O homem e o cão/VIII
O poeta examinava as contas de mestre Gregório. Era a hora do trabalho; eram cinco horas da tarde. A velha Angélica, rotunda e misteriosa como a lua cheia, entreabriu mansamente a porta da alcova.
— Dá licença?
— O que quer, tia?
— Está aí um moço seu amigo. Pode entrar?
Paulo Maurício mal teve tempo de abotoar o paletó.
O filho do fazendeiro, afastando a criada, penetrou no aposento.
— Oh! O sr. Mendes?
— Eduardo, Eduardo é o meu nome! Venho brigar muito com você, ilustre desertor!
O filho do fazendeiro em um belo rapaz, formoso de corpo e formoso de alma; coisa rara numa época em que a matéria anda tão hostil ao espírito. Tinha 22 anos e cursava as últimas aulas da Escola Central.
— Desertor?
— Desertor, sim! Mas, antes de tudo — prosseguiu o moço ao ouvido do poeta — põe no olho da rua esta velha imensa!
A tia Angélica, a um sinal de Paulo Maurício, saiu do quarto resmungando sinistramente.
— Meu caro Maurício — prosseguiu Eduardo Mendes -, você é um ingrato, e além de tudo um traidor!
— Um traidor, eu?!
— Pois o que significa o mimo que deu à minha irmã?
O poeta corou até as pálpebras, e a palavra suspendeu-se-lhe nos lábios enleados.
— Olha — acudiu o outro, forçando-o a sentar-se e apoderando-se de uma pequena mala carunchosa que metamorfoseou em cadeira -, minha família é simples como as plantas e desconfiada como um caipira.
— Mas...
— Espera. Das duas, uma: ou você está a fingir-se nababo, ou é na realidade um milionário, que viaja incógnito.
Paulo Maurício tentou cortar em meio o pensamento do camarada.
— Pelo amor de Deus, meu querido! Favoreça-me com a sua preciosa atenção. Meu pai o adora e eu adoro meu pai; logo, você é para mim um ente adorabilíssimo. Compreendo todo o orgulho dos talentos superiores; respeito o melindre dos corações nobres, porém, rogo-lhe, que veja de hoje em diante naquela casa das Laranjeiras uma espécie de cabana de Bernardim de Saint-Pierre, pronta a abrigar a amizade, e não um palácio de duques, marqueses, condes, valetes, et reliqua!
O poeta riu-se e apertando a mão do amigo:
— O senhor é uma encantadora alma! — disse ele.
— Outra! O senhor! Parece-me, meu caro, que nunca chegaremos a um acordo, e portanto...
O filho do fazendeiro dirigiu-se à porta, de chapéu em punho.
Paulo Maurício sentiu-se arrastado por tanta graça e espontaneidade. Prendendo nos braços o amigo, exclamou com a voz comovida:
— Perdoa-me, Eduardo; eu sou um urso!
— Ora, graças! — volveu o moço com todos os ímpetos do prazer juvenil — Je te retrouve, mon chéri!
Meia hora depois, o filho do fazendeiro despediu-se.
— Sabes, Paulo Maurício; quero-te um bem enorme. Se fosses mulher casava-me contigo.
O cão pôs-se a acarinhar os pés de Eduardo Mendes.
— Não sabia que eras amador do gênero. Hei de oferecer-te um galgo soberbo.
— É inútil. Basta-me este leal e inteligente amigo.
— Queres-lhe muito?
— Muito; se a teoria de Pitágoras não é uma asneira, a alma deste cão pertenceu a algum mártir romano.
— Sim?
— Palavra!
— Pois bem — exclamou o filho do fazendeiro, com um ar meio cômico e meio sério -, juro pela cabeça do teu cão que serei teu amigo eternamente.
— Que palavra comprida!
— Com a condição, já se sabe, de não seres mais?... ajuda-me!
— Urso?
— Apoiadíssimo; urso!
Entre gargalhadas separaram-se os dois rapazes.
Paulo Maurício sentou-se de novo à mesa do trabalho.
O cão humildemente veio enroscar-se ao pé da mesa. O poeta afagou-o com a mais fraternal meiguice:
— Descansa, meu amigo. Ninguém ocupará o teu lugar.
O animal cerrou os olhos, agitando a cauda amorosamente.