu que ele safou a mão, por fraqueza... só, ou pelo... dinheiro?... Fala! Foi uma cobardia ou um roubo?
— Quem pode saber? Mas parece que ele teve medo...
— Medo!... repetiu Mário com um riso estridente. Não; ele é valente.
Ouviu-se um grito, que parecia articular o nome de Benedito; mas o preto velho não o escutou; com os cabelos erriçados, os olhos pasmos, e o corpo hirto, contemplava uma visão que o arrastava e espavoria ao mesmo tempo.
De feito, a estátua elevada de um homem a cavalo assomara lá da outra banda, na margem do lago. Sombreava-lhe o rosto um chapéu desabado; e uma capa escura descia-lhe dos ombros até os joelhos.
— É ele... ele mesmo.
Os lábios trêmulos do negro estertoravam de pavor.
— Ele quem? perguntou Mário.
— Seu pai!... Fazem hoje 18 anos. Foi a essa mesma hora! Ele vem ver o filho!...
Avançava o cavaleiro lentamente pela água adentro. O animal refugava; mas ferido pelas esporas movia o passo, retraindo o corpo, espetando as orelhas, e bufando de terror.
Tomado pelo primeiro espanto dessa aparição, Mário não tivera tempo de refletir, quando cavalo e cavaleiro submergiram-se de repente a seus olhos.
— Foi assim!... soluçou Benedito caindo de joelhos.